A CANUDOS QUE RESISTE

Antigos moradores voltam ao lugar de seus antepassados e resgatam a história do povoado que desafiou o poder

Alice de Souza (reportagem) e Rafael Martins (imagens) Colaboração para o TAB, de Canudos Velho (BA)

A noite caiu mas ainda não havia escurecido às margens da estrada que liga o açude Cocorobó (BA) à BR-116. Sentados em frente de casa, quatro vizinhos não hesitam quando questionados. "Sim, a verdadeira Canudos é aqui." Um deles vai até o imóvel do lado, onde mora com a família, entra na cozinha e tira de debaixo de um armário duas sacolas de supermercado. Afasta um jarro e distribui em cima da mesa dezenas de cartuchos de bala enferrujados.

O gari Olímpio Santos, 65, faz isso para não depender das palavras. Quer provar aos visitantes que ali bem perto ergueu-se o Arraial de Belo Monte, povoado dizimado durante a Guerra de Canudos pelo Exército brasileiro, em 1897. Passados quase 125 anos da quarta expedição militar que acabou com uma suposta revolta popular em oposição à República, a sombra dos 25 mil mortos e 5 mil casas derrubadas persiste sobre o povo do sertão.

Ali, todos são herdeiros do trauma deixado pelas mãos do poder militar e político. Ainda hoje, aquela destruição volta a assombrar alguns deles. Gente que vive refazendo a moradia. Primeiro, pela guerra. Depois, quando a construção do açude, em 1969, afogou a comunidade reerguida. Há um medo implícito de que o país esqueça Canudos. Por isso, os moradores repetem um comportamento: guardam e expõem objetos resgatados do chão, que seriam resquícios das batalhas, para reforçar a memória e evitar mais um apagamento.

Olímpio cumpre uma promessa feita ao pai no passado. Sobrinho de um homem batizado por Antônio Conselheiro, o gari ouviu histórias da guerra a vida inteira e guardou um pedido feito pelo patriarca, antes de ele falecer: era sua missão repassar as histórias aos viajantes.

Faltam elementos no entorno para ajudá-lo. Por isso, preserva os pedaços de ferro, enrolados em sacolas, como um tesouro. Ele é um dos moradores do povoado de "Canudos Velho", ou como eles fazem questão de dizer, a verdadeira Canudos.

Quando era adolescente, viu a casa onde morava, na segunda Canudos, ser encoberta pelo açude. Precisou sair correndo e deixou para trás rede, colchão, guarda-roupa, outros pertences e a roça do pai. A chegada da água, para a família dele, significou tempos de fome. "A gente ficou dormindo em tábua. Comendo preá e xique-xique. Tanta coisa a gente tinha e perdeu", lamenta.

Logo que pôde, o gari voltou e se juntou a outros remanescentes de conselheiristas para recriar o povoado, mas confessa não ter tido o êxito esperado. Tentou buscar os antigos objetos na água, sem sucesso. Lamenta também a falta de festa, harmonia e companheirismo de outrora. De fato, exceto pelos vizinhos de porta, em Canudos Velho as relações parecem isoladas demais para quem tem no sangue o Arraial de Belo Monte. "Meu pai dizia assim: 'o nosso Canudos ainda vai voltar, não vai se acabar. Mas até hoje não voltou'."

Preservar a história da guerra é, de certa forma, guardar as marcas da violência. Nesse quesito, o pescador Manoel Alves, 82, também conhecido como Manoel Travessa, é o mais empenhado dentre os caçadores de memórias da ação militar. Começou a recolher objetos quando chegou para pescar nas margens do Cocorobó, em 1971.

Depois que montou sua residência no alto do povoado — à época, só tinha uma casa — via chegar muitos curiosos buscando memórias de Belo Monte e decidiu construir uma edificação para expor tudo. Entre objetos recolhidos no chão e outros comprados ou doados, passou 10 anos juntando rastros da guerra. Em 1982, pediu uma área à prefeitura e levantou o Museu Histórico de Canudos.

A edificação em pedra é minúscula, comporta no máximo seis pessoas ao mesmo tempo, mas já chegou a abrigar 800 peças. Parte delas foi roubada em 2009. Sobraram 468 objetos, dentre eles um oratório colocado em frente à porta, a peça preferida do dono. O pescador tem interesse histórico e comercial. Quer ver o museu ganhar notoriedade, sem saber que isso de fato já aconteceu. A fachada em pedra e o letreiro em vermelho inspiraram a cenografia de outro museu mais famoso, o do filme "Bacurau".

Quem descobriu isso foi o neto de Manoel Travessa, Cláudio Alves, numa pesquisa simples na internet. A família agora quer aproveitar o burburinho e atrair atenção para uma campanha online de arrecadação de verba para reformar e ampliar o museu. A casa com uma porta e duas janelas agora tem projeto arquitetônico. Em todo caso, enquanto o dinheiro não chega, a manutenção fica por conta da família.

"Logo que cheguei, percebi que essa cultura deixa alguma renda para a região, pouca, mas deixa. E, através dessas coisas, as pessoas vêm aqui. Se me der R$ 10 milhões, eu não vendo o museu", garante Manoel. A entrada é mediante colaboração livre. A maior gorjeta já recebida até hoje de um visitante foi R$ 150.

Enquanto Manoel e Olímpio recolhem a Canudos material, João Batista Lima rememora os princípios do arraial e conecta passado e presente com a facilidade de quem decidiu, por conta própria, pesquisar os antepassados. Inquieto com o fato de a disciplina "História de Canudos" ter sido, por mais de duas décadas, apenas uma hora da grade semanal curricular dos alunos do ensino municipal, João correu por fora. Leu todos os livros possíveis, viu filmes e engajou-se no trabalho do IPMC (Instituto Popular Memorial de Canudos).

Não o fez somente por curiosidade, mas para lembrar a todos que, assim como disse Ariano Suassuna em 2013, "quem não entende Canudos, não entende o Brasil". Tataraneto de conselheirista, João lembra que Canudos foi antes de tudo um povoado formado pela diversidade, pela união de indígenas, negros, homens e mulheres, pessoas vindas de longe e outras de perto. Gente, nas palavras dele, com o único objetivo de conseguir sobreviver.

Ninguém passa por João sem conhecer o ocorrido nas quatro expedições do Exército brasileiro para acabar com o arraial. Difícil sair de lá sem se deixar dominar pela paixão. E sem compartilhar de sua indignação. "Imagina um povo que não tinha casa, comida, era constantemente castigado e, de repente, viu seus direitos conquistados durante quatro anos de vida serem ameaçados?".

A frase de João é sobre Belo Monte, mas ao dizê-la ele se dá conta que poderia ser sobre o Brasil de 2022 e chora. "A história de Canudos é bem atual, deveria servir de exemplo para a situação implantada no país. Tudo que Conselheiro e o povo buscavam era uma vida de paz, sem intervenção militar, sem opressão, destruição. E o que vemos no governo?".

Dia 5 de outubro é simbólico e doloroso para Canudos, pois foi quando 9 mil militares cercaram e destruíram o arraial. Em 2018, porém, alguns moradores tentaram usar a data para celebrar um ex-paraquedista do Exército, então candidato a presidente.

Organizados em um grupo de WhatsApp, decidiram sair em passeata até a prefeitura e fazer campanha, exaltando entre outras questões o militarismo como força política. João até hoje se ressente daquele dia. O vigilante Anderson Oliveira, 31, também é ressentido, mas por motivos diferentes.

Empregado na segurança do Memorial Antônio Conselheiro, Anderson era um dos organizadores do movimento e não gostou de ver a via interditada, impedindo a passagem do grupo. Mais recentemente, ele e outros apoiadores tentaram uma carreata, novamente no dia 5. "Teve pouco carro, mas achei que teria ainda menos. Por aqui, quem vota em Bolsonaro é chamado de doido. Tem gente que diz que ele era militar e, por isso, teve culpa no acontecimento de Canudos", explica.

Anderson se identifica com a maioria das pautas defendidas pelo presidente, entre elas o armamento da população. Chegou até a postar uma propaganda da carreata no grupo de WhatsApp do trabalho, mas foi repreendido por colegas. "Não tem nada a ver o Exército de 1800 e pouco com o de hoje. O atual faz o seu papel. E agora, com o presidente, estão trabalhando mais."

Um dos poucos em Canudos a concordar com Anderson é o também vigilante do memorial José Raimundo da Guarda, 43. Nascido em Canudos e criado em um sítio próximo a Jeremoabo, José Raimundo é exceção na família. Na casa da mãe, todos são Lula. Mais moderado que o colega, aplaude o programa petista Luz Para Todos, quando deixou de usar candeeiro em casa.

"Minha questão é a alternância de poder. Votei em Lula duas vezes, em Dilma duas vezes. Em 2018, apostei no novo, em Bolsonaro, no primeiro turno. Agora vou ver o que vai rolar até outubro."

O local exato onde ocorreu a Guerra de Canudos não fica nem na cidade velha nem na nova, onde estão comércio e bares. A paisagem nos arredores é dominada por uma vida noturna agitada, onde caixas de som com música sertaneja tomam conta do fim de tarde. Nas palavras do Dr. Santana, dono de um dos poucos bares sem aparelhagem sonora da cidade, "a consulta é de graça, só se paga o remédio" — ou, uma conversa no balcão é gratuita, mas tem que consumir a bebida.

O palco do massacre, a alguns quilômetros dali, é mais silencioso e inóspito. Ali só restam quatro casas, uma delas a da família do guia turístico Paulo Régis dos Santos, 33. A casa é uma das poucas dentro do Parque Estadual de Canudos, local administrado pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia) onde estão marcados os pontos de cada um dos combates.

A responsável por ajudar a delimitar as coordenadas do conflito foi a avó de Paulo, dona Izabel Oliveira, já falecida. Em razão dos esforços dela para não deixar Belo Monte morrer, o rapaz prometeu ainda criança que seria o melhor guia da região e também que faria da casa deles o local mais fotografado de Canudos. Parecia um prenúncio do poder de uma imagem, nas redes sociais, para fomentar o turismo.

Hoje, Paulo sabe que para atrair visibilidade precisa aparecer nas redes. Desde 2021 quer transformar o imóvel da família em um local instagramável e comemora quando um visitante sobe as imagens nas redes sociais.

Reuniu na parede da sala algumas fotografias produzidas pelas andanças de retratistas profissionais, botou armas estilo garrucha de cano longo num dos cantos, uma mala antiga de couro e o gibão do pai — a roupa típica de um vaqueiro — no outro lado. Todas as vezes em que recebe um grupo de fora, leva até ali para tirar foto. Muitos visitantes são militares. "Até brinco com eles, decidi ser guia autônomo para ter liberdade de falar o que penso", afirma Paulo. Para ele, não importa a motivação, o mais importante é ter sempre gente visitando a cidade para não esquecer o que foi Canudos.

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