TODA ARTE É ARTIFICIAL

As máquinas produzem obras que valem milhões, mas elas podem superar a criatividade humana?

O texto que você está lendo foi gerado por mão e mente humanas. É bom esclarecer, afinal, tem muito robô escrevendo comentário, post e até livro por aí. A era digital criou um arquivamento e um acesso tão rápido a massas enormes de imagens e dados que os computadores, com algoritmos e códigos, estão produzindo até pinturas e filmes.

Talvez você nem saiba, mas as notas daquela música ouvida no Spotify podem ter sido criadas por uma máquina.

Em um presente em que ninguém usa matérias-primas para fazer obras-primas, os próprios humanos manipulam e reordenam tudo produzido na história e no campo das artes para criar suas obras. É mais comum um artista moldando pixels que argila, cortando um vídeo do que madeira. Por que, então, não usar uma inteligência artificial com maior poder de processamento para lidar com tantos terabytes de cultura?

Um dos que pensaram dessa maneira foi o artista-programador Sergio Venancio, que criou o software Extentio. Capturando imagens nas ruas com uma câmera digital, o programa detecta rostos e produz desenhos. Vendo o Extintio desenhar no vídeo abaixo qualquer um se pergunta: os computadores podem fazer arte? Até onde chega a criatividade das máquinas?

PROGRAME, COMBINE E TRANSFORME

"A questão-chave é a intenção", defende Venancio, que é professor no curso de design gráfico na Unicamp, além de pesquisador em artes visuais na USP, onde está desenvolvendo o Extentio. "A máquina não tem consciência, a não ser que você programe formas de ela estar ciente sobre o que está fazendo. Mas ela ainda não consegue produzir arte como o ser humano faz."

Parece haver consenso sobre isso. Atualmente, é difícil encontrar algum especialista na área que classifique as obras - sejam quadros, filmes, livros ou outros produtos - geradas por IA como essencialmente criativas. No máximo, belas ilustrações, músicas ok e filmes nonsense.

É possível dizer que as máquinas conseguem cumprir o que Venancio chama de "criatividade combinatória". Ele explica: "É o que a gente faz o tempo todo, quando você tem o domínio de vários elementos e os combina para gerar coisas novas." Um exemplo é o projeto The Next Rembrandt. Desenvolvido pelo grupo financeiro holandês ING em parceria com a gigante tecnológica norte-americana Microsoft, o software examinou toda a coleção de obras do artista holandês e criou um "quadro novo" do pintor morto em 1669.

ERUDIÇÃO EXPRESS

Essas obras novas de mestres clássicos são feitas por deep learning, um dos tipos mais comuns de aprendizado de máquina. Você alimenta o software com uma quantidade grande de informação, e ele analisa tudo detalhadamente. Depois, programadores criam códigos para que o software comece a produzir a partir do que aprendeu.

"Assim como quando ensinamos as crianças, são várias técnicas, várias escolas", diz Alessandra Montini, pesquisadora nas áreas de ciência de dados da Faculdade de Economia e Administração da USP e diretora do LabData, da Fundação Instituto de Administração (FIA). "Eu tenho um programa, outro pesquisador tem outro. São vários códigos para fazer o computador entender as coisas, cada dia inventa-se um código mais moderno, que pode criar um aprendizado mais rápido."

E algumas dessas técnicas já procuram inserir elementos de surpresa no processo, provocando as máquinas a entregarem resultados inesperados. As GANs (generative adversarial networks) são uma das formas de dar mais autonomia ao software. O sistema conta com duas redes neurais que funcionam uma "contra" a outra em uma espécie de jogo. A rede geradora tenta ousar na criação de possíveis conteúdos - quadros, por exemplo - e a rede opositora avalia se aquele produto é convincente e atingiu o objetivo.

A técnica pode ser aplicada e programada de diferentes maneiras para a obtenção de diferentes resultados, dependendo do artista-programador. Por isso mesmo a ação humana ainda é tão importante no processo. Mesmo que a pessoa que programou o software não seja um artista.

O COMPUTADOR É UM FINGIDOR

Humanos também usam a criatividade combinatória. Aprendizes de Picasso, por exemplo, passam anos estudando o estilo do mestre para produzir trabalhos na mesma linha. Pode ser até que, nesses casos, a inteligência artificial (IA) seja melhor do que nós, observa Jhonata Emerick, presidente da Associação Brasileira de Inteligência Artificial (Abria). "A máquina tem a capacidade de processar uma grande quantidade de informações em pouco tempo e buscar características que o ser humano não conseguiria perceber", diz ele.

Não há quem se atreva a dizer que os aprendizes não são artistas, mas por que eles não tiveram o mesmo destaque de Picasso? Porque não chegaram a atingir o que Venancio chama de criatividade transformadora. É aqui que entra a definição da professora de ciência cognitiva da Universidade de Sussex (Reino Unido) Margaret Boden: novidade, surpresa e valor. "Eu diria que é particular do ser humano", opina Venancio.

Na mesma linha vai o professor de filosofia de Harvard Sean Dorrance Kelly em texto publicado na MIT Technology Review. "[A máquina] é capaz de criar música no estilo de Bach. Talvez até melhor do que a do próprio Bach. Mas isso só ocorre porque a música pode ser julgada a partir de um padrão predeterminado. O que a máquina é incapaz de fazer é trazer mudanças aos nossos padrões para julgar a qualidade da música ou para entender o que é ou não música."

Assim como Bach introduziu novas formas de se pensar a música, Picasso mudou o entendimento do que era considerado arte. Precursor do Cubismo, ele ajudou a revolucionar as artes visuais - coisa que a inteligência artificial ainda não é capaz de fazer, opina Kelly. Se em algum momento no futuro nós começarmos a considerá-las criativas, diz o filósofo, não será porque as máquinas nos ultrapassaram. "Será porque nós nos rebaixamos."

PERCEPÇÃO ALTERADA

A realidade é que a inteligência artificial já cria diversos produtos que consumimos como arte. De pinturas expostas em galerias em Nova York e no Japão, chegando a custar mais de US$ 400 milhões, até filmes poéticos que mais parecem obra de um diretor indie. A revista The Atlantic chega a arriscar: "A corrida do ouro da arte produzida por inteligência artificial começou."

Não chegamos neste ponto de uma hora para a outra. Aliás, o uso da tecnologia na arte tem um longo histórico. Há décadas artistas usam ferramentas tecnológicas para auxiliar no trabalho, lembra Silvia Laurentiz, professora do curso de Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes da USP. "O artista sempre esteve às voltas com a tecnologia de sua época. Há um percurso que demonstra que a arte por computador tem sua base histórica, e a IA não pode ser descontextualizada", observa a especialista, que pesquisa lógica da programação.

Mesmo que o artista não trabalhe com essas tecnologias, certamente será impactado por elas. "Toda nova técnica muda o pensamento de seu tempo. Mesmo que você não esteja usando aquela linguagem, de alguma maneira ela está sendo transformadora", afirma Laurentiz. "Quando veio a fotografia, o pintor começou a estudar novos enquadramentos, começou a praticar novas formas de composição. Mesmo que ele continue a trabalhar com a pintura, ela seria afetada pelo processo da fotografia." Esse processo pode até ser inconsciente, mas não dá para ficar alheio às formas que a IA e outras tecnologias mexem com a sociedade como um todo - e, consequentemente, também com a arte.

FERRAMENTA OU COAUTORA?

Para descobrir os limites de criação das máquinas, a GumGum, empresa de inteligência artificial baseada na Califórnia (EUA), e o laboratório de IA da Rutgers University fizeram um teste. Seis artistas e o software de inteligência artificial Cloudpainter receberam a mesma tarefa: criar uma pintura inspirada no expressionismo abstrato de artistas estadunidenses do século passado.

O resultado: é impossível afirmar com certeza qual delas é obra do algoritmo. Visualmente, todas convencem.

Se elas são ou não são criativas, aí é outra conversa. "As máquinas não sabem o que é passar pela experiência da morte de um filho ou viver a expectativa do lançamento de um novo disco", disse Ben Plomion, chefe de marketing da GumGum, ao site Quartz. "Por isso, não acho que a arte gerada por máquinas pode ser algum dia tão apreciada quanto algo feito por um ser humano. Mas as máquinas certamente podem ajudar os humanos no processo de criação."

O MAESTRO SOFTWARE

A cantora Taryn Southern se arrisca a dizer que a IA foi, mais do que uma ferramenta de auxílio, uma parceira artística. Taryn lançou seu álbum mais recente, "I AM AI", em 2018, e causou alvoroço no mundo da música. E não porque as canções tenham recebido aplausos da crítica, mas sim porque foram criadas por inteligência artificial.

Sem conhecimento sobre composição musical, Tayrin delegou a softwares esse trabalho - fazendo alterações quando achava necessário - e escreveu as letras com base nas melodias prontas. "A IA me dá material de inspiração. Um piano não me dá as notas. Eu vejo o piano mais como uma ferramenta", afirmou a cantora em entrevista ao site The Verge.

Achou muito inovador? Pois saiba que David Bowie já usava um programa de computador para escrever suas letras em 1995. O Verbasizer, criado em parceria com Ty Roberts, ajudava o artista num processo que ele já fazia antes, analogicamente: a recombinação aleatória de frases.

"É quase como um sonho tecnológico", definiu Bowie. "O programa cria as imagens de um estado de sonho, sem ter que passar pelo tédio de dormir a noite toda, ou ficar chapado. Ele traz sensações e ideias que, na ordem natural das coisas, eu provavelmente deixaria de lado ou não me envolveria."

UM ROTEIRO SEM SENTIDO

"And I was ready to go/I was a home on the road". Esses versos acima são parte da trilha sonora do filme Sunspring. Você já deve ter adivinhado: tanto a canção quanto o filme foram criados por uma inteligência artificial. Nesse caso, chamada Benjamin.

Durante a apuração desta reportagem, consumi muita coisa produzida por IA. Mas foram essas frases aí em cima que mais me impressionaram, por causa do paradoxo criado ("E eu estava pronto para ir/Eu era um lar na estrada"). Seria apenas coincidência, ou uma prova de que a máquina aprendeu que nós, humanos, achamos o máximo usar figuras de linguagem?

Benjamin, considerado o primeiro roteirista artificial do mundo, escreveu o filme com base em dezenas de roteiros disponíveis online. Mesmo para alguém que não saiba que ele foi escrito por IA, o filme dificilmente passaria por uma obra normal. Fica claro pelos diálogos que tem algo bem estranho acontecendo e, inclusive, uma das observações mais comuns nos comentários do vídeo no YouTube é que a sensação é a mesma de assistir a um filme em uma língua que você não entende direito.

Fica claro que o público tenta dar uma chance a Benjamin e encontrar sentido nas palavras escritas por ele, mas parece ser apenas uma questão de interpretação de quem vê, e não de intencionalidade da máquina.

UMA NARRADORA CHAMADA SIRI

Além de participar da criação de Sunspring, o pesquisador Ross Godwin se aventurou também na literatura. "Eram nove e dezessete da manhã, e a casa estava pesada." É assim que começa "1 the Road", livro escrito por inteligência artificial programada por ele. Assim como no roteiro de Sunspring, as frases da publicação soam estranhas à primeira vista, mas, com algum esforço, se consegue dar sentido a elas.

Godwin tem histórico na produção de textos com uso de IA. Tanto que gosta de se definir como "autor de autores", já que faz inteligência artificial escrever filmes, poesia, peças de teatro e, finalmente, esse livro. Sua tese de mestrado da Universidade de Nova York foi uma série de poemas produzidos por inteligência artificial com base em informações coletadas por três itens que ele levava consigo na mochila: uma bússola, um relógio-ponto e uma câmera.

Usando como referência o clássico "On The Road" (Na Estrada), de Jack Kerouac, a obra em prosa teve um processo de produção parecido, mas quem levou a IA para passear foi um Cadillac. Registrando imagens, sons, localização e horário, o carro alimentava redes neurais previamente treinadas com centenas de livros e localizações. Foram quatro dias de viagem para gerar um resultado que a revista The Atlantic definiu assim: um relato alucinante e estranhamente elucidativo da vida de um robô na estrada, uma combinação do livro "Teste do Ácido do Refresco Elétrico", de Tom Wolfe, com Google Street View, narrada pela Siri.

VOCÊ CHEGOU AO SEU DESTINO

Tem artista tentando burlar o atual domínio da tecnologia no nosso cotidiano para produzir um conteúdo questionador. "Arte é vida, e vida é arte. E não tem como pensar nossa vida sem a tecnologia", afirma Cesar Baio, artista, programador, professor do Instituto de Artes da Unicamp e autor do livro "Máquinas de Imagem: Arte, Tecnologia e Pós-virtualidade". "A programação se tornou um campo para a arte. O objetivo é entender como a tecnologia pode nos ajudar a repensar as nossas atitudes", diz.

Para simplificar, aqui vai um exemplo. Baio tem um projeto artístico que funciona pela insistência do artista em desrespeitar o que a tecnologia manda-o fazer. Em um app de localização no celular, ele define um ponto de partida e um de chegada, mas, na hora de seguir o caminho, sempre toma a direção oposta à determinada pelo aplicativo. O resultado fica salvo na tela do celular e mostra essa disputa de vontades entre o ser humano e a máquina.

"O que eu coloco [em questionamento] é como a gente usa e como produz tecnologias que, em vez de nos distanciar da nossa humanidade, possam nos aproximar dela", diz Baio. "O que resulta no GPS para mim é um desenho muito especial. Não fui eu que desenhei. A forma é decidida a partir de uma tensão entre o que eu quero fazer e o que a máquina quer que eu faça."

Alessandra Montini pensa da mesma forma. Com o avanço da IA, diz ela, "você vai fazer o ser humano ser um ser humano. Parou essa coisa de só fazer trabalho repetitivo. Vamos estimular aquilo que é mais importante: a imaginação."

Criatividade é a habilidade de inventar ideias que são novas, surpreendente e que tenham valor
Margaret Boden, professora e pesquisadora da Universidade de Sussex (Reino Unido)

Pode ser que a gente nunca considere algo produzido por um computador como arte, pela própria natureza do campo e pela dificuldade em definir a intenção e consciência da máquina. "Arte para mim é um fator muito cultural, não depende só de criatividade, de inteligência. É um lugar questionador", opina Silvia Laurentiz.

Mas a criatividade está também em outros campos. E em um deles a IA impressionou ao cruzar um limite.

Em março de 2017, o AlphaGo, criado pelo Google, fez uma jogada inesperada no jogo de tabuleiro Go, considerado um dos mais complexos do mundo. A inteligência artificial ganhou do então melhor jogador do mundo, deixando alguns humanos frustrados com seus próprios limites e, outros, esperançosos com o quando podemos aprender com as máquinas.

Marcus du Sautoy está entre o último grupo. Professor da Universidade de Oxford escolhido para advogar pela causa da compreensão pública da ciência, ele defende que a IA vai nos ensinar a entendê-la, em entrevista para a revista New Scientist. Assim como diversos pesquisadores da área, du Sautoy estudou cuidadosamente o movimento do AlphaGo que mudou as bases da criatividade de máquina como a conhecemos, e não tem receio em dizer que o considera criativo.

Para Sautoy, usar a IA na arte pode ser uma forma de deixá-la se expressar mais livremente e, consequentemente, entendê-la melhor. Mas ele não tem nenhum receio quanto à "substituição" dos humanos pelas máquinas no campo artístico. Pelo contrário. "A IA que estamos criando vai nos empurrar criativamente como humanos. Nós ficamos presos em comportamentos, regras, nos comportando muito mecanicamente. E a IA vai nos oferecer ideias para nos tirar dessa zona de conforto para algo novo", acredita o professor.

Curtiu? Compartilhe.

Topo