Misticismo millennial

Sem culpa, espiritualidade fora de religiões tradicionais encontra terreno fértil no Brasil

Você tem visto astros por todas as partes, mesmo quando não olha para o céu? Se sim, saiba que não está sozinho: nos últimos três anos, o esoterismo ganhou tanto ou mais destaque na mídia quanto teve nas décadas de 1960 e 1970, durante a febre New Age. Os horóscopos - que ocupavam timidamente as últimas páginas de jornais e revistas - passaram a ser a prata da casa em canais de streaming, memes, redes sociais e até nos papos descontraídos entre gente que mal se conhece.

Por falar nisso, conhecer a si mesmo, para os millennials, parece passar também por noções de signos, chacras, pedras de poder pessoal, arcanos maiores ou números mestres. A geração nascida a partir de 1985 é a mais privilegiada em termos de acesso à informação que já pisou sobre a Terra - mas nem por isso duvida de teorias que a ciência não pode comprovar. O que explica essa aparente contradição é o papel que o misticismo ocupa desde tempos imemoriais.

QUE HISTÓRIA É ESSA?

Muito antes de que a nossa vida se tornasse tão atribulada, a espécie humana já estava preocupada com planejamento e, claro, com sobrevivência.

Há milhares de anos, quando tínhamos tempo livre para ficar de barriga para cima observando as estrelas, nossos ancestrais nem sabiam o que eram as luzes do céu, mas notaram que elas apresentavam padrões que se repetiam de tempos em tempos - e que esses padrões coincidiam com oscilações de clima, vegetação, luminosidade, nível das marés e outros fenômenos cíclicos que determinavam as condições de sustento daqueles colegas, muito mais subordinados aos caprichos da natureza do que somos agora.

No passado, inúmeras civilizações ancestrais inventaram a astrologia a seu modo - e mesmo com pequenas diferenças conceituais, todas acreditaram por um tempo que os corpos celestes poderiam revelar não só o futuro das colheitas ou das intempéries ambientais, mas também do destino de cada humano. Ao que tudo indica, a ansiedade não é uma exclusividade do homem moderno, afinal.

De lá para cá, o método científico se sofisticou incrivelmente, mas ainda não entregou soluções para explicar o sentido de uma vida ou prever o seu futuro. Diante do impasse entre acreditar ou não nas estrelas para buscar essas respostas, o estudo isolado dos corpos celestes passou a chamar astronomia, enquanto a astrologia continuou a se ocupar de relações humanas.

Durante o processo de divórcio entre as duas ciências, algo essencial sobre nós não mudou: continuamos curiosos para saber como será o amanhã - antes mesmo de fazer algo com o tempo que nos cabe para vivê-lo. Deve ser essa uma das grandes razões pelas quais a astrologia sobe e desce na moda, mas nunca morreu. No século 21, ela está mais viva do que nunca.

Quanto mais incerto é o cenário socioeconômico mundial, mais pessoas tendem a procurar respostas olhando para cima - ou para as telas de seus dispositivos eletrônicos. Entre 2016 e 2017, as buscas por vídeos de astrologia no YouTube tiveram um crescimento de 67%; no Facebook, a procura pelo termo aumentou 116% e, no Twitter, o assunto cresceu impressionantes 300%. Os dados são do Tubular Labs, ferramenta que mede a audiência de vídeos em redes sociais.

No Brasil, alguns sites como o Astrocentro - um pool de videntes, cartomantes e astrólogos - tiveram o dobro de acessos entre 2017 e 2018. Outros portais que reúnem vertentes esotéricas diversas, como o WeMystic e o Iquilibrio, mais que triplicaram a audiência no mesmo período.

Rede social de astrologia? Temos também. O Astrolink, plataforma criada em 2012 para oferecer previsões astrológicas, virou um ponto de encontro virtual para interessados em astros e tarô. Se você nunca entendeu o que um mercúrio em áries pode significar na sua vida, o site literalmente desenha a resposta, contextualizando cada influência com tabelas e infográficos apreciados tanto por leigos quanto pelos ratos de horóscopo. Em 2017, o Astrolink atingiu a marca de um milhão de usuários cadastrados; em 2018, esse número dobrou.

ASTROS EM AÇÃO

Aqui e ali, outros sinais apontam que o assunto não vai morrer tão cedo: no último ano, até marcas de luxo como a Dior apostaram em estampas com motivos místicos, como o tarô. Tudo o que se relaciona com este oráculo, aliás, vai muito bem. De acordo com a U.S. Games Systems, uma das gigantes na distribuição dos baralhos de tarô, as vendas subiram 263% entre 2016 e 2017.

Para Rebeca de Moraes, jornalista e consultora de tendências da agência Soledad, a procura por uma espiritualidade independente do que oferecem as religiões tradicionais é uma onda que vem de fora, mas encontra terreno fértil no Brasil. "No exterior, a era Trump trouxe um momento muito particular de incertezas coletivas. Aqui, é parecido. As pessoas buscam práticas que possam não só trazer mais sentido para o que está acontecendo no presente, mas também para lembrar que tudo é cíclico e passageiro", afirma.

Rebeca destaca, ainda, que falar de zodíaco ou de numerologia pode ser uma forma de vender nosso próprio peixe. "Em um mundo que cobra tanto que você saiba quem é - mesmo que seja para aperfeiçoar o currículo no LinkedIn ou se relacionar no Facebook - o misticismo traz elementos para que a gente consiga traduzir inquietudes e contar para as pessoas detalhes sobre quem somos", afirma. Atire a primeira pedra quem nunca usou signos para quebrar o gelo em uma paquera ou amizade recente.

NOVA RELIGIÃO?

Os millennials escolheram levar uma vida completamente diferente das gerações anteriores, sem tantas fórmulas fixas de felicidade. O dilema, agora, é como fazer com que seus projetos deem certo - ou como definir o que é dar certo, afinal. Nesse sentido, a espiritualidade esotérica, muito flexível, cai como uma luva para a geração que valoriza tanto a liberdade.

Além de servir como gancho perfeito para falar sobre grandes temas humanos que nunca deixam de ter importância - como amor, medo ou sonhos - os oráculos também acabam cumprindo um papel que as religiões ou a ciência nem sempre cumprem: entregar respostas sobre a vida ainda antes da morte (ou mesmo provas da existência de Deus e que não estamos vagando de maneira completamente aleatória pelo planeta). Tudo isso sem excluir quem não segue os dogmas à risca.

Perguntamos ao antropólogo Hélio Menezes, especialista em cultura afro-brasileira, se o misticismo poderia ser visto como a nova religião dos millennials. Para ele, religião e esoterismo não são concorrentes. Ponto para o misticismo: ele é perfeitamente compatível com as religiões que carregamos desde a infância - aquela que dizemos seguir se o pessoal do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) perguntar.

"Uma diferença importante é que as religiões trazem prescrições morais: pode isso, não pode aquilo, tem os pecados. Já o misticismo é amoral como um todo, então a gente pode afirmar que ele desinstitucionaliza nossa relação com o sobrenatural, o que é bem importante", afirma Menezes.

Para o antropólogo, o misticismo também serve para conectar pessoas em crenças comuns, de domínio coletivo e de forma descomplicada. "É muito mais fácil dizer 'putz, ser de libra é foda' do que chegar para um desconhecido e contar que a gente é indeciso ou inseguro", explica. "Além disso, o misticismo atual tem uma camada de ciência. Hoje em dia, o astrólogo te apresenta uma tese e não um discurso de padre, que diz que você deve acreditar e pronto. Isso também agrada as pessoas", completa.

Leo Martins/UOL Leo Martins/UOL

"MAL NÃO FAZ"

Em uma sociedade massivamente cansada e ansiosa, o contato com diferentes formas de espiritualidade pode garantir a dose de coragem e autoestima que falta para muita gente órfã de crenças. Segundo Menezes, algumas práticas místicas acabam nos revestindo de força para fazer certas coisas, tipo botar um patuá no pescoço e pensar "eu tô seguro, posso entrar nesse avião".

Para além das superstições mais singelas e popularmente conhecidas, diversos rituais acabam servindo como via de autocuidado e reflexão sobre a necessidade de desacelerar do ritmo de manada. Bom exemplo é o da empresária e educadora sexual cearense Clariana Leal, 26 (foto acima). Ela encontrou mais equilíbrio - e prosperidade - desde que decidiu dar vazão ao seu lado bruxa.

"Minha avó era curandeira na Bolívia, cresci no mato, minha mãe também sempre teve uma ligação forte com a natureza. Mesmo morando em São Paulo, procuro manter hábitos de bruxona tipo meditar ou tomar chás. Desde que me entendo por gente, me curo com eles porque já sei as misturas certas de ervas para cada sintoma", conta Clariana, que não dispensa nenhum ritual para ativar os sentidos, como o uso de incensos ou palo santo em casa. "Até tomar banho à luz de velas pode parecer meio bobo, mas torna o momento bem mais aconchegante do que seria com uma luz forte", afirma.

Dona da sex shop Climaxxx, focada no prazer feminino, Clariana conta que a procura por dildos de cristal cresce à medida que as mulheres começam a pensar no próprio prazer como parte de um ritual de equilíbrio e bem-estar. O bullet de quartzo rosa é o mais popular do catálogo, vendido a partir de R$ 120. Ele é prescrito para promover não só o prazer, mas também a cura de feridas energéticas ligadas à sexualidade - tão comuns na biografia de mulheres dos mais diversos contextos socioeconômicos.

FREUD EXPLICA?

Dimitri Camiloto é astrólogo, terapeuta de alinhamento energético e antropólogo. Para o profissional, nossa relação íntima com o misticismo tem a ver também com a força do espiritismo e da psicologia nas últimas décadas.

"Não podemos esquecer o aspecto terapêutico das práticas mágicas. Em um mundo tão instável, é natural buscar referências de sabedoria para manter o nosso próprio equilíbrio. Antigamente, a figura dos padres era muito presente nesse contexto. No século 20, ela foi gradualmente sendo substituída com o avanço de novas religiões - como é o caso do espiritismo kardecista - mas também pela figura do psicólogo", afirma. "A psicologia, de certa forma, também é um saber espiritual. O misticismo acaba atuando em uma frequência parecida, com resultados semelhantes, se a ideia é cuidar de si mesmo e se conhecer melhor", completa.

O psicólogo Pedro Falco, 34, lê tarô e runas fora do consultório. Ele também vê os rituais mágicos como complementos importantes no processo de autoconhecimento por oferecer a oportunidade de aprofundar reflexões intensas e difíceis, comuns a todos nós. Para ele, outra grande protagonista da tendência mística que só cresce nos últimos anos é a internet.  "As redes mudaram muito a forma como encaramos as informações. Antigamente, quando eu tirava um tarô, as pessoas não me perguntavam quase nada. Hoje em dia, elas querem saber qual é o nome da carta, como eu tô vendo o que estou dizendo que vejo, querem ser ativas no processo", afirma. Como psicólogo e consultor dos oráculos, Pedro acredita que essa demanda só existe porque nem a ciência e nem as religiões tradicionais têm dado conta de responder nossas perguntas existenciais como gostaríamos.

VERDADE OU FICÇÃO?

No campo filosófico, um dos maiores detratores da astrologia foi o sociólogo e escritor Theodor Adorno. Em seu livro "As estrelas descem à Terra", o autor analisa três meses de colunas de astrologia publicadas no jornal "Los Angeles Times" e conclui que a astrologia, assim como outras crenças irracionais, funciona como atalho intelectual, reduzindo problemas humanos complexos a fórmulas práticas para lidar com eles sem entender realmente a magnitude dessas questões. No mundo das artes, da política e até da ciência, diversas figuras históricas notáveis flertaram ou mergulharam de cabeça no esoterismo (imagem acima).

A poeta e astróloga paulistana Júlia de Carvalho Hansen, 34, entrelaça as sensibilidades da poesia e da astrologia para produzir em ambos os campos. Além de tocar com três colegas sua editora independente - a Chão de Feira -, Júlia mantém um consultório astrológico bem movimentado em São Paulo e cria playlists que traduzem movimentos planetários usando música, a terceira paixão que vem da infância. "Lua em Touro", uma das playlists mais populares, inclui faixas que vão de Pepeu Gomes a Chet Baker sem perder o que importa: a intertextualidade entre artistas tão diferentes que calharam de produzir músicas com energias semelhantes.

Para escrever mapas astrais, poemas, críticas literárias ou playlists, Júlia lança mão de recursos que são velhos conhecidos nossos desde os tempos em que ficávamos de barriga para cima observando luzes celestes sem saber o que eram: a curiosidade a respeito de histórias humanas e a busca por conexão com o outro, com o universo ou com nós mesmos.

Topo