'A CIDADE É MINHA ROÇA'

Carroceiros e cavalos fazem parte da paisagem urbana de Belo Horizonte, mas podem estar com os dias contados

Nina Rocha (texto) e Alexandre Rezende (fotos)

O encontro entre as avenidas Amazonas e Afonso Pena, no centro de Belo Horizonte, é palco tradicional de protestos de professores, comerciantes, donos de academia de ginástica, apoiadores e críticos do governo federal.

Em 19 de janeiro de 2021, quando Alexandre Kalil (PSD) aprovou a lei 11.285, uma aglomeração diferente atraiu olhares curiosos: cavalos, carroças e seus donos se juntaram para protestar contra a proibição dos veículos de tração animal na cidade. Mais de 200 carroceiros, vestidos com camisetas onde se lia "A cidade é minha roça", gritavam contra a determinação de Kalil, que prevê a substituição gradual das carroças por motocicletas adaptadas, em um prazo de dez anos. Subia um tremendo barulho de buzina, vozes e cascos batendo no asfalto.

Belo Horizonte é a única capital do Sudeste que ainda divide as pistas de trânsito com carroças. A poucos quilômetros de prédios esguios e espelhados, o cenário da cidade torna-se gradualmente mais rural, conforme a periferia se aproxima. Não é raro ouvir galope de cavalo nas ruas mais distantes da avenida do Contorno, que delimita o centro.

Criada em 2018, a Associação de Carroceiros e Carroceiras Unidos de Belo Horizonte e Região Metropolitana defende que a proibição ignora os recortes sociais, geracionais e históricos de 10 mil profissionais, além da relação singular que têm com o cavalo: o animal não é considerado mero meio de transporte, mas sim companheiro de trabalho — e de vida. Eles lutam para continuar existindo e trabalhando em BH, cidade erguida em cima de um antigo curral e que, ainda hoje, guarda relação íntima com a paisagem rural.

Sebastião Alves Lima, conhecido como Tião Cirilo, 57, é um dos carroceiros que protestava contra o fim de sua profissão na porta da prefeitura. O elo com a carroça vem de berço: aprendeu o ofício com o pai, que era cigano e se estabeleceu no Barreiro, região sudeste de Belo Horizonte.

Tião é uma pessoa conhecida na área que serve de lar para aproximadamente 500 carroceiros. Nas ruas do bairro de Bonsucesso, todo transeunte o reconhece e cumprimenta com carinho.

A família se estabeleceu em BH e ele sempre foi acostumado aos cavalos. "Tentei trabalhar como ajudante de soldador, porteiro de prédio, mas não tive êxito e voltei para a carroça."

Dos cinco filhos, quatro viraram carroceiros, quase como herança: até quem não trabalha diretamente ajuda com os cuidados dos animais — além dos cavalos, família e agregados criam patos, galinhas, gatos, porcos e cachorros em um terreno vizinho. A criançada cresce brincando entre eles.

Mesmo tendo crescido na capital, Tião se considera um homem do campo. "Na região em que me criei, era tudo no lombo do burro. Não tinha estrada nem nada. Nós temos uma vida muito diferente, mas isso é ignorado", conta.

Há dois anos, ele tornou-se presidente da Associação, e pede que a profissão continue existindo. "Quem defende os animais somos nós que vivemos, acordamos e dormimos com eles."

No quintal de uma casa na Vila São Jorge III, na zona oeste de BH, Maria de Fátima e Ivan Pereira de Oliveira vivem rodeados de bichos. Os passarinhos e o cachorro Beethoven se esparramam pelo quintal na laje da casa de dois pavimentos que o próprio Ivan ajeitou, ao longo dos anos, incluindo um depósito reservado apenas para armazenar feno e tambores para estocar ração.

Os animais maiores ficam em um terreno do outro lado da rua, onde Ivan construiu duas baias para que Catarina, égua de pelagem clara que comprou há 6 meses, e Zé Pampa, um cavalo de cor castanha e crina aparada, com quem está há 15 anos, possam fazer refeições, tomar água, dormir e descansar.

Ivan perdeu o polegar direito quando trabalhava como carpinteiro. Foi vigia e porteiro depois do acidente, mas, há 19 anos, virou carroceiro. Ele leva a sério o cuidado com os cavalos: alterna os dias de viagem e não gosta de variar muito a alimentação.

A rotina começa às 6h da manhã, quando ele sobe o barranco do lote para levar alimento e preparar os cavalos para o expediente. Durante a semana, percorre uma média de 20 km, em aproximadamente 8 viagens diárias, sempre pela zona oeste da cidade.

Ivan cobra R$ 35 por deslocamento. Faz carreto, carrega entulho de obra e podas de jardinagem. Nessas viagens, sempre chega com novas mudas e materiais para reciclagem. Também já conseguiu geladeira e fogão bons para uso, mas fica atento aos limites de carga que os cavalos conseguem carregar — não pode passar dos 100 kg.

"Eles viram pessoas da casa, estão lá com você todo dia. Cuido mais deles do que de mim." Da cobertura, ele consegue avistá-los e os conhece até pelos relinchos. "O Zé já até se acostumou a ficar pendurado na cerca, me chamando, quando tá com fome." Antes de Catarina, outro cavalo fazia dupla com Zé Pampa, mas ele teve problemas no estômago e faleceu rapidamente, mesmo com o cuidado de veterinários. "Quando ele morreu, fiquei aliviado... Ele deixou de sofrer e eu também."

Enquanto debatem com a prefeitura, os carroceiros se movimentam para tentar reverter a legislação, seja com a Defensoria Pública, o Ministério Público ou buscando o reconhecimento da comunidade enquanto povos tradicionais que fazem parte da história da cidade de Belo Horizonte. A prefeitura, por sua vez, se organiza para apresentar, até o fim de 2021, uma proposta aos carroceiros e às famílias que dependem da atividade para sobreviver.

Um dos pontos de encontro dos carroceiros fica em um lote amplo de terra batida, na beira da BR-040, na periferia de Contagem (MG). É lá que eles se mobilizam e discutem os rumos de sua própria história.

O lugar funciona como Ecoponto, iniciativa da cidade para minimizar o descarte irregular de entulhos no município. Um contêiner enferrujado serve de copa, e sofás danificados acomodam os carroceiros que chegam com descartes e aproveitam para prosear.

Esse cenário repete uma estrutura comum aos locais que recebem entulhos de obras, galhos e troncos de podas, objetos que não vão ser mais utilizados: algumas caçambas ficam ali até encherem e serem encaminhadas para um aterro sanitário nas redondezas.

O local abriga, a céu aberto, os animais dos trabalhadores que atuam pelas redondezas. Em um dos comedouros improvisados com embalagens de plástico, Darli Resende Figueiredo alimenta Canário, o cavalo que a acompanha nas viagens que faz três vezes por semana.

Lôra, como é conhecida, mora em Ribeirão das Neves, na divisa com Contagem. Ela tem mais cinco animais, que aluga para que outros carroceiros possam trabalhar. "Dividimos os tratos, o que dá uns R$ 250 por semana para cada cavalo. O resto do lucro, cada um fica com o que consegue tirar."

Dos seus 43 anos, os últimos 15 foram em cima de uma carroça. Entre um cigarro e outro, ela relembra seu primeiro contato com os equinos. Quando era jovem, a mãe a pôs num curso de modelo. "Eu desfilava com os cavalos no Parque da Gameleira [parque de exposições onde acontecem eventos agropecuários em BH], mas acabei abandonando aquilo, tomando outros rumos."

Protegendo o rosto queimado de sol com um boné, Darli confessa que só estudou até a 3ª série. Pouco tempo depois, engravidou. Foi mãe solteira, casou-se, teve outros filhos. Trabalhou em uma empresa de limpeza urbana, mas uma depressão pós-parto a fez perder o emprego.

Foi com o apoio de um casal de amigos de Esmeraldas, cidade da região metropolitana de BH, na divisa com Contagem, que ela decidiu comprar um cavalo e tentar a sorte. Foi vender queijo e doce na carroça - fazia até fiado para poder sustentar a casa. "Foi como uma terapia pra mim. Eu só ficava na cama, igual um vegetal. O cavalo foi a coisa melhor que tive na vida."

Com quatro filhos e três netos, Lôra brinca que prefere mexer com vinte cavalos do que com gente. "Eles abanam o rabo, vão onde eu tô, me sustentam, me escutam e são dóceis", conta, bem-humorada. Os filhos todos já a ajudaram na lida. Hoje, ela divide os dias entre o trabalho e o cuidado com as duas netas que vivem com ela. Quando precisa sair, deixa as crianças com a esposa de um colega, que também é carroceiro. Vivem como uma família.

André Luiz Alves Pinheiro Junior, 21, enxerga em Lôra uma figura materna. Depois de passar 9 meses preso por roubo, em 2020, ele tentou emprego em depósito de cimento, loja de ferramentas e supermercado. Não conseguiu.

"Eu tava roubando e traficando no meio da favela do Morro dos Cabritos. Rodei, não vi nem a minha menina nascer. Tenho tatuagem, piercing, tornozeleira eletrônica. As pessoas acham que por isso a gente tem má vontade."

Morador do bairro Oitis, em Contagem, André sempre via o rosto de Darli estampando uma propaganda na parte de trás de um ônibus. Ao observar o movimento das carroças na região, viu uma oportunidade. Descobriu que o "bota-fora" dos carroceiros era ali perto.

André foi atrás de Lôra, fez algumas viagens para observar o trabalho e aprendeu o ofício. Foi ela quem o ajudou a conseguir uma autorização judicial para trabalhar como carroceiro.

Hoje ele roda pelas ruas com Ti Bolosco, cavalo que aluga de Lôra. Faz uma média de 25 viagens por semana e cobra R$ 30 pelos deslocamentos mais curtos. Nos esquemas de empreitada, o lucro é maior: para fazer o mesmo serviço que uma caçamba, os carroceiros fecham em R$ 180.

Quando chega mais cedo para buscar Ti Bolosco, apara os pelos e remove os cravos das patas do cavalo. Os banhos ficam para o fim de semana. Em 2 anos, André se adaptou à carroça e não pensa mais em largar. "Não podia sair na rua que a polícia queria vir atrás de mim. Hoje em dia, eles me vêem rodando na carroça, passam e me cumprimentam. Você tem que ver a felicidade da minha mãe e do meu pai na hora que eles me encontram trabalhando. É aqui que tiro o meu e o da minha menina."

André, que torce para a profissão de carroceiro continuar existindo, está tirando carteira de motorista. Mas não pensa em trocar a carroça por qualquer função. "O que fizeram por mim, não vi ninguém fazer. Não tenho vergonha nenhuma do que faço. Pode falar que tá passando a Bibi Perigosa [personagem de Juliana Paes na novela 'A Força do Querer', da TV Globo], a Pocahontas [ex-'Big Brother Brasil'] ou qualquer mulher famosa na avenida que eu tô passando é de carroça. Tô trabalhando e tenho orgulho disso."

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