OITO ANOS DE ANGÚSTIA

Santa Maria (RS) se prepara para o julgamento do incêndio na boate Kiss, tragédia que matou 242 pessoas

Leonardo Catto (texto) e Renan Mattos (fotos) Colaboração para o TAB, de Santa Maria (RS)

Santa Maria (RS) vive um luto desde 27 de janeiro de 2013. Há quem deixe a dor externar. Há quem guarde o luto no fundo do inconsciente. Vigílias e caminhadas costumam ocorrer no dia 27 de cada mês.

Todos, entretanto, vão reviver aquela noite durante o julgamento de Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, que começa nesta quarta-feira (1º) em Porto Alegre. O incêndio da Boate Kiss leva os quatro ao banco dos réus por homicídio com dolo eventual 242 vezes consumado e 636 vezes tentado (pelo número de feridos).

Spohr e Hoffmann eram sócios da Kiss. Segundo o inquérito, a boate não tinha porta ou rota de emergência, estava superlotada e tinha irregularidades quanto ao alvará. Marcelo de Jesus dos Santos era vocalista da banda que tocava na hora do incêndio. O fogo começou a partir de um equipamento de fogo de artifício, e Marcelo é quem segurava o objeto. Leão trabalhava como freelancer na produção da banda e comprou o equipamento.

Ao lado do prédio da Kiss funciona um CFC (Centro de Formação de Condutores). Em frente fica o estacionamento do supermercado onde corpos aguardavam o recolhimento e sobreviventes eram atendidos. Aquele ambiente observa movimento constante de carros no sentido único que leva até a avenida Rio Branco, principal via da região central.

O transe da rotina é interrompido quando um celular é erguido. Alguém fotografa a fachada do prédio, pintada todos os anos pela AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria), criada logo após o incêndio. Os braços voltam a ficar ao lado do corpo. A pessoa segue o rumo.

A vida seguiu para o médico anestesista Claudio Guimarães de Azevedo, 52, mas não da mesma forma. Em 1999, o carioca veio viver em Santa Maria para trabalhar no Hospital Geral do Exército. Na madrugada do incêndio, Azevedo atendeu pessoas em frente à boate. Depois, coordenou o atendimento integrado dos hospitais locais.

Hoje, ao relembrar aquela madrugada, o tom é ameno. A disciplina militar do tenente-coronel está enraizada nos jargões. Foi com este filtro que ele depurou as lembranças.

Azevedo saiu de casa às 3 da manhã, após o chamado no Hospital do Exército, que fica a 5 minutos de onde mora. Lá, viu quatro vítimas chegando em uma Kombi, todas mortas por asfixia. Entendeu, então, que devia ir até a boate.

Quando pôs os pés na rua dos Andradas, viu que o conhecimento técnico não seria suficiente. O socorrista deixou o local em direção ao Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo — hoje, Complexo Hospitalar. No maior hospital privado do interior gaúcho, assumiu a organização e coordenou transferências de pacientes para outros municípios.

Lembra que, em um curso da EsAO (Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais), aprendeu habilidades como liderança e comunicação. E se questionava sempre: quando vou usar isso? Naquela noite de 2013, a guerra chegou, ele conta.

Hoje, já aposentado do Exército, considera-se "recuperado pelo tempo". Conhecia familiares de vítimas, acompanhou suas dores. "A gente tem que saber separar o pessoal do profissional, senão a gente vai junto."

A poucos metros da Kiss, na avenida Rio Branco, o ponto de táxi Central é definido pelos motoristas como "uma coisa que nunca para". Há oito anos, sem os aplicativos de corrida, conseguir um táxi na saída de um show era difícil. Naquela noite, os táxis da Central serviram de ambulância.

Valmir Martins de Oliveira, 60, chegou a deixar jovens na Kiss para aquela festa. Lembra especialmente de um trio que levou até a porta da boate e que, no último minuto, preferiu seguir para outro lugar.

Quando percebeu a movimentação estranha na madrugada, saiu do ponto e foi até a esquina. Levou três vítimas ao hospital com um Gol que utilizava.

Naquela madrugada conseguiu dormir e acordou com o número crescente de vítimas anunciado no rádio. Voltou a trabalhar e viu, do ponto, carros de funerárias e de veículos de imprensa de todo o mundo. Chorou muito com o que aconteceu.

"Faltou caixão", diz ele, lembrando-se de ver um carro funerário "que mal andava" de Tupanciretã, cidade distante cerca de 90 km de Santa Maria.

"A vida continuou normal, mas triste. Eu conhecia 27 pessoas que morreram, entre vizinhos ou filhos de amigos. Passo, todo ano, milhares de vezes ali. Dá um aperto em todas. Lembro do povo quebrando a parede para sair, a pilha de corpos no caminhão. Entrei com os mesmos clientes que levei ao Farrezão [ginásio do Centro Desportivo Municipal] para ajudar a identificar", diz ele.

O taxista ainda trabalha no mesmo ponto. Não se privou do turno da noite, ainda que tenha visto o movimento cair. A partir daquele dia 27, diz Valmir, entendeu que não devia ter pressa na vida.

Azevedo e Valmir se envolveram com a tragédia pelo trabalho. Maria Aparecida Neves, 63, e Cezar Augusto Madruga Neves, 60, entraram nela pelo pranto. Eles são pais de Augusto Cezar Neves, que morreu no incêndio da Kiss aos 19 anos.

O choro, contudo, é diferente na casa em que o casal ainda vive, no bairro Divina Providência. Cida não tem receio de derramar seu lamento. Cezar resguarda o luto. Na sala, a primeira coisa que se percebe é o retrato da formatura do filho no ensino médio.

Encarando o luto de forma diferente por oito anos, é o apoio mútuo que os mantém juntos. Cida confessa que gostaria de sair dali — "não gosto mais de Santa Maria". O destino seria Florianópolis. Ela acha, porém, que Cezar sente que não pode abandonar o filho.

O quarto do filho continua intacto. Há medalhas de torneios escolares penduradas. A cama está arrumada. Em um móvel, há documentos como a carteira de estudante de Augusto, calouro do curso de ciências da computação na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). Três frascos de perfume ficam ao lado. Cida olha tudo aquilo com mais tranquilidade do que quando fala sobre a perda. Ao começar a contar sobre o vazio, chora. Ela não sente mais o cheiro de Augusto.

"Fiquei muito revoltada. Agora, não é que estou conformada, mas aceito um pouco", diz.

A relação de Cezar com o quarto é curiosa. Ele costuma abrir gavetas, mexer nos objetos como carteira e sapatinho de criança e guardá-los novamente, sem falar sobre o que encontra por lá.

Cida se aposentou do serviço como camareira. O pai sai de manhã para trabalhar. Não volta para casa no almoço, tampouco leva marmita. Retorna no começo da noite. Ela não critica a forma com que o marido lida com a dor. Ela mesma confessa "não ter muita paciência para o psicólogo". Buscou atendimento logo que a tragédia aconteceu, mas não manteve. Retomou as consultas com psiquiatra apenas em 2020.

"Tomei remédio até 2015 e parei. Ano passado, procurei cardiologista, mas tinha só ansiedade. Estou tomando novamente. Depois que parar essa função [do julgamento que se aproxima], vou voltar a tomar só chá", afirma ela.

Uma tenda na praça Saldanha Marinho homenageia as 242 vítimas com fotos. Lá, familiares da associação costumam se reunir. A estrutura fica em frente a uma agência bancária.

Em 19 de novembro, a fila para entrar na agência fazia curvas e as pessoas buscavam a tenda, à procura de uma sombra. A diarista Elisa Pilar, 48, estava na fila para retirar o cartão que lhe dá direito ao auxílio emergencial do município. Ela definiu o local como "bem esquecido" pelos santamarienses.

Ao lado da Kiss, um prédio residencial de três andares tem três unidades abandonadas. Uma delas é a que divide parede com a antiga boate, no térreo. Outras duas ficam no subsolo.

O síndico do prédio é Franco Julior Machado, 29. Ele se mudou para lá há três anos, em busca de um aluguel mais barato. Ele não se incomoda em morar próximo de onde a tragédia aconteceu. Comenta que há curiosidade quando passa o endereço e não consegue entrar em um Uber ou 99 sem ser questionado sobre o local. "Falar disso não é legal. E falta empatia. Tem gente que é pouco humana", afirma.

O prédio da Kiss já foi desapropriado em 2017. As chaves foram cedidas para a AVTSM e a intenção é construir um memorial. Um concurso promovido pelo IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) já selecionou um projeto. Entretanto, não há previsão para o início das obras. A pedido da associação, e em memória dos que morreram ali, o prédio que pegou fogo só será demolido quando o julgamento acabar.

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