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O agitado circuito de bailes da saudade em São Paulo, onde todos se conhecem

Camila Svenson (reportagem e fotos) Colaboração para o TAB, de São Paulo Camila Svenson/UOL

Ela vem de vestido longo vermelho, brinco, brilho e sorrisos. Saiu de casa no meio do dia para comemorar seu aniversário — afinal, não é todo dia que a gente faz 91 anos.

Perto das 23h, todos cantam parabéns. O vestido vem lambendo o chão até o centro do salão, onde a mulher dança com energia. Mais à frente, um grupo de damas vestidas de seda e pashmina bailam felizes ao som de uma versão de "Eu e você", de Elymar Santos. É noite de terça-feira e a pista do CAY (Clube Atlético Ypiranga) bomba. Um grupo faz coro para cantar

Tem certas coisas que são muito perigosas
Situações um tanto quanto escandalosas
Mas sempre vale a pena, até correr o risco
A vida é pra viver
Eu e você assim, ao som de um bolero
Pra lá, pra cá, do jeito que eu quero

O Ypiranga ocupa um quarteirão todo do bairro homônimo, na zona sul paulistana. O salão gigantesco tem pé-direito alto, chão de madeira e mesas em volta em formato de U, com um palco no fundo, onde a banda toca. À direita, num terraço bem grande, alguns casais aproveitam para estreitar, com abraços, o tête-à-tête.

Do outro lado da cidade, no cruzamento entre as ruas Guaicurus e Faustolo, na Lapa, um prédio de esquina é anunciado com o letreiro de neon descascado, onde se lê "União Fraterna Bailes". A palavra "bailes" segue com a luz verde apagada há muitos anos, o que não impede seus frequentadores de aparecerem por lá todas as semanas.

Quem passar por ali pode ficar curioso ao reparar a escadaria vermelha aveludada, a partir da porta de entrada, e pensar com saudosismo: "aonde foram parar os carpetes dessa cidade?"

Todas as sextas-feiras, a partir das 18h, quando os portões se abrem, o prédio do União Fraterna recebe cerca de 150 pessoas na faixa etária dos 60 a 90 anos que cruzam a cidade com um único objetivo: dançar.

Fechado por quase dois anos, o baile reabriu suas portas em 7 de fevereiro. Entre uma canção e outra, a banda avisa: "não dancem sem máscara". A maioria obedece. E dança. Agora pode.

Entre o final de 2021 e março, diversos bailes da terceira idade reabriram em São Paulo, com capacidade um tanto reduzida — entre 150 e 200 pessoas. As redes sociais do Clube Vila Maria, por exemplo, anunciam: "Os Grandes Bailes Voltaram" — a festa acontece todos os sábados, a partir das 20h.

No União Fraterna, a bilheteira cobra R$ 25 por pessoa e um segurança verifica se a vacina contra covid-19 está em dia. A escadaria desemboca em um espaçoso salão com piso de madeira e paredes azuis com detalhes rococó em tom pastel. Ao redor, as mesas estão dispostas lado a lado, arrumadas com toalhinhas azul-royal. No palco, a banda Império Corpo e Alma toca uma versão dançante de "Deslizes", do cantor Fagner.

Quem quer, dança. Segunda-feira é dia do Clube Zais, na Vila Mariana; às terças-feiras tem o do Ypiranga. "Se eu quiser, consigo achar lugar para dançar todos os dias da semana", diz Odail José, 78, aposentado e frequentador dos bailes do União Fraterna e também Vila Maria.

Margareth Gomes da Silva, 64, conhecida como Meg, frequenta os bailes desde 2001, quando uma vizinha pediu um sapato vermelho emprestado para ir a uma festa. Meg acabou indo junto no extinto baile "Carinhoso" do Ipiranga. A partir daí, não parou mais.

"Fui, não dancei, mas me diverti. Nessa época eu estava com uns 44 anos. Achei bonitinho as senhorinhas com vestidos de babado e os senhores que vinham falar que estavam procurando uma noiva, que queriam casar, eram umas cantadas engraçadas", conta Meg.

Nascida em Mandaguari (PR) e criada em Bertioga (SP), Margareth começou a dançar depois de se divorciar do segundo marido. "Papai me casou muito cedo, com 14 anos. Só fui estudar quando me separei do meu primeiro marido. Os bailes são uma libertação para as mulheres, mas não são só as separadas e viúvas que vão. Tem muitas mulheres casadas que fogem do marido pra ir dançar."

No União Fraterna, a certa altura do baile de sexta-feira, uma mulher cruza a pista com seu parceiro de dança e cumprimenta a reportagem com um aceno de cabeça. Movimenta-se pelo salão como uma atriz de cinema — ou talvez como a garota mais popular da escola. Alta, tem os cabelos brancos e usa um vestido comprido e ondulado de bolinhas e sandálias de salto douradas.

Liria Turra, 77, é gaúcha de Getúlio Vargas e mora em São Paulo há 53 anos. Quando era solteira, gostava muito de dançar, mas depois do casamento, parou. "Eu dançava só em casamento, em festinha de aniversário de família. Com meu marido, não podia sair, porque ele era gaúcho e italiano", conta ela, viúva desde 2019.

"Não sou desse mundo, sou uma alienígena, venho de outro planeta. E quando danço, vou para o sobrenatural, vou às nuvens. Me sinto flutuando, meu espírito fica livre. A dança afasta a morte, a doença", conta Liria, que dança três horas por dia, todos os dias da semana, acompanhada de Alisson Pires, 30, seu personal dancer.

Pela camisa preta social, calça preta e gravata vermelha, é possível reconhecer na pista os personal dancers, dançarinos profissionais contratados tanto por uma seleção de músicas como pela noite inteira. Eles estão presentes nos bailes mais tradicionais da cidade e, geralmente, são os homens mais jovens na pista de dança.

A profissão exige versatilidade nos ritmos, que variam conforme o gosto das clientes e a banda da noite, mas um bom dançarino particular, segundo Rosângela Lima, 68, tem que dançar do bolero à gafieira com excelência.

Dorielson Larcerda de Aquino, 40, mais conhecido como Dori, é organizador dos bailes de sextas-feiras no União Fraterna. Ele conta que, antigamente, a casa contratava dançarinos por noites: eles ficavam disponíveis para dançar com qualquer pessoa que colocasse seu nome na lista. Hoje em dia, as regras mudaram um pouco. Agora eles são freelancers e é possível adquirir fichas que equivalem a uma seleção de canções. Cada ficha custa R$ 10, e a seleção equivale a uma rodada de quatro ou cinco canções.

Marcos Roberto de Lima, 51, é personal dancer há mais de 10 anos. Antes de entrar para a profissão, dançava nas pistas do Madame Satã — clube conhecido pelo público underground de São Paulo desde os anos 1980.

Após o término de um relacionamento, foi ocupar o tempo livre com cursos e projetos. Foi assim que encontrou aulas de informática e de dança de salão dentro da galeria Olido, no centro da cidade. Depois das aulas de terças-feiras, os alunos se juntavam e iam ao Clube Piratininga. Foi lá que Marcos recebeu o convite para compor a equipe fixa de personal dancers da casa.

"Quando comecei, tinha que dançar duas músicas com cada mulher e levá-las de volta às mesas, principalmente as senhoras", relembra. "Certa vez conheci uma mulher no Clube Piratininga, mas ela já tinha seu dançarino particular. Quando ele parou de trabalhar, ela me ligou, me contratou e dançamos só o básico, dois pra lá e dois pra cá, bem colados. Acabou rolando entre a gente, mas foi só uma noite", conta Marcos.

Hoje em dia, Marcos trabalha como personal dancer em tempo integral, em bailes que vão das 22h às 4h ou das 15h às 23h. Ele conta que os ganhos são satisfatórios, podendo chegar a R$ 200 por noite.

A organização do Clube Zais não se intimida. Anuncia na porta ser "a casa mais dançante de São Paulo". Funcionando há 32 anos, o baile na Vila Mariana recebia, antes da pandemia, até 700 pessoas por noite. Atualmente, o número não tem passado de 100, mas as portas continuam abertas.

Seu interior é todo revestido de espelhos multicoloridos, carpete, aquários e miniaturas de estátuas neoclássicas. Os homens convidam as mulheres para a dança, mas isso não é uma regra. A pausa na música é para trocar de par.

"É feio separar no meio da seleção", diz Roberto Garcia, 76, morador da Vila Prudente, amante do chá-chá-chá, do bolero, da gafieira e frequentador de bailes desde os 17. Alberto defende que o melhor chão para se dançar é o de madeira, lisinho. Também reclama de como as festas mudaram ao longo dos anos. "As pessoas não dançam mais como antigamente, isso aqui não é baile, é caminhada. As coisas boas foram embora e não voltam mais."

Roberto Garcia, 76, frequentador do Clube Zais

Apesar do principal foco dos bailes ser o público da terceira idade, quem organiza e articula as principais festas da cidade tem menos de 40, como é o caso de Daniel Amado, 37, responsável pelas segundas-feiras dançantes no Zais. "Sempre fui envolvido com música antiga, Cauby Peixoto, Ângela Maria. Foi acontecendo. Nunca tinha entrado em um baile, o primeiro em que entrei foi o meu", conta à reportagem.

No Ypiranga acontece algo parecido. Antigamente a organização era de Apolônio Vilaça, que entrou no negócio 14 anos atrás, e faleceu em 2021 devido a complicações em uma cirurgia na aorta. Agora, as noites são comandadas por sua neta, Patrícia Vilaça, 25, que está terminando a faculdade de direito.

"Sempre fui muito próxima do meu avô e, aos 13 anos, comecei a trabalhar no caixa do bar e fui seguindo. Em 2015, meu avô estava meio desgostoso das festas, e eu, vendo o movimento caindo, pedi pra ele me dar aquele baile. Hoje faço festa com até 200 mesas no salão. Amo esse público da terceira idade, amo o que faço, e vejo que tem muita reciprocidade", conta.

Os bailes da saudade são um microuniverso particular. A maioria se conhece, pois frequenta as mesmas festas há anos. Os personal dancers também são os mesmos — e é possível até reconhecer um garçom ou outro que trabalha dentro do circuito.

"Faz 30 anos que trabalho nos bailes. Já fui caixa, bilheteira, gerente e agora sou garçonete", conta Vera Lucia da Silva, 57. "Comecei em uma festa chamada Santa Samba, na avenida Cruzeiro do Sul, e dali em diante nunca mais parei."

Atualmente, Vera é funcionária fixa nos bailes Vila Maria e do Clube Ypiranga. Ali, percorre o salão principal com desenvoltura. O evento lembra um grande casamento. Segundo Silvia da Luz Ferreira, 65, frequentadora assídua das "Terças de Gala", a banda Brisa Mar é a melhor de todas.

Cada frequentador tem sua mesa cativa e esses lugares geralmente são respeitados à risca. O público cumpre um circuito fiel de bailes, contando ao TAB que "maratonam" até seis festas semanais.

O circuito é mantido principalmente pelo público que aprecia festas que seguem o formato de banda no palco e mesas ao redor de uma pista onde casais dançam colados. O modelo vem de uma lógica antiga de celebração que se transformou completamente nos dias de hoje, com jovens se divertindo em pistas lotadas, raramente dançando em par.

Por ora, a cena dos bailes da saudade sobrevive e pulsa. Mas o público não se renova. "Perdemos muitos amigos, mesmo antes da pandemia. A maioria das minhas amigas tem mais de 70 anos. Esse medo da morte não existe no momento do baile, que é uma celebração muito viva. As pessoas têm muito carinho umas pelas outras", diz Meg.

Adentrar esses salões decorados é como atravessar um portal. Nem tempo nem espaço são os mesmos. O mundo hoje tem menos bolero, mais dança solitária e menos rococó no teto.

Aqui no baile, a vida parece uma orquestra bem arrumada onde se usam sapatos dourados, vestidos de tutu vermelho, camisas de seda e máscaras de lantejoulas.

Na saída do clube, um casal solitário ensaia mais alguns passos, antes de o táxi chegar. É quarta-feira, e amanhã tem mais.

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