FÁBRICA DE DOENTES

Fumaça, fuligem e problemas de saúde são o cotidiano de quem vive próximo ao polo petroquímico de Capuava

Rodrigo Bertolotto (texto) e Marcos Camargo (imagens) Do TAB, em São Paulo

As noites são alaranjadas como um crepúsculo. Os dias amanhecem cobertos de pó preto, e as pessoas e os cachorros vivem sonolentos. Na tríplice divisa entre os municípios de São Paulo, Santo André e Mauá, a megalópole preserva seu caráter industrial e seu efeito colateral: a poluição.

Nas últimas décadas, enquanto o polo petroquímico de Capuava se expandia, a população se adensou no entorno. "Escolhi morar aqui porque meu olho cresceu quando vi tanta indústria por perto: ia ter trabalho. No final, o que a gente conseguiu mesmo foi ficar doente", lembra a diarista Dorotéia de Oliveira Silva.

Em sua sala, a mesinha de canto já dá o diagnóstico: os retratos da família dividem espaço com as caixas de remédios. Todos ali têm problemas respiratórios. Além da tosse contínua, Ellen Cristina, a filha mais velha, acumula também sangramento no nariz e pele empipocada, o que obriga a jovem a perder muitos dias de aula.

A família de Dorotéia ficou presa nessa atmosfera doentia porque financiou em 10 anos seu apartamento pelo Minha Casa Minha Vida e, pelas regras do programa federal, não pode vendê-lo. "Pelo que oferecem por esse apartamento, só consigo comprar um barraco em favela", lamenta.

Cristiane Dantas, mãe solo e liderança de movimento por moradia na zona leste paulistana, vive drama semelhante. Ela está entre as 700 famílias cadastradas para um conjunto habitacional já aprovado e que vai ser construído colado ao polo. "Temo pela saúde do meu filho, mas foi a única chance de sair do aluguel que encontrei. Se tivesse condições, iria para fora de São Paulo. Mas o jeito é ficar e lutar para melhorar o ar e o atendimento médico por aqui." Histórias como essas mostram que a poluição é mais um subproduto da desigualdade no Brasil.

METAL PESADO

O azulejo do quintal parece até marmorizado. Depois de lavado com sabão, detergente e água sanitária, um pó preto e viscoso escoa pelo ralo. O piso se revela branco. No organismo, a eliminação desse coquetel de carbono, cloro e diversos átomos (inclusive metais pesados, detectados na vegetação da área) não é tão simples. O efeito é cumulativo e, na maioria das vezes, demora décadas para revelar seus efeitos. A ciência pesquisa há anos os efeitos da poluição no aumento no número de casos de autismo (cuja principal determinação é genética) e partos prematuros, embora ainda não haja certezas.

Maria Angela Zaccarelli é professora de endocrinologia na Faculdade de Medicina do ABC, com mais de três décadas de pesquisas sobre o efeito da poluição do polo de Capuava sobre a população. Em 2002, ela constatou que o mal de Hashimoto, doença autoimune incurável que afeta a glândula tireoide, tem índices alarmantes em 2.004 moradores do entorno.

Um estudo apontou que 10% das crianças em idade escolar de Capuava tinham hipotireoidismo (o normal é 1%), o que afeta o crescimento corporal e o desenvolvimento cerebral. Entre as mulheres adultas, até 30% apresentaram a doença que prejudica a produção hormonal e causa cansaço, ganho de peso, diminuição da frequência cardíaca, entre outros sintomas.

Lucilene Cardoso é uma das impactadas. Moradora do paulistano Parque São Rafael, ela desenvolveu nódulos na tireoide há seis anos. "Ainda bem que meu filho paga plano médico e eu posso monitorar a situação com ultrassons e punções. Se fosse depender da saúde pública, já estava morta", conta. Sua cunhada Elisângela, também com atendimento privado, teve de retirar a glândula porque apresentava câncer.

Já Maria Claudino nasceu e viveu seus 57 anos no Jardim Sônia Maria, em Mauá. Há 25, convive com hipotireoidismo e faz reposição hormonal diariamente. "O polo foi crescendo em direção ao meu bairro. Então, não aceito a história de que a indústria veio antes. Minha família foi vítima dessa expansão industrial", critica. Em sua casa, ela e o irmão sofrem do mal de Hashimoto (raríssimo em homens). Segundo ela, 75% das casas de sua rua têm casos. "Seria bom fazer um exame em massa aqui, mas só de levantar a estatística já mostra a tragédia."

PIRA NADA OLÍMPICA

O polo petroquímico funciona 24 horas, sete dias por semana. Além da fuligem, os moradores se queixam do cheiro forte e do ruído alto, principalmente à noite — parte dos combustíveis é queimada em um dispositivo chamado flare, que faz barulho semelhante a um maçarico gigante. Os vizinhos afirmam que as empresas aproveitam a escuridão da noite para despejar fumaça negra no ar e escapar das multas da Cetesb, agência estadual que monitora as atividades poluidoras.

Em 1954, um grupo de empresários inaugurou em Mauá a refinaria conhecida como Recap, atraindo 12 mil acionistas minoritários após campanha promovida por Assis Chateaubriand (1892-1968), magnata das mídias de então. A primeira vítima dos dejetos foi o rio Tamanduateí, que passa por lá e deságua no Tietê.

Em 1974, a indústria foi incorporada à Petrobras. Na virada do século, uma mudança na lei de zoneamento industrial possibilitou a expansão do polo, incluindo empresas de plásticos e fertilizantes. Os bairros vizinhos cresceram também, em loteamentos oficiais ou não. Fábricas e residências estão frente a frente em algumas avenidas — bem longe dos oito quilômetros de distância recomendada.

O cenário faz recordar a história de Cubatão (SP), considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a cidade mais poluída do mundo no início da década de 1980. O polo de lá foi criado em 1956. As chaminés sem filtro e a Serra do Mar criaram no município litorâneo uma grande estufa tóxica.

A contaminação era tão grande que dezenas de crianças nasceram sem cérebro. A ditadura militar (1964-1985) tentou abafar a calamidade, que só veio à tona porque um coveiro de Cubatão se negou a enterrar mais um bebê com "cara de sapo" e foi à delegacia local denunciar os casos em 1981. Jornalistas no plantão policial recolheram a história do coveiro e em poucos dias a cidade litorânea ganhou o apelido de "Vale da Morte".

A despoluição só veio com a redemocratização do país. Na Eco-92, conferência do meio ambiente realizada no Rio, Cubatão foi apresentada como símbolo da recuperação ambiental. Hoje em dia, a presença de material particulado no ar de Cubatão está bem próximo ao limite máximo recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), mostrando que o combate à poluição deve ser contínuo, como líderes de moradores e ativistas têm feito em Capuava.

VIDA REMEDIADA

Não há endocrinologistas, pneumologistas nem dermatologistas nos postos públicos perto das refinarias. Também estão sempre em falta remédios para os males que a poluição causa. Resultado: uma farmácia aproveitou esse "nicho de mercado" e oferece prateleira cheia de medicamentos — lembrando que a parte plástica das embalagens é feita a partir do petróleo.

"Não tem dia que não venda pelo menos uma caixa para problemas na tireoide. Fico triste quando sei que é para uma criança", conta a farmacêutica Angela Maria da Silva, 57. Ela especializou sua loja após sofrer na própria pele, que ficou amarelada após ser atingida pela tireoidite. "Foi há 20 anos. Comecei a ganhar peso, perder cabelo e sentir muito cansaço e não havia uma razão para tudo isso. Fui ao médico, e ele diagnosticou."

A prateleira dos remédios para o sistema respiratório também é bem abastecida e diversificada. "Até os medicamentos mais simples estão em falta nos postos." O que sobra por lá é pó no chão da farmácia, mesmo com as funcionárias lavando o piso três vezes por dia.

REFÉNS NO QUINTAL

Zeus, um pitbull branco, ficava cinza toda semana, e a cada 15 dias ia para o banho no pet shop do bairro. As patas de Zeus se tingiam no chão e pintavam os muros da casa da família Claudino em Mauá, a quatro quarteirões do polo. De tanto sofrimento animal e tanto custo para os humanos, a família, que tem dois integrantes com problemas de saúde devido à poluição, decidiu dar ao cão um melhor destino: um lar de amigos, bem longe do polo.

Joe não teve a mesma sorte. O ganho de peso sem mudança de dieta e o comportamento agressivo (tentava morder se era acordado, em meio a várias horas de sono) pareciam bem estranhos para a raça golden retriever, conhecida por sua docilidade e disposição para brincar.

"Levei na veterinária e, depois de uns exames, ela disse que era mais um caso de cachorro com problema de tireoide", afirma a dona de casa Luciane Carneiro. Deixando sua dona com saudade, o mascote vai duas vezes por semana para o centro de Santo André para escapar da poluição e ficar no apartamento do filho de Luciane.

PERGUNTE AO PÓ

As denúncias dos moradores já geraram uma ação cível aberta em 2018 e uma CPI (Comissão Parlamentar de Investigação) na Câmara Municipal de São Paulo, aprovada no final de abril. A ação cível continua tramitando. Apesar das dezenas de multas aplicadas pela Cetesb, a contaminação não para.

A Cetesb apontou que o pó preto é "material carbonáceo" e, pelas concentrações encontradas, vem do polo. O pó branco, detectado em março, seria "material inorgânico com presença de terras raras", mas os fiscais não chegaram à empresa emissora das partículas. A agência estadual comunicou que faz inspeções regulares nas fábricas, rondas nos bairros vizinhos e fiscaliza se as empresas estão modernizando seus equipamentos para reduzir a poluição — mesmo assim, Petrobras, Braskem, Cabot e Oxiteno foram multadas recentemente por emissão de poluentes. Além disso, a Cetesb instalou câmeras para filtrar flares e chaminés para identificar fumaças escuras.

Já a Cofip ABC, entidade que representa as indústrias privadas de Capuava, afirmou que o polo gera 10 mil empregos diretos (e um total de 35 mil na cadeia produtiva), mas não tem um cálculo de quantos são ocupados pelos moradores da região. Comunicou ainda que investiu R$ 1,5 bilhão na modernização dos controles ambientais nos últimos dois anos, valor maior que o investido no aumento da produção. A entidade empresarial também declarou em comunicado que "não existem até hoje indícios de correlação entre a atividade petroquímica e a doença de tireoide".

Apesar dos resultados alarmantes das pesquisas da FMABC, USP (Universidade de São Paulo) e CVE (Centro de Vigilância Epidemiológica, ligado à Secretaria Estadual de Saúde), falta uma ação coordenação entre os municípios e o Estado para diminuir os males da poluição. Como não há médicos especialistas na área, os casos são encaminhados para hospitais de outras regiões, o que acaba escondendo a real dimensão do problema para poder balizar políticas públicas mais efetivas.

Em Mauá, por exemplo, os casos são levados para o Cemma (Centro de Especialidades Médicas de Mauá). A prefeitura de lá, em conjunto com Santo André, diz que fez levantamento sobre a saúde dos trabalhadores do polo — em geral, mais protegidos da poluição que a população do entorno por usar equipamentos. A prefeitura de Santo André também afirma que concentra as especialidades em determinados centros médicos do município e que a falta de remédios foi em virtude da pandemia, por problema de insumos na produção de medicamentos, mas que fez compras recentes e "os estoques já estão em média em 90% abastecidos".

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