Adoção tardia

A idade fez deles crianças 'inadotáveis', mas algumas famílias decidiram mudar essa história

Quando Leandro Souza, 35, e Marcílio Santos, 34, adotaram André, o menino de oito anos tinha um sonho: conhecer o mar. No dia do garoto deixar o abrigo onde vivia rumo ao novo lar, o litoral não fazia parte do caminho, mas o casal fez um desvio até o Guarujá, costa sul de São Paulo. Era uma noite de inverno e estava um pouco frio. Para André, isso não importou muito. Assim que pisou na areia, correu e rodopiou, eufórico. “A gente achava que ele ia quebrar o pescoço de tanta felicidade”, lembra Leandro.

Mesmo em uma fase de descobertas e com comportamentos típicos da infância, André já era considerado “velho demais” para ser adotado, segundo os padrões brasileiros. A maioria dos pretendentes a adotar no país quer crianças de até três anos. Na idade do André, por exemplo, apenas 2% dos cadastrados aceitam iniciar o processo. Some a isso o fato de o garoto sofrer de um problema de saúde que demanda acompanhamento constante, além de ter um irmão, Victor - para não dissolver ainda mais o núcleo familiar, a Justiça prioriza que irmãos permaneçam juntos, sendo separados apenas em casos específicos.

“Eles eram considerados ‘inadotáveis’, vamos dizer assim”, lembra Leandro, que com o marido Marcílio também acolheu Victor, então com três anos.

SÓ 2%

O caso de André caracteriza a chamada adoção tardia, de quem está acima dos três anos de idade. Esse cenário ainda é pouco conhecido no Brasil, mas vem mudando - entre 2015 e 2016, dobraram as adoções de crianças e adolescentes entre três e 17 anos. Mesmo assim, os números de demanda e procura ainda são bem distantes. Enquanto 75% dos disponíveis para adoção têm mais de 10 anos, por exemplo, apenas 2% dos que querem adotar se propõem a cuidar de alguém nessa faixa etária, de acordo com dados de julho de 2017 do Cadastro Nacional de Adoção.

“As dificuldades deles serem adotados vêm dos mitos da adoção, das pessoas quererem bebês sem ‘influência da família biológica’, só que isso só reforça o quanto a adoção ainda é uma prática carregada de preconceitos. Quem pensa assim vê adoção como uma filiação de segunda ordem”, diz a psicóloga Sanmya Salomão, que trabalha com o tema no projeto Aconchego, de Brasília.

“Ninguém assume, mas tem gente que acha que, se o pai roubava ou matou alguém, isso ‘passa’ [para o filho]. Outra coisa que acham é que, a partir de certa idade, você não educa mais”, diz Helerson Silva, psicólogo atuante na campanha Esperando por Você, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que busca elucidar questões sobre adoção tardia e estimular a prática.

E AOS 18?

O Esperando por Você nasceu da percepção de que as crianças iam passando dos nove anos e ficando nos abrigos, acumulando na memória cenas de despedidas e o sentimento de abandono: familiar, de colegas e, mais tarde, aos 18 anos, do próprio Estado, já que ao atingir a maioridade elas têm de enfrentar a vida – não é permitida a expulsão do abrigo, mas não existem políticas de inclusão dos jovens que deixam as casas de acolhimento. Sobram apenas soluções domésticas ou privadas.

“Chegar aos 18 saindo do abrigo para a rua é um segundo abandono. Um determinado tempo eles começam a perceber que não vão embora mais, vão vendo que os maiores que eles nunca vão”, afirma a artesã Ana Claudia dos Santos, 58, que ao lado da enfermeira Cecília de Ávila, 50, é mãe de quatro crianças adotadas - uma delas, Laura, entrou na família quando tinha cinco anos. “Hoje as pessoas ainda aceitam crianças maiores, mas em 2007 não era assim”, completa.
 

Ana Claudia conta que uma das irmãs de Laura também foi viver com elas quando tinha oito anos, mas não se adaptou e voltou para o abrigo, onde tinha outra irmã, de 10 - mesmo com o esforço para desmistificar a adoção tardia e preparar os lados envolvidos, são relativamente comuns casos de não-adaptação de crianças maiores, assim como de devoluções por parte dos pais. “Elas ficaram lá (abrigo) até os 18. A mulher que tomava conta do local na época ficou com as duas por um período após a maioridade. Elas iam para onde, fazer o quê e com o apoio de quem? É diferente de um adolescente que vive em sociedade, que sabe se virar”, afirma.

O André sofria muito porque via todos os amigos sendo adotados e ele não. No abrigo havia um caderno com a história dele, que ele escrevia, e sempre tinha ali um 'não sei quem' foi embora

Leandro Souza, 35, que junto do parceiro Marcílio Santos, 34, adotou uma criança de 8 anos

Quando preencheram o cadastro de adoção, há 11 anos, Ana Claudia e Cecília, que são de Uberaba (MG), tinham o perfil “padrão”: dispunham-se a adotar uma criança de até três anos. Ao tomarem conhecimento da realidade dos abrigos, esse desejo foi sendo desconstruído. Para a artesã, que é negra, a dificuldade de adoção do adolescente, principalmente por esse jovem em sua maioria ser negro (65% da ocupação dos abrigos é de pretos e pardos), carrega também o racismo. “A pessoa está andando na rua, vê um menino de 16, 17 anos branco e é tranquilo, vê um negro e já fica em alerta. E isso se reflete na questão da adoção”, afirma.

“O único filho que eu fiquei mais receosa em adotar era um bebê branco (o filho André), o perfil clássico que as pessoas querem, porque eu já tinha uma atenção voltada para crianças maiores. A mãe dele tinha problemas psiquiátricos, mas isso a gente acompanha e ele vai ser uma criança normal”, diz Ana Claudia. “Temos de dar para eles o direito de viver em sociedade. Não é porque os pais têm problemas que eles vão perder esse direito”, completa a artesã, que forma, ao lado de Cecília, um dos primeiros casais homoafetivos a adotar em Minas Gerais.
 

SOLUÇÃO UNIVERSAL #SQN

A criança ou o adolescente vai morar em um abrigo por uma série de questões: abandono ou negligência familiar, maus tratos, abusos, morte dos pais. Esse quadro é parte de uma conjuntura de sociedade que faz a psicóloga Sanmya Salomão considerar que a adoção deve ser encarada como mais uma estratégia e não como uma resposta a um problema social, devendo ser combinada com políticas públicas na área.

“O Estado nem sempre vai conseguir garantir todos os direitos, então como ele pode reparar os danos?”, questiona Sanmya Salomão. “A gente tem relações sociais deterioradas, e a história de como lidamos com a criança é muito abusiva, pouco voltada para os interesses dela e mais para os do adulto”, completa.

“A criança tem o direito de estar em uma família ou de ter uma boa vivência comunitária”, reforça a designer Simone Uriartt, criadora do projeto de webdocumentários Adoção Tardia, de Porto Alegre, que mostra a história de famílias que viveram a experiência da adoção de crianças maiores. “Tem muita criança em abrigo que não está [apta] para adoção - os pais estão em tratamentos de drogas, por exemplo. Então é muito difícil chegar em um cenário em que eles (os abrigos) não existam”, afirma.

A adoção é exceção. O trabalho anterior é muito importante: estruturar as famílias, dar chance deles recuperarem os filhos. Os problemas associados à adoção estão muito ligados à miséria, e a classe mais pobre não pode fazer filhos para que os outros adotem

Helerson Silva, psicólogo do grupo Esperando por Você

Hoje em dia, há mais abrigos que buscam inserção das crianças no espaço público e no convívio social, com saídas para a escola, parques e acesso a locais onde exista lazer - condições exigidas por lei. Ainda assim, a situação de modo geral não parece a ideal. “Eles têm de fazer coisas na comunidade para se sentirem inseridos, sair para a rua. Muitos saem aos 18 sem apoio e sem saber como tirar um documento ou se portar numa entrevista de emprego”, diz Helerson Silva.

A partir da própria experiência, Simone aprendeu bastante sobre o assunto. Hoje com 28 anos, ela foi adotada aos três. Seu irmão mais velho ficou no abrigo até a maioridade. “Eu era uma menina branca pequena, muito mais fácil de ser adotada do que um menino de 11 anos já com alguns problemas de comportamento”, conta. Ela tem contato regular com este e outros irmãos biológicos, cujos vínculos foram retomados enquanto criava os vídeos do Adoção Tardia.

“O ser humano precisa da sensação de pertencimento, e na nossa sociedade a estrutura de pertencimento é muito marcada pela família - poderia ser pela comunidade também, em outras culturas é. A partir dessa sensação é que as estruturas psíquicas para um desenvolvimento saudável vão passar pelo laço afetivo e não pela questão financeira”, diz Sanmya Salomão.
 

MEMÓRIAS DE OUTRA VIDA

Construir vínculos é apenas um dos desafios de quem adota crianças maiores e adolescentes. Estar pronto para lidar com uma pessoa que já tem uma história de vida é uma barreira tão ou mais complicada.

“Você planeja um monte de coisas quando eles estão para chegar, e na realidade não é assim. Uma coisa que a gente colocou desde o início é que queremos ser muito amigos deles, queremos que eles nos contem as coisas, porque eu não tive isso”, diz Leandro. “Assistimos a filmes todos juntos, tenho um casal de amigos que têm dois filhos adotivos também, então nos encontramos para cozinhar e para eles brincarem”, afirma.

Logo que foi adotada, Simone ficava todo fim de tarde sentada na escada, esperando sua mãe biológica chegar. “Eu não ficava comentando nem relembrando nada. As lembranças que ela tem são dela, eu sempre respeitei muito esse histórico. Fiz o que gostaria que tivessem feito comigo”, diz a engenheira agrônoma Sonia Regina de Mello Pereira, 55, mãe da designer.

“É claro que as memórias aparecem”, diz a professora Luciana Nunes, 47. Ela é mãe, junto da pró-reitora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Suzi Camey, 46, de Andriele, 11, e Luiz, oito anos. “No início foi mais intenso, mas somos super abertas, falamos de tudo. A Adri, como a chamamos, adora contar a história dela na escola, traz isso com certa tranquilidade, refere-se às experiências todas. Queremos que exista sempre esse espaço: ela tem a vida anterior, a memória está lá, não é uma coisa que a gente vai e apaga. Às vezes, em textos da escola, ela traz informações que não conhecemos, que dizem respeito ao que ela viveu, e a gente percebe que ela faz questão de perpetuar essa memória, e com um sentimento bom”, conta.

Sempre quando eles quiseram falar, a gente parou para ouvir e nunca culpou os pais biológicos. Nada entre nós é escondido, não temos medo dessa procura deles pela família biológica, porque acho que o vínculo e o amor que a gente forma hoje é muito maior. E eles têm esse direito

Ana Claudia, sobre uma fase na qual a filha adotiva, Laura, questionava sobre a família biológica

A ajuda de especialistas pode dar suporte para os pais frente a essas novas questões. “Quando estão vivendo em um abrigo, ou quando viviam em uma situação de negligência, as crianças lidam com coisas muito duras da vida, e diante disso aprendem desde muito cedo mecanismos de defesa para a sobrevivência física e psíquica”, diz a psicóloga Sanmya Salomão, “mas às custas desse processo acabam atrasando ou deixando de viver experiências que são constitutivas”.

É muito comum, por exemplo, ao conversar com pais e pessoas que trabalham em abrigos e grupos de apoio à adoção, ouvi-los dizer que o jovem tem 15, mas parece ter 11. Ocorre que, embora esses adolescentes amadureçam para muitas questões complexas, já tendo visto e vivido coisas difíceis, eles podem ser imaturos em outros aspectos.

“A criança em uma família cresce escutando conversas, narrativas, e vai construindo um discurso e uma subjetividade que a favorece a ter uma interpretação mais abstrata, a sair desse universo concreto. A primeira coisa para ela sair do modo de sobrevivência e passar para o modo de vivência é ter confiança básica em quem está ao redor dela, assim as vivências começam a surgir. Ao ir viver em uma nova família, a criança pode ter novas vivências que ela não teve oportunidade. Às vezes parece um descompasso, ‘adotei um menino de 8 e ele faz xixi na cama?’”, diz Sanmya Salomão.

CRIANDO O VÍNCULO

Fãs de futebol, Luciana e Suzi brincam que um dos pontos em comum com os filhos é a torcida pelo mesmo time. “Antes deles chegarem, pensamos: ‘Ai, meu Deus, e se forem gremistas?’ (risos). Aí eu perguntei para a Adri para quem ela torcia e ela: ‘Inter, mas é claro!’”, diverte-se a mãe. Esse tipo de conexão, aliás, vem sendo explorado em duas grandes campanhas ligadas a clubes criadas nos últimos tempos: a Adote um Pequeno Torcedor, do Sport, do Recife, e a Adote um Campeão, do Cruzeiro, de Belo Horizonte, ambas parcerias dos times com as varas da infância e juventude locais.

Iniciativas como essas marcaram a história de Willams Nogueira. Ainda no abrigo em Igarassu, região metropolitana do Recife, ele já trabalhava e buscava casa para alugar no fim de 2015, quando sua vida começou a mudar. Uma família de Belo Horizonte o conheceu por meio de seu depoimento na campanha do Sport e decidiu adotá-lo, iniciando o processo quando o adolescente tinha 17 anos. A guarda provisória foi concedida, e Willams, já com 18 anos e "de maior", se mudou para a casa nova em Minas, onde vive há pouco mais de um ano - a guarda definitiva já foi concedida.

“Desde quando entrei no abrigo [aos 11 anos] eu queria uma família. Tinha os educadores, os outros meninos, mas o que eu queria mesmo era uma família. Lá a gente não podia escutar funk, namorar, tinha que acordar cedo todos os dias, e eu só fui ter um pouquinho mais de liberdade quando completei 17 anos e comecei a trabalhar. Antes eu só convivia com as mesmas pessoas, então eu sentia vontade de sair na rua, de conhecer mais gente. Ninguém gosta de ficar preso”, diz Willams, hoje com 19 anos.

A adoção deu certo porque eu tinha desejo de ter uma família, e eles de ter um filho

Willams Nogueira, 19, filho adotivo de Viviane e Cláudio

Com dois filhos biológicos já adultos, a engenheira Viviane Nogueira, 45, e o psicólogo Cláudio Martins Nogueira, 54, queriam há tempos adotar um adolescente. A ideia amadureceu durante sete anos, com o casal lendo sobre o assunto e frequentando grupos. O desejo e a preparação, combinados com a empatia ao assistir o depoimento de Willams, foram a base da adoção. “Eu nem consegui ver o vídeo todo na primeira vez que assisti, eu voltava na fala dele, sentia uma emoção muito forte. Os vínculos se formam quando a gente vê, tem contato. Acho que esses jovens têm que perder essa invisibilidade”, opina Viviane. O conceito do projeto foi tema do documentário "Depois do Se7E - Uma Reflexão sobre a Adoção Tardia", que começa justamente com um depoimento de Willams.

No novo lar, o rapaz ganhou mais tempo para decidir como vai tocar a vida, “aos 45 do segundo tempo”, brinca. Está concluindo o Ensino Médio, trabalha meio período via o programa Jovem Aprendiz, segue tendo o futebol como hobby e quer prestar vestibular. “Eu não tinha muitos planos, só queria mesmo sair do abrigo. Eles podem me dar força agora”, diz Willams. Questionado se tem vontade de voltar para Igarassu para visitar os amigos, ele diz que viveu muito tempo por lá e pode esperar um pouco. “Uns dez anos”, responde, bem humorado. Quando a saudade aperta, tem cuscuz no café da manhã mineiro.

“Ele também nos adotou com a nossa história de vida”, diz a mãe Viviane.

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