FOME NA ABUNDÂNCIA

PIB per capita elevado contrasta com pobreza em ricas regiões do agronegócio em Mato Grosso

João Peres e Tatiana Merlino (reportagem) e Fellipe Abreu (fotos)* O Joio e o Trigo, de Sorriso e Sinop (MT)

Todo dia, João Maria Alves, 61, sobe na bicicleta para correr atrás de trabalho. Quando dá sorte, pega um lote para carpir ou um jardim para passar agrotóxico: foi a maneira que encontrou para usar o que aprendeu como peão de fazenda -- ele foi demitido no começo da pandemia.

Sem renda fixa, João e sua companheira, Tereza, se alimentam quando conseguem bicos - ela, como diarista. Quando não, vão se virando, "do jeito que nós pode. Mas quase todo mês vem a turma das igrejas evangélicas e volta e meia traz uma cesta básica pra nós".

João mora em uma favela de Sinop (MT), conhecida como a "capital do Nortão" e uma das cidades líderes na produção de soja do país. A favela é nova: não tem nome nem é regularizada, mas já tem padrinhos políticos que trazem promessas. São três ruas de chão de terra e barracos de madeira. Em torno do pujante agronegócio, a pobreza brota fácil que nem milho.

Empurradas para as bordas, as favelas não chegam a representar um obstáculo para o discurso sobre pujança, organização e civilização-modelo. Quem caminha pelas áreas centrais de Sinop encontra uma cidade planejada e quadriculada, de avenidas largas, praças e rotatórias. Restaurantes e bares viciados em sertanejo. Lojas bem arrumadas. Um shopping recém-inaugurado.

Perto do meio-dia, um homem de blazer bege e calça cáqui conversa impaciente ao telefone, andando de um lado para o outro em frente ao edifício espelhado na Avenida Bruno Martini. Um outdoor estampando neve oferece novos lotes abertos no Recanto Suíço. Perto dali, crianças passam mais um dia agradável na escola Maple Bear, voltada ao público "premium A++", com mensalidades em torno de R$ 2.500. Em poucos minutos, as mesas do Pátio Piemonte receberão os primeiros fregueses, que, se quiserem, podem caminhar alguns poucos passos para chegar à concessionária de barcos ou à loja de decoração.

Nessas bandas, só existe uma coisa capaz de se espalhar mais rápido que semente: a construção civil. Obras brotam numa velocidade espantosa em Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Sorriso ou Sinop, todas às margens da BR-163. Em Sorriso, a imensa loja da Havan em breve deixará de estar rodeada pela soja: enquanto a última colheita avança, uma placa já anuncia a venda de lotes.

Longe da Havan, a favela sem nome de João atrai novas pessoas. Ali e em outras favelas da região, o roteiro se repete: as mulheres são diaristas, os homens são pedreiros, as crianças não estudam e o aluguel se tornou caro demais.

Foi a promessa de empregos na construção que motivou a família de Alexsandra de Souza Silva a deixar Parauapebas (PA), a 1.400 quilômetros de distância, e se mudar para Sinop. A promessa se cumpriu. "Se ele quiser parar, tem de dizer que não vai. Porque serviço tem demais", ela conta. Na porta da casa de tijolos estão filhos, netos e vizinhas.

É manhã de sexta-feira e nenhuma criança está na escola. "Esse aqui eu ia botar na escola, mas não achei vaga. Vou esperar o ano acabar pra ver se consigo." Foi a filha Emily quem insistiu que deveríamos conversar com Alexsandra. A garota tem nove anos, e da escola tem pouca lembrança. "Ela estudou só um tempinho lá no Boa Esperança [um bairro]." Não há vaga, não há transporte escolar, nem o conselho tutelar parece chegar a uma área que oficialmente não existe.

"A gente não conhecia esses bairros. A gente ficava ali no centro, numa bolha, e acabava preso ao discurso de que Sinop é rica", conta Luana Grassi da Silva, assessora da vereadora Graciele Marques dos Santos (PT). Graciele é a única mulher nesta legislatura e a única que se opõe ao discurso predominante de riqueza e progresso, de que a região foi colonizada graças aos esforços dos "fundadores", um punhado de migrantes do Sul que ganharam terras durante a ditadura.

Quem nos apresentou aos bairros pobres da cidade foi Graciele. "A riqueza do agro não chega para todos", diz, enquanto caminha pelas ruas da favela onde mora seu João. "Na cidade, há locais que nem foram regularizados, onde vivem pessoas que foram expulsas do campo."

Em 2020, a vereadora e algumas organizações de professores universitários encomendaram outdoors com críticas ao governo de Jair Bolsonaro. Um deles dizia: "Cemitérios cheios, geladeiras vazias. Governo ruim não salva vidas nem a economia". Os outdoors foram destruídos. O dono da empresa que imprimiu as mensagens foi ameaçado e teve de entrar em acordo com a vereadora e as organizações para devolver o dinheiro e remover as mensagens estampadas nos outdoors. Graciele também foi ameaçada.

Em 2021, Graciele causou revolta entre os colegas, ao convidar para uma audiência pública a professora Lélica Lacerda, da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). "No caminho pra cá eu fiquei bastante desconcertada de ver como os homens brancos conseguem ser absolutamente incompetentes e não ter autocrítica nenhuma sobre eles", disse Lélica, num longo discurso em que criticou o agronegócio e a classe alta de Sinop.

Na sessão seguinte, os vereadores chegaram a pedir que Graciele fosse exonerada. Celsinho do Sopão (Republicanos) afirmou que era preciso "pedir perdão pra raça branca". "O que ela cometeu é um ato de racismo (...). Não podemos deixar que passe impune (...). Desculpem, pioneiros da nossa cidade. Desculpem, homens brancos, mulheres brancas. Desculpem, homens negros, todas as raças."

Pela história oficial, a cidade foi criada pela Sinop (Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná), que teria comprado na região um terreno de 500 mil hectares no começo dos anos 1970 - atualmente, a empresa responde a um processo por grilagem. Na Câmara Municipal, um painel exibe essa versão (sem a parte da grilagem). No alto, acima de todos, estão os colonizadores brancos, rodeados pela frase: "Sinop, símbolo de fé, patriotismo e trabalho."

Em 2020, os vereadores demonstraram irritação com um grafite pintado na cidade em homenagem à ativista ambiental Greta Thunberg. "Aí vem jogar na sociedade de Sinop uma gravura daquela moça, a cretina. Eu errei, desculpe. A Greta", discursou o vereador Professor Hedvaldo Costa (Republicanos), ex-secretário de Educação, Cultura, Esportes e Lazer. "Aqui só é desmatado como a lei diz, os 20%. Quem desmata mais vai pra cadeia. A sociedade sinopense foi bombardeada pela falta de respeito."

O grafite foi apagado e os vereadores aprovaram uma lei que proíbe que pessoas de fora de Sinop sejam homenageadas em nomes de ruas ou em obras de arte colocadas em lugares públicos. Pouco tempo depois, a câmara dos vereadores aprovou uma homenagem a Bolsonaro.

O PIB per capita de Sinop, Sorriso e Lucas do Rio Verde está entre os mais elevados de Mato Grosso. Segundo o IBGE, em Sorriso fica em R$ 69.023 (18º maior do Estado). Lucas vem logo em seguida, com R$ 68.110. Sinop, com mais habitantes, tem PIB per capita de R$ 46 mil.

A julgar pelos dados oficiais do Ministério da Cidadania, Lucas do Rio Verde tem a pior situação em termos de extrema pobreza, acima da média do Mato Grosso.

Em Sorriso, o Ministério da Cidadania contabilizava, no final de 2021, 1.821 famílias em situação de extrema pobreza. Porém, só a Cufa (Central Única de Favelas) diz distribuir 500 cestas básicas por mês.

Numa manhã de sábado, a coordenadora Luzinete Aparecida Alves reunia outras três mulheres para uma conversa na sede da Cufa, na zona leste de Sorriso. "Meu Deus, é uma cidade tão rica. Aqui nós temos bilionários. Mas tem pessoas também que são muito pobres. Gente que, olha, só pela misericórdia."

Durante a pandemia, o volume de doações aumentou, mas também aumentou exponencialmente a procura. A reportagem perguntou a Luzinete se algum órgão da prefeitura atua em parceria. A resposta foi negativa. "Aqui a maioria das pessoas vive mesmo para o aluguel e para comer", prossegue.

Ao lado dela, Ioná de Sousa Lima da Silva oferece uma história entre tantas. O marido veio do Maranhão em 2017, e em seguida mandou chamar a família: havia conseguido emprego em um restaurante. A família paga R$ 650 no aluguel de uma casa de madeira. A segregação entre os lados rico e pobre da cidade faz piorar a situação: em alguns casos, o custo de vida é maior do lado pobre. A entrega do botijão de gás sai mais caro, por exemplo.

Em Sinop, faltam políticas públicas de combate à fome, mas não assistencialismo. Celsinho do Sopão, o mesmo do "perdão pra raça branca", distribui sopa aos sábados, desde 2012, por meio do projeto "Sopão para Todos". De acordo com a biografia publicada no site da Câmara Municipal de Sinop, "além da sopa que é distribuída todos os sábados, também ajuda a comunidade com cestas básicas, materiais escolares, promovendo ações em datas comemorativas, com o Dia das Crianças, Páscoa e Natal, com brincadeiras e entrega de brinquedos".

Moradora do bairro de Bom Jardim, em Sinop, Maria Madalena Pereira nasceu em Pérola (PR), numa família de trabalhadores rurais. Há oito anos, mudou-se para a capital do Nortão, onde a família já vivia desde que "foi expulsa por fazendeiros que colocaram gado na terra onde moravam". Foram atraídos pela promessa de ofertas de emprego.

No bairro onde mora, na periferia de Sinop, não tem saúde, transporte e escola, "só o ensino básico. E quando o pobre ganha o primeiro dinheiro, é pra comprar uma moto. É muito difícil se estabelecer em uma cidade onde não tem transporte público, então, o pessoal compra moto".

Marcamos um encontro na frente da casa de Madalena, num bairro com ruas de terra. De lá, seguimos com ela até uma área onde, após muita luta, ela está criando uma horta comunitária. Numa cidade marcada por assistencialismo, produzir alimento de forma comunitária é algo inédito.

Para ter acesso a alimentos frescos, os moradores de Bom Jardim precisam percorrer seis quilômetros e atravessar a BR para chegar à primeira feira, que acontece uma vez por semana. Os mercadinhos locais têm preços muito altos. "O agronegócio não dá emprego e não produz comida. Aqui, a maioria produz soja, e a soja não é para comer."

Madalena tem 52 anos. Pele negra, sorriso largo. Com voz forte, conta que a história da horta começou quando ela chegou à cidade, fugindo da violência doméstica. Viu uma terra sem uso e, em 2021, o terreno, propriedade da prefeitura, foi cedido por 30 anos à associação de moradores do bairro, presidida por ela.

A fome é um projeto. Como se combate a fome? Tinha um pedaço de terra, gente passando fome, inclusive eu. E por que não podemos ter acesso à terra? Porque não existe interesse em combater a fome.

Maria Madalena Pereira, Moradora do bairro de Bom Jardim, em Sinop

No extremo oposto da cidade, voltamos a conversar com João. Diferente de outros moradores da favela, ele está na região há décadas.

"Era bom na época porque tinha onde plantar um pé de arroz, milho, criar uma galinha, um porco. Mas daí, devido a ir abrindo, os fazendeiros irem se apossando das terras, tudo hoje é feito no maquinário. Para nós já não sobra esse espaço aí, né? Tem que se virar na cidade."

A era do latifúndio improdutivo, por incrível que pareça, deixou saudade: o hype da soja é tão violento que não sobra nenhum metro quadrado para o cultivo de alimentos. Os grãos são plantados até na margem da rodovia, em qualquer lugar onde se possa "passar veneno" (no jargão local) e passar trator.

Os vizinhos de João chegaram recentemente, movidos pela propaganda da indústria-riqueza do Brasil ou pelos serviços disponíveis na cidade, em especial o sistema de saúde. Maranhão e Pará são as origens mais comuns. É o caso de Maria de Fátima de Souza.

"Uma amiga minha do Pará falou que aqui era bom de trabalho", relata. "Eu morava de aluguel. Um senhor falou: 'Fátima, tem uma invasão'. Eu vim ver, mas não tinha dinheiro. Sabe o que eu fiz? Dei uma geladeira, porque eu tinha uma geladeira velha. Dei uma televisão. Dei o que eu tinha pra conseguir [a terra]. Fiquei sem nada, mas dei. E depois fui conseguindo."

A partir daí, a história de Fátima coincide com a de outros moradores dos bairros pobres. Como tantos, ela sofreu atropelamento por estar do outro lado da rodovia — não há passarelas. As linhas de transporte público não acompanharam o crescimento de Sinop. A bicicleta acaba sendo o principal meio de transporte.

Fátima conta que chegou a ficar totalmente imóvel e contou com a ajuda dos vizinhos para fazer o básico. Para quem vivia do emprego de diarista, só restou contar com doações de ex-patroas para remédios e alimentos. Quando melhorou um pouco, passou a revender salgadinhos e refrigerantes na favela.

Em novembro de 2021, quando a reportagem visitou Sinop, vários moradores demonstravam otimismo: segundo eles, a promessa da prefeitura é de que no começo de 2022 mudariam para um conjunto habitacional. A promessa não foi cumprida. Agora, a administração municipal fala em entregar a obra em setembro, às vésperas da eleição.

*Com colaboração de Guilherme Zocchio

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