Jonathan Lins/Folhapress

Acusada de promover um dos maiores desastres socioambientais da história do país com a exploração de depósitos de sal em Maceió, capital de Alagoas, a petroquímica Braskem afirma que sempre operou com segurança as minas subterrâneas desenvolvidas para sua extração.

Mas documentos que vieram à tona com as investigações iniciadas depois que um tremor de terra revelou o estrago, em 2018, mostram que a empresa desprezou durante vários anos exigências das autoridades para que monitorasse com maior rigor as atividades nas suas minas.

Três anos antes do tremor, a ANM (Agência Nacional de Mineração) exigiu que a petroquímica realizasse periodicamente exames de sonar para analisar a situação no interior das minas, localizadas centenas de metros abaixo da superfície do solo, mas a empresa nunca cumpriu completamente a exigência. De 2015 até 2018, a Braskem analisou com sonar apenas 4 das suas 35 minas.

O conteúdo desses documentos foi tornado público pela ANM em junho do ano passado e chamou a atenção da Polícia Federal, que realizou buscas em escritórios da Braskem e nas casas de executivos e consultores da empresa em dezembro. O UOL analisou a íntegra deste conjunto de documentos, que soma milhares de páginas.

Em nota enviada à reportagem, a Braskem disse ter utilizado "a melhor técnica disponível no momento" para monitorar as minas e que os levantamentos topográficos realizados nunca apontaram problemas.

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Nos exames de sonar, aparelhos usam a propagação de ondas sonoras no interior das cavernas criadas pelas minas para medir as dimensões das cavidades e determinar sua localização com precisão, o que permite antecipar problemas e tomar precauções antes que seja tarde demais.

Especialistas consideram esse monitoramento essencial para evitar que as cavernas ultrapassem certos limites, o que pode afetar o equilíbrio entre as camadas rochosas do subsolo e causar desmoronamentos com reflexos na superfície, como em Maceió.

Em 2014, um professor do Departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, André Cezar Zingano, consultor da ANM, recomendou que os exames de sonar fossem realizados anualmente nas minas que estavam em produção e a cada cinco anos nas minas desativadas.

No ano seguinte, a ANM exigiu que isso fosse feito. A Braskem fazia exames desse tipo com alguma frequência desde o início dos anos 2000, mas nunca os realizou com a periodicidade recomendada pelo especialista e tampouco deu a atenção requerida aos poços mais antigos.

Em 2015, quando a ANM exigiu os exames de sonar pela primeira vez, somente três das dez minas em atividade foram analisadas por esse método, segundo o relatório mais recente da Braskem para a agência. Nos anos seguintes, até o tremor de 2018, houve exames em apenas mais uma mina.

Duas minas que estavam produzindo nesse período jamais foram examinadas por sonar enquanto estiveram em operação. Quando a agência exigiu que isso fosse feito, havia 25 minas desativadas. Somente quatro tinham sido analisadas pelos aparelhos após seu fechamento, uma única vez.

A companhia só passou a fazer os exames regularmente, em todos os poços, depois do tremor de 2018, que provocou a suspensão das atividades de mineração da Braskem em Maceió e a desocupação de cinco bairros da cidade, onde viviam milhares de pessoas.

"A empresa sabia muito bem dos riscos, mas em algum momento pensou que podia adotar parâmetros menos conservadores na exploração das minas para extrair mais sal", diz o engenheiro Abel Galindo Marques, professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas.

Especialista em fundações de edifícios, Galindo começou a desconfiar de que havia algo errado acontecendo nas minas da Braskem em 2010, quando foi chamado pela primeira vez para investigar rachaduras em casas nos bairros vizinhos às áreas exploradas pela empresa.

Em 2019, especialistas do Serviço Geológico do Brasil enviados pelo Ministério de Minas e Energia para estudar a situação em Maceió concluíram que a exploração de sal nas minas era a principal responsável pela instabilidade do solo da região, provocando rachaduras em casas e nas ruas dos bairros.

OPERANDO MINAS ÀS CEGAS

A Braskem diverge das conclusões dos geólogos, argumentando que outros fatores ainda não determinados podem ter provocado o afundamento do solo e outros problemas observados nos arredores dos poços, e diz que sempre operou suas minas sob a supervisão das autoridades.

Levantamentos topográficos encomendados pela Braskem e apresentados à ANM indicavam nessa época que não havia problemas na superfície, sugerindo que não havia motivo para preocupação nas minas subterrâneas. Como se viu depois, a avaliação estava equivocada.

Era como se as minas fossem operadas às cegas. "A medição das cavidades por meio de sonar, atualmente utilizada, é uma tecnologia de medição direta, e por isso, é considerada a mais adequada e a mais precisa, perante as demais tecnologias que são indiretas", diz a Braskem em seu relatório mais recente para a agência.

AFUNDAMENTO LENTO E CONTÍNUO

Quando finalmente os exames passaram a ser feitos de acordo com as exigências da ANM, em 2019, os aparelhos mostraram que, em 18 das 35 minas desenvolvidas pela empresa, desmoronamentos haviam alterado o equilíbrio das camadas rochosas que separam as jazidas de sal e a superfície do terreno.

O caso que provocou mais alarme até aqui foi o da mina 18, cujo rompimento no fundo da lagoa de Mundaú, em dezembro, assustou a população da cidade. A mina estava desativada desde 2014, mas a Braskem só detectou o risco de rompimento em maio do ano passado.

Estudos feitos pela própria Braskem e por especialistas independentes com dados captados por satélites desde 2004 mostram que houve um afundamento lento e contínuo do solo da região das minas desde então. As estimativas variam de 40 centímetros a 2 metros em duas décadas.

Maior empresa do setor petroquímico no país, a Braskem é controlada pela Novonor, holding que administra os negócios da família Odebrecht, e tem a Petrobras como sócia. A companhia foi criada em 2002 para integrar várias participações que o grupo baiano adquiriu ao longo dos anos.

A Braskem usa o sal, importado do Chile desde a interrupção da extração em Alagoas, para produzir cloro, soda cáustica e outros compostos químicos numa fábrica localizada nas imediações das minas de Maceió. Esses insumos são usados depois na fabricação de outros produtos industriais, como o PVC.

A empresa não reconhece culpa nenhuma pelo desastre em Maceió, mas assumiu a responsabilidade pela reparação dos danos, comprometendo-se a gastar bilhões de reais para fechar os poços com segurança, monitorar as minas e indenizar as famílias que precisaram deixar as áreas de risco.

Acordos firmados pela Braskem com o Ministério Público Federal e outros órgãos para garantir o cumprimento desses compromissos livraram a empresa de ações civis movidas na Justiça. A investigação na área criminal continua em andamento e ganhou impulso em 2023.

AS SUSPEITAS DOS INVESTIGADORES

Em dezembro, a Polícia Federal disse ter encontrado indícios de que, ao longo dos anos, a empresa não seguiu critérios de segurança previstos nos planos entregues por ela mesma aos órgãos reguladores, além de omitir informações e apresentar dados falsos aos responsáveis por fiscalizá-la.

Um dos alvos das buscas realizadas em dezembro foi o engenheiro Paulo Roberto Cabral de Melo, que foi responsável pela operação das minas por três décadas, do início da exploração, em 1976, até sua aposentadoria, em 2007, quando passou a atuar como consultor da Braskem.

Cabral assinou o primeiro plano entregue ao governo federal pela antiga Salgema, a empresa que iniciou a exploração das jazidas. No documento, ela prometeu tomar precauções para conter riscos da atividade mineradora, realizando exames de sonar anuais em todos os poços.

A promessa não foi cumprida, em parte por causa dos custos elevados para realização dos estudos. Em 1983, uma comissão criada pelo governo de Alagoas para examinar a atuação da empresa concluiu que eles eram indispensáveis para garantir a segurança das operações.

"Os dirigentes da empresa nos diziam que queriam ampliar a capacidade de produção da fábrica e para isso precisavam extrair mais sal, mas fizeram isso de forma irresponsável", afirma José Roberto de Fonseca e Silva, que presidiu o IMA (Instituto do Meio Ambiente de Alagoas) de 1986 a 1989.

Os relatórios da Braskem mostram que ela realizou os exames de sonar esporadicamente nos anos 1980 e 1990. Somente em 2012 o Departamento Nacional de Pesquisa Mineral, que exercia as funções desempenhadas hoje pela ANM, começou a cobrar mais rigor da empresa.

Mas o órgão regulador demorou a mostrar que falava sério, mesmo depois de exigir a realização dos exames de sonar anuais. A agência só multou a Braskem pelo descumprimento da exigência em 2020. A empresa recorreu contra a decisão e ainda não pagou as multas.

BRASKEM DIZ SEGUIR CRITÉRIOS TÉCNICOS

Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, a Braskem defendeu os métodos que adotou para monitorar suas minas. "A extração de sal-gema em Maceió sempre foi acompanhada interna e externamente utilizando a melhor técnica disponível no momento, fiscalizada pelos órgãos públicos competentes e com todas as licenças necessárias para sua operação", afirmou.

Questionada sobre os motivos pelos quais não realizou os exames de sonar exigidos pela Agência Nacional de Mineração com o rigor recomendado, a empresa disse apenas que os exames foram "realizados de acordo com critérios técnicos".

Segundo a Braskem, os levantamentos topográficos realizados para monitorar o afundamento do solo são um "método amplamente utilizado para esse tipo de medição" e nunca apontaram problemas. Questionada sobre os motivos pelos quais não fez estudos com dados de satélite antes de 2018, a companhia não se manifestou.

A Braskem informou que já executou 70% das ações previstas no plano de fechamento das minas aprovado pela ANM e destacou o reforço nos métodos de monitoramento das minas. "A Braskem instalou na região uma das redes de monitoramento mais modernas e robustas do país", afirmou.

A ANM foi questionada sobre a demora para multar a empresa após o descumprimento das exigências feitas em 2015, mas não quis se manifestar. Sua assessoria de imprensa afirmou que as informações disponíveis estão no site da agência, mas elas não esclarecem os motivos da demora.

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