Meus amigos refugiados

A experiência de ajudar pessoas e contar histórias em meio a uma crise humanitária

“Aqui, refugiado odeia jornalista.”

Esse foi o primeiro conselho que recebi ao chegar ao porto de Pireus, o maior da Grécia e que se transformou, de agosto de 2015 até 27 de julho deste ano, num campo de refugiados. A dica fez com que eu praticamente não mostrasse a câmera fotográfica/filmadora na primeira semana de trabalho por lá. Eu queria me aproximar. Entender e sentir, quanto fosse possível, o que havia de vida naquela situação. Precisava ir com calma.

Havia um consenso entre sírios e afegãos, que estavam em maior número, e a minoria de iranianos, iraquianos, argelinos e marroquinos: a imprensa internacional se aproveitava deles. Reclamavam que os jornalistas, muitos passando poucas horas entre os refugiados, queriam falar sobre a crise num estilo “como-foi-a-viagem-no-bote-pelo-mar-Egeu-e-quem-da-sua-família-foi-morto-pelo-Taleban-e-quem-escapou-do-Estado-Islâmico”. E o pior, segundo eles: imagens eram feitas sem autorização, sendo que muitos ali eram perseguidos em seus respectivos países. Para quem precisava fugir, aparecer na TV era o mesmo que passar o novo endereço. Segundo os afegãos, quem trabalhou para o governo do país ou para qualquer instituição dos Estados Unidos é sumariamente considerado traidor. E todos sabem o que significava ser considerado traidor.

Recolhi muito cobertor sujo. Fiz limpeza em todo canto. Cuidei da portaria do armazém. Ajudei na distribuição de roupa. Cozinhei em grupo para mais de 1.500 pessoas. Ajudei a distribuir rações de macarrão, batatas e pão fornecidas pelo governo grego. Não era uma refeição tenebrosa. No nosso mundo ideal, é o que chamamos de “dá para comer”. Mas eles precisavam de proteína. Então cozinhávamos wraps com frango desfiado, variando com homus, babaganoush e salada no pão sírio.

Eu tinha um objetivo com essas ações: promover uma troca do bem, fazendo o que podemos chamar de jornalismo voluntário. Uma postura que não se limita a absorver e reportar, mas que também dá algo em troca – ou ao menos tenta. A partir do momento em que eles me viram dormindo no mesmo lugar, escovando os dentes nas torneiras coletivas, atuando como voluntário, me integrando àquela rotina, passaram a sentir confiança. Não deixei em nenhum momento de explicar que era jornalista. E que estava ali com um propósito, com uma ideia a ser executada. Foram retratados apenas aqueles que toparam essa essência.

Todos os voluntários queriam ajudar de forma independente, sem vínculo com instituições. Alguns se bancavam com doações via crowdfunding. Outros usavam recursos próprios – era o meu caso. Eu oferecia minha mão de obra para o que fosse necessário. Arcava com compras pequenas de suprimentos, desde cartão de recarga para celular até mesmo chá e café. Vivi no local por 45 dias. E realizei, com apoio dos meus amigos refugiados, dois projetos. Um sobre os adultos e suas histórias de vida, tentando mostrar quem são aquelas pessoas e quais eram, ou ainda são, os seus sonhos. Trata-se do “I Am Immigrant” (Eu Sou Imigrante).

O outro projeto se chama “Drawfugees”. O conceito é baseado numa das mais clássicas atividades recreativas: dar papel, canetas coloridas e giz de cera para as crianças desenharem. A proposta era tentar construir um momento de lazer para quem está tentando manter a infância por perto. Segundo a Agência da ONU (Organização das Nações Unidas) para Refugiados, 51% das 65 milhões de pessoas em deslocamento forçado pelo mundo são crianças. Elas são expostas no noticiário a todo momento. Morrem na praia. No mar. Muitas ainda não conhecem uma vida que não seja em guerra. Com essa carga, ainda é possível se expressar por meio de desenhos? A reação de algumas delas nos vídeos e fotos deste TAB pode dar uma resposta.

Criando o futuro

Crianças se expressaram e tiveram uma surpresa. Agora falta o mundo entender o problema

A stonehouse

A parte mais difícil da minha vida de jornalista voluntário em Pireus foi tomar conta da porta do armazém, batizado de Stonehouse (Casa de Pedra). Era o tipo de trabalho que ninguém queria fazer. Não paravam de bater no portão de ferro. Abri-lo realmente exigia da parte psicológica. Sempre aparecia alguém pedindo roupa, comida, sandálias etc. E era duríssimo explicar que, mesmo com suprimentos, você não poderia prover nada naquele momento, pois havia horários determinados para a distribuição e, se você abrisse uma exceção, em segundos uma fila se formaria e a situação poderia ficar fora de controle.

Os dias e horários de distribuição estavam escritos, em árabe e farsi, numa cartolina. Apenas refugiados recém-chegados, com fome e sem roupas, eram prontamente atendidos. Além disso, havia a rixa entre sírios e afegãos, que em alguns momentos lembrava mais uma briga entre irmãos. Se um sírio ganhasse um suco de caixinha e um afegão visse a cena, era reclamação na certa: “por que para os sírios e não para os afegãos, por quê?”. A recíproca, claro, era verdadeira.

A Família Curda

Cuidar da única porta da Stonehouse também consumia muito da minha energia para lidar com a brincadeira de criança mais irritante do mundo: tocar a campainha e sair correndo. Sim, as crianças queriam brincar. Queriam atenção. Queriam tocar a campainha e sair correndo. Resolvi então botar a chave no bolso e ficar do lado de fora do armazém. Interagindo. Até porque, caso contrário, enlouqueceria lá dentro. Foi cuidando da Stonehouse que fiz o meu primeiro “amiguinho refugiado”. Mas de uma maneira literalmente dolorosa.

Num dos momentos em que abri a porta e contendo o avanço das crianças que queriam invadir o local, senti uma dor absurda na perna direita. Olhei para baixo e vi um garoto grunhindo e mordendo a minha perna. Soltei um sonoro “don’t do that” (“não faça isso”) e ele saiu dando risada. “Me, dog” (“eu, cachorro”).

Queria mostrar a ele que aquilo não era certo, mas o “me, dog” me fez dar risada. Nascia ali uma amizade, mesmo que da maneira mais improvável. Sempre que nos encontrávamos pelo porto, ele automaticamente mostrava os dentes e “latia”. Musa Rasul foi sempre um dos garotos mais queridos pelos voluntários. Apesar dos rompantes de mordidas (eu não era o único privilegiado), ele era muito carinhoso. Distribuía beijos nas voluntárias e mordidas e abraços para os homens. Sempre pedia colo. “Me, here” (“eu, aqui”), dizia apontando para o meu peito. Queria me montar para ficar mais alto. Fazia isso com todos.

A velocidade com que Musa aprendia inglês era impressionante. Queria que ele participasse do projeto. Para isso contei com a ajuda de Laila Ben Chaout, uma voluntária marroquina que falava espanhol. Ela virou minha melhor amiga, fiel escudeira e tradutora para o árabe do “Drawfugees”. Com o apoio dela, pedi para o Musa nos levar até sua família. “Father not here” (“papai não está aqui”), me explicaria depois, já na barraca onde vivia com a mãe e os quatro irmãos.

O pai estava na Suíça havia um ano, e a mãe, sozinha, cuidava não só de Musa, 5, mas também da Ruhat, 4, de Mohammed, 10, e da Seva, 11. Mezkina Rasul, 35, fugiu da guerra na Síria, onde já sofria pelo fato de a sua família ser do Curdistão, terra do maior povo apátrida do mundo. “Quando eu vejo meu filho brincando com você, vejo a falta que faz o meu marido. É claro que ele transfere para vocês [voluntários] a falta que o pai faz aqui”, confessou Mezkina. Engoli seco. Naquele momento, decidi que daria mais atenção às famílias de “mães solteiras”. Descobri que eram muitas. O marido ia na frente e tentava levar a família num processo que pode durar meses e até anos.

Os desenhos do Musa viajavam entre o abstrato normal da idade e mensagens claras, como quando desenhou um bolo por causa do aniversário do irmão, poucos dias antes. Ele pegou o desenho e começou a arrancar pedaços de papel com a boca. Mais claro, impossível. Estava fazendo sua festa imaginária.

A Seva, por sua vez, abusava das cores. Era brincalhona e sorridente, mas se isolava num canto quando pegava o papel e as canetas. Fazia o desenho com calma, com capricho. O tema era sempre a família em meio a balões e uma casa, onde eles sonhavam em voltar a viver juntos. A Ruhat, por ser a caçula, tinha mais dificuldade. Daí a fundamental importância do trabalho da Laila. Por mais que a família falasse somente curdo entre si, apenas a Ruhat ainda não falava árabe. Com calma, e muito talento, ela conseguia tirar da Ruhat, com a ajuda da mãe, o significado do que um avião fazia em seus desenhos: ela queria sair dali. Já Mohammed se mostrou mais patriota. Um curdo orgulhoso. Por duas vezes desenhou a bandeira de sua nação, gastando muito das tintas vermelha, verde e amarela, as cores de uma pátria sem território autônomo.

Foi difícil me despedir deles. Especialmente do Musa, que me perguntava se eu voltaria. Uma vez por semana mando mensagens via WhatsApp para a Mezkina. Mandei também parabéns ao Musa, que agora tem seis anos de idade. Uso um aplicativo tradutor de árabe e, ao que tudo indica, ela está me entendendo. Tanto que agradece e envia fotos dos filhos. O garoto que mordia voluntários agora está com o cabelo diferente. Aderiu à moda árabe de raspar a lateral e deixar o topete com gel. Na última semana de julho, com a evacuação de Pireus, foram enviados para um novo campo montado para receber apenas sírios em Trikala, na região central da Grécia. Por mais que a situação permaneça difícil, e a luta para chegar à Suíça ainda esbarre nas fronteiras fechadas, eles dizem estar felizes. Agora vivem num contêiner. Com chuveiro e ar condicionado, o que no verão grego é uma benção. Deixaram as barracas de camping para trás.

A Família Afegã

Pouco se fala da situação dos afegãos dentro da atual crise migratória. Com a guerra civil na Síria no seu sétimo ano, não resta muito espaço no noticiário para o drama dos habitantes desse país que aprendeu a conviver com violência e ódio desde a invasão soviética de 1979, ainda nos tempos da Guerra Fria.

Em Pireus, eles eram a maioria – aproximadamente 65% dos cerca de 2.000 refugiados do local. Se sírios e afegãos não se bicam muito, os sunitas e xiitas do Afeganistão se odeiam de verdade. Muitas das brigas que aconteciam no campo eram entre eles. O grau de escolaridade bastante inferior ao dos sírios dificultava o diálogo e o trabalho de aproximação. Poucos falavam inglês. A barreira do farsi e do pashto, o dialeto de grande parte do país, dificultou muito o meu trabalho. Mas nada como o futebol para unir os povos. E a “pelada” no chão duro do estacionamento do porto, com chinelos formando os dois gols, me trouxe a pessoa chave neste processo: Rahman Haydari, 21.

Na base do “joão sem braço”, fiquei ali, assistindo ao jogo e esperando o convite para entrar na partida. “Do you wanna play, my friend” (“você quer jogar, meu amigo?”), me perguntou aquele rapaz que falava bem inglês. Entrei no seu time. Perdemos o jogo, mas ganhamos a amizade. No caminho para o chuveiro comunitário do porto - cinco minutos contados de ducha fria em quatro boxes individuais para uma multidão masculina -, ele começou a contar sua história. Acabou me convidando para tomar um chá com sua família.

O grupo de Rahman havia conseguido formar uma “pequena vila” dentro do acampamento. Reuniram três barracas grandes e, com a ajuda de um cobertor, improvisaram uma espécie de entrada, o que lhes oferecia um pouco de privacidade. Ali viviam, junto do meu novo amigo, os seus irmãos Roman, 13, Asma, 8, e Saná, 6, além da “mummy” (“mamãe”), Lailuma Shirzad, 42.

Fiquei muito próximo daquela família, especialmente de Asma, Saná e Roman. E ainda resolvi a questão do tradutor de farsi/pashto. Rahman se empolgou com o meu projeto e virou um parceiro fundamental para me ajudar a entender e a contar a história do seu povo. Rahman é órfão de pai e mãe. Adotado por Lailuma, viveram juntos num vilarejo próximo à capital Cabul até ele completar 16 anos. Foi quando decidiu sair de casa e tentar a vida no Irã.

“Lá eu sofri muito, trabalhava em fábricas de roupa praticamente como escravo e ganhava uma mixaria”, contou. Quis o destino que ele reencontrasse a sua família adotiva justamente em Pireus. Havia seis anos que não se viam e não se falavam. Lailuma, por sua vez, era o exemplo de por que os afegãos viraram sinônimo de refugiado. Como se não bastasse um país em guerra permanente, ela sentiu que a perseguição imposta pelos talebans é implacável para quem, de alguma forma, trabalhou para os EUA ou para o governo.

O marido de Lailuma foi morto por soldados da milícia fundamentalista. Levou dois tiros no peito. Ela guarda a identidade e um cartão, ambos cravados pelas balas, que estavam no bolso da camisa que ele usava quando foi baleado. Fala com muito orgulho do marido: “Era um líder importante dentro do governo afegão”. Com carinho, Lailuma desliza o indicador pelo retrato dele. Ela falava muito, muito rápido. Sempre em pashto, o único idioma que conhece. Não sabe escrever, assim como muitos em seu país – estudo de 2015 feito pela CIA, a agência de inteligência dos EUA, aponta que 61,8% dos afegãos são analfabetos.

Desenhamos muitas vezes nos meus passeios vespertinos para um café ou chá na “vila afegã”. Gostaram de saber que entraram ao vivo em uma emissora da TV brasileira. Eles nem sabiam onde ficava o Brasil – aliás, não sabiam que existia um país chamado Brasil. Mas as crianças adoraram. Junto a este grupo, tinha ainda o Frdawls, também afegão. Era parceiro inseparável do Roman. Junto com Asma e Saná, aprendi que as crianças afegãs são muito patriotas. Vários desenhos remetiam à bandeira do país, mesmo que fosse a simples presença do vermelho, verde e preto nos traços. Outros amores deles: Bob Esponja e, claro, celulares. Um smartphone era a principal fonte de informação para um povo até então tido como alienado. As crianças sempre ficavam vendo vídeos no celular. Um ponto de wi-fi gratuito ajudava. Nem era tão caro ter um chip local - cerca de 10 euros.

Foi com eles que senti o primeiro e real nó na garganta. A Saná é uma das garotas mais doces com quem já tive contato. Estava sempre sorrindo e fazia de tudo para eu sair correndo atrás dela entre os becos e barracas amontoadas. Ela sabia, também, fazer a chamada “manha” quando batia na porta do armazém. Achava que nossa amizade lhe traria benefícios, então sempre pedia chinelos e roupas novas. Eu tinha que negar. Com dor no coração, claro, mas não havia outra maneira. Houve um dia que consegui entregar para Lailuma uma sacola cheia de roupas de verão. Foi quando Saná me mostrou o desenho que me obrigou a apressar um pouco o fim do expediente - você pode vê-lo logo abaixo, com o trabalho de outras crianças. Precisava respirar. Foi a única vez que chorei. Chorei pela saudade que sentiria. E ainda sinto.

A "gangue" síria

Ahmad Arnawt, 12, Homs, Síria. A família só podia pagar a viagem para uma pessoa. Ele foi o escolhido. Amigos dos pais ficaram como responsáveis, mas era nítido que Ahmad não recebia a atenção que precisava. Até porque não havia como suprir o enorme vazio. Ele foi uma das primeiras crianças que conheci em Pireus. Já arranhava um inglês básico. “Close eyes, family” (“fecha os olhos, família”), dizia. Foi isso que ele quis expressar na nossa atividade. Desenhou uma casa. A sua casa, com sua família de mãos dadas, e a bandeira da Síria na porta.

Ele andava com o Yasser, o líder dos garotos sírios. Um menino franzino e superarticulado, apesar dos seus... nove anos. Brincávamos entre nós, voluntários, que havia “um velho dentro desse corpo esguio”. Era impressionante como Yasser tinha personalidade. Ahmad e ele tinham a mania de “ficar de mal”. Eles olhavam no seu olho e diziam com cara feia: “you, not my friend” (“você, não meu amigo”). Eram tão próximos que foi natural a família de Yasser acolher o novo amigo.

André Naddeo/UOL TAB

Um dia, quando mal havia acordado, encontrei a “gangue síria”. Estava indo escovar os dentes. Mal enxergava as coisas no caminho. Havia dormido no armazém fechado e sofria com o sol que provocava aquela cegueira momentânea em quem havia saído de uma escuridão quase que total. “My friend”, ouvi um deles gritar, já correndo para um salto no meu colo. Nem percebi que era o Ahmad. Meio cego, e sem esperar por aquela carga sobre o meu corpo, tombei. Fomos os dois para o chão. Mas havia a “cereja do bolo”. Com a queda, ele viu a chance de me dar um “mata leão”. Não foi por maldade. Ele queria brincar, mas acabou prendendo meu pescoço com força. Consegui um jeito de apertar a barriga dele e fazer cócegas. Me livrei do “golpe”, mas ele não escapou da bronca. Virei um “not my friend” meio que permanente. Ahmad não queria mais papo comigo.

Tentei por diversas vezes me aproximar, mas ele se esquivava. Ele finalmente aceitou um abraço de trégua nos meus últimos dias em Pireus, quando os desenhos haviam sido impressos para entregá-los às crianças. A imagem que vou guardar dele foi quando me pediu um casaco fora da hora da distribuição. Estava ventando bastante no porto, e ele vestia apenas bermuda, regata e chinelo. Arrumei uma blusa de malha que não era do seu tamanho. Ahmad ficou coberto até o joelho, mas a cara de aliviado que ele fez quando se encolheu, enfim protegido do vento, serviu como recompensa.

O Sírio-venezuelano

Mouhib ElRifay, 50, nasceu numa vilarejo próximo à capital Damasco. Viveu, em dois momentos distintos, um total de dez anos na Venezuela. Fala espanhol muito bem. Nossa aproximação foi imediata. E ficou ainda maior quando, dias depois, fui socorrido por uma senhora árabe após machucar meu dedo cortando tomates. “Estás bien, chico?” (“tudo bem, rapaz?”), me perguntou. Devolvi na hora: “a senhora é a esposa do Mouhib?”. Ela acenou que sim com a cabeça. Era a minha grande chance de avançar e saber mais sobre aquela família.

Mouhib não aprovou a ideia de publicar fotos da sua esposa. Pediu, inclusive, para eu não citar o nome dela. Tive de fazer uma promessa sobre as selfies tiradas com o celular: “São apenas para recordação, hein, nada de Facebook”. Eles se casaram ainda jovens, com a diferença de idade comum no mundo árabe: ele com 21, ela, 14. Dois filhos vivem na Alemanha - um casal -, enquanto o caçula, Mohammed, acompanhava in loco a triste saga da família.

O meu amigo sírio-venezuelano trabalhou por décadas como chofer no trajeto entre Damasco e Amã, capital da Jordânia. Fazia traslados de executivos, lidava com gente endinheirada. Como tudo era mais barato do outro lado da fronteira, comprava caixas de cigarro e vendia na Síria. “Dava para fazer um bom dinheiro”, lembra. Não tinha vergonha alguma em dizer como migrou ilegalmente para a Venezuela, onde trabalhou como comerciante, para apenas depois conseguir um passaporte do país para ele e sua esposa. O filho mais novo já nasceu em solo sírio, mas os outros dois também possuem cidadania venezuelana.

“Vou fazer o que lá agora? Acho que está pior do que aqui”, reclamava Mouhib, ciente dos problemas do nosso vizinho sul-americano. Tinha um plano B na manga, no entanto, caso a embaixada da Venezuela na Grécia o ajudasse a, enfim, renovar os papéis. “Aí você me acolhe lá no Rio de Janeiro que eu desço para o Brasil”, repetia diversas vezes.

Nunca vou esquecer a tristeza do seu semblante quando nos despedimos. Ele sabia que o fluxo de voluntários era grande e logo viria alguém para me substituir, mas sua expressão era de quem não suportava mais despedidas.

Mantivemos contato pelo WhatsApp. Com a evacuação do porto pelo governo grego, ele está usando os seus últimos recursos para alugar um pequeno apartamento na região de Pireus. Numa de nossas conversas, como forma de apresentar virtualmente minha família, mandei uma foto minha, da minha avó, irmã e cachorro juntos. Ele agradeceu. Sua última frase pesa até agora: “Você já parou para pensar que o seu cachorro está vivendo melhor do que a gente?”.

O Casanova

Por duas semanas, dois jovens libaneses, um criado nos EUA e outro no Reino Unido, estavam no porto fazendo um documentário sobre voluntários. Viviam conosco na Stonehouse e também botavam a mão na massa. No início, porém, eu pensava se tratar de um trio. Havia um outro rapaz no grupo que sempre estava bem vestido, usando seu óculos Ray-Ban e gastando o seu inglês sem sotaque. Só fui descobrir que era um refugiado quando liguei a câmera para entrevistá-lo.

Ao longo da jornada, eu também havia registrado em vídeo alguns relatos de voluntários. E pensei que aquele cara sempre rodeado de voluntárias era um europeu com ascendência árabe. Hassan Mansour, 26, é natural de Aleppo, uma das cidades mais castigadas pela guerra civil síria. “Eu sou o único Mansour que sobrou”, contou ele, que tentava voltar para a terra natal após anos no Líbano justamente na época na qual um míssil atingiu sua casa e matou sua família.

A fluência em inglês permitiu a Hassan mais intimidade com os voluntários. Simpático, sorridente e barba no melhor estilo árabe hipster, era uma espécie de “candidato a vereador”. Conversava com todos. Principalmente com todas. Fiquei sabendo depois que ele se relacionava com uma voluntária grega e outra espanhola, com as duas circulando no mesmo ambiente. Dei-lhe o apelido de “Casanova da Síria”. “Talvez elas queiram provar algo diferente”, dizia ele, evitando cravar o motivo de tamanho sucesso entre as voluntárias.

Hassan e eu chegamos a trabalhar juntos na cozinha. Nas várias confraternizações entre voluntários e refugiados, éramos os enroladores dos wraps, depois de cuidar da limpeza e do corte da salada. Ele sempre dizia ter vontade de conhecer o Brasil e as brasileiras. Como ficamos amigos, me senti à vontade para perguntar: tamanha “pegada” poderia ser reflexo da carência por estar sozinho no mundo?

“Às vezes eu penso nisso. E às vezes penso que só estou aproveitando minha juventude”, explicou. “Aqui em Pireus você vai achar advogados, médicos, pessoas inteligentes, gente bonita. Nós somos humanos”, completou. Atualmente, Hassan está numa relação um pouco mais séria com uma voluntária. Desta vez, segundo ele, é diferente. “Não vou ficar com outra enquanto ela estiver aqui”, afirmou. “Um dia eu quero casar e ter filhos. Claro que eu quero. Mas não adianta eu colocar filho no mundo agora e não poder dar uma casa para eles. Eu preciso trabalhar duro”, disse Hassan. Um dos sonhos do “pegador” é ser ator e trabalhar com teatro e televisão. “Eu tenho certeza de que eu serei um ator famoso”.

A Professora de Inglês

Num dia qualquer em que caminhava rumo à “vila afegã”, senti alguém puxando a minha bermuda. Era o Youssef, um garoto com quem eu tinha desenhado no dia anterior, me oferecendo algumas frutas secas num copo de plástico branco. Apontou para a mãe, que estava acenando perto dali. Fui até lá para agradecer e conheci a síria Zohour Almasri, 37. A professora de inglês de Pireus.

Enquanto Youssef desenhava, Zozô e eu conversávamos. Sua origem era palestina, mas ela sempre havia vivido na Síria, especificamente em Homs, de onde precisou sair por causa dos bombardeios. Talvez seu inglês não fosse tão fluente, mas ela dispunha de um rico vocabulário. Entendia sem problemas as orientações dos voluntários e ajudava outros refugiados.

A comunicação dava a Zozô um bom acesso ao armazém, pois conseguia explicar melhor suas necessidades, além de contar sempre com a compaixão de alguns voluntários – incluindo eu. Descobri que quase todas as manhãs ela ensinava inglês para crianças sírias. Não apenas pela bondade, mas porque ela conseguiu na condição mais adversa realizar um desejo antigo: ser professora.

“Minha família sempre me ocupou todo o tempo. Não podia trabalhar fora e dar aulas em escolas”, explicou Zozô. Ela admitiu que o marido também não permitia que ela trabalhasse fora. “Tive muitas ofertas, mas eu nunca aceitava”, lembrou. Zozô descobriu a vocação quando, ainda em Homs, começou a dar aulas de reforço de inglês e árabe para os filhos, que fizeram “propaganda” do talento da mãe. Foi a deixa para os pais dos colegas de escola pedirem ajuda.

André Naddeo/UOL TAB

"Em época de prova, uns sete estudantes da classe da minha filha iam para casa”, lembrou Zozô ao final de uma aula no porto que contou com 15 crianças (algumas aulas em Pireus tinham quórum de até 30 estudantes). “É necessário que cada criança saiba falar inglês para comunicar-se de alguma forma, seja no ônibus, no supermercado. Todos precisam de conhecimentos básicos para poderem se integrar a uma nova sociedade”, completou. Sempre me encantei com o grau de esclarecimento de Zozô e com seus bons modos, copiados pelos seus adoráveis filhos, Youssef, 9, e Alisar, 13. Realizei atividades de desenho com todos eles.

Um dia, Youssef desenhou a família toda de mão dada, entrando numa casa para a qual ele sonhava retornar o quanto antes. Alisar fez a Branca de Neve misturada com Frozen, o desenho mais impressionante de todos. Zozô fez o logo do meu projeto em papel cartão - ela tinha um caderno especial e me presenteou no último dia. Tinha traços fortes e contou que os desenhos ajudavam a desestressar e a conter a angústia de estar há um ano sem ver o filho mais velho, que vive na Alemanha. “Estamos numa barraca e não podemos dizer para ele que venha. Não pode sair de lá, e não temos dinheiro”, disse, no único momento em que a vi romper em lágrimas: “Toda essa desgraça pelo nosso caminho não foi com nenhum outro intuito se não o de vê-lo novamente”.

O sacrifício da família de Zozô e dos milhares de refugiados que estiveram no campo de Pireus ainda não chegou ao fim. Com a evacuação do porto, muitos deles vivem hoje nos chamados "squats", que são escolas, hotéis e instalações públicas abandonadas. O trabalho voluntário segue sendo necessário, assim como a documentação desta crise humanitária.

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