A noite caiu mas ainda não havia escurecido às margens da estrada que liga o açude Cocorobó (BA) à BR-116. Sentados em frente de casa, quatro vizinhos não hesitam quando questionados. "Sim, a verdadeira Canudos é aqui." Um deles vai até o imóvel do lado, onde mora com a família, entra na cozinha e tira de debaixo de um armário duas sacolas de supermercado. Afasta um jarro e distribui em cima da mesa dezenas de cartuchos de bala enferrujados.
O gari Olímpio Santos, 65, faz isso para não depender das palavras. Quer provar aos visitantes que ali bem perto ergueu-se o Arraial de Belo Monte, povoado dizimado durante a Guerra de Canudos pelo Exército brasileiro, em 1897. Passados quase 125 anos da quarta expedição militar que acabou com uma suposta revolta popular em oposição à República, a sombra dos 25 mil mortos e 5 mil casas derrubadas persiste sobre o povo do sertão.
Ali, todos são herdeiros do trauma deixado pelas mãos do poder militar e político. Ainda hoje, aquela destruição volta a assombrar alguns deles. Gente que vive refazendo a moradia. Primeiro, pela guerra. Depois, quando a construção do açude, em 1969, afogou a comunidade reerguida. Há um medo implícito de que o país esqueça Canudos. Por isso, os moradores repetem um comportamento: guardam e expõem objetos resgatados do chão, que seriam resquícios das batalhas, para reforçar a memória e evitar mais um apagamento.