CASAMENTO ÀS CEGAS

Na Índia, jovens vivem vida dupla entre desejo de liberdade e pressão para casar com 'matches' arranjados

Fabíola Gomes Colaboração para o TAB, de Nova Déli

— Fab, preciso te contar uma coisa. Vou me casar.

A mensagem apitou no WhatsApp em novembro de 2021. Era meu amigo Faisal, um executivo indiano com pinta de galã de Bollywood. Fiquei surpresa. Em Nova Déli, Faisal tinha fama de progressista por se opor fortemente à tradição indiana quando o assunto era casamento e, sobretudo, casamento arranjado. Era contra a imposição dos pais na escolha dos futuros cônjuges dos filhos, contra o imperativo de ter filhos e de ter a família como centro da vida.

Lembro que certa vez, em maio de 2013, caminhávamos à noite pelas ruas da capital indiana em busca de um refresco para arrefecer o verão que parecia morar conosco, dentro do pensionato onde vivíamos. "Pago um sorvete a quem adivinhar quem será o próximo de nós a se casar", disse nossa amiga Rekha no caminho. "Aviso que eu é que não sou. Não vou me casar de jeito nenhum. Tô fora", adiantou Faisal, à época perto dos 28 anos, idade considerada crítica para se casar no país.

Conversas como essa eram comuns entre os jovens indianos com quem convivi. Desde 2012 estudava relações amorosas, afeto e casamento no norte da Índia para o doutorado em antropologia social na Universidade de Brasília. Fiquei intrigada, então, quando, em janeiro de 2022, de repente e com certo ar de mistério, Faisal me escreveu no WhatsApp me convidando para seu casamento, a princípio marcado para junho.

Faisal estudou odontologia, mas não quis ficar enfurnado em um consultório. Alto, magro e de rosto alongado, virou executivo de uma multinacional de produtos dentários. Com diploma de uma universidade prestigiada, inglês impecável e muita lábia, era um partidão no "mercado casamenteiro".

Um mercado, literalmente: nas melhores e nas piores famílias indianas, ainda é comum o matrimônio arranjado. Com a chegada dos filhos à idade adulta (desde os 21 anos para eles; a partir dos 18 para elas), os pais começam a buscar o "match" — sempre heterossexual. Casamento gay é ilegal na Índia.

Cabe aos pais, a partir dos laços comunitários ou da contratação de um agente pago para cuidar dos trâmites, encontrar o cônjuge considerado ideal para seus herdeiros. As uniões são negociadas como um acordo entre as famílias. Por lá, o casamento desde sempre é às cegas (ao menos aos olhos ocidentais).

Na Índia, as imposições sociais prevalecem sobre as vontades individuais. O que é bom para todos é considerado melhor do que os desejos de cada um, inclusive quando o assunto é casamento — os pais consideram que os filhos são movidos por motivos "fúteis" e "egoístas", como atração física, paixões e romantismo. Segundo um estudo recente com casais indianos, 93% dos matrimônios de 2018 foram decididos pelas famílias; 3% dos entrevistados disseram que se casaram por amor. Olhando de longe, os jovens indianos ainda se casam como se casavam seus avós.

Nos últimos 50 anos, a Índia viveu uma intensa modernização que transformou as cidades e levou muitos jovens a universidades, inclusive ao exterior. Mais cosmopolitas e modernos, sintonizados com a cultura do Ocidente, eles têm a mente mais aberta a amores fortuitos e romances que não dizem respeito à bisbilhotice das famílias. Faisal era assim.

Vivendo na capital Déli, a 800 km de sua cidade natal, na Caxemira, ele não temia viver amores ocasionais, expor opiniões, fumar e beber (o que não é permitido entre muçulmanos como ele). Era tudo segredo: perto dos pais, ele se comportava como filho obediente e, diante de propostas de casamento, dava piruetas para enrolá-los. "Ainda não. Ainda não", dizia.

Descobri depois que esse movimento é comum aos jovens de Déli. Para fugir da vigilância moral e ter um gostinho de liberdade, eles criam dimensões secretas na própria vida. Entretanto, Faisal cedeu às pressões tocado pela tristeza da mãe, que lamentava ter o primogênito, para lá dos 30 anos, ainda solteiro, o que segundo ela provocava sofrimento a todos. Por fim, ele aceitou se casar com uma pretendente de uma família vizinha deles, na Caxemira.

A busca pela noiva foi feita com a ajuda de agenciadores de casamento, pagos para encontrar alguém da mesma casta, mesma comunidade de origem, mesma religião, com mapas astrais compatíveis e a quem os noivos digam "sim" — varia, mas os casamenteiros podem ganhar cerca de R$ 3.000 por mês enquanto durar a busca. Antes da invenção do Tinder, a Índia já era expert em bons "matches".

Quando me contou a novidade, Faisal tinha encontrado Fatimah apenas uma única vez. Pouco tempo depois, noivaram. Na foto do noivado, ele estava a 30 cm de distância da noiva, como mandam os costumes.

Previsto para junho de 2022, o casamento foi adiado por culpa das estrelas. O astrólogo consultado pela família, uma autoridade importante na definição da data do casamento, disse que o dia escolhido não traria boa sorte ao casal. A nova data ficou para "entre 5 e 15 de outubro", assim, indefinida. A verdade é que, desta vez, o segredo não estava nas mãos de Faisal: ele não sabia direito as decisões que os pais, agenciadores, astrólogos e outros estavam tomando para celebrar o casamento.

Convidei o antropólogo Michel Alcoforado, amigo de longa data e colunista do TAB, para ir ao casamento comigo. Mesmo sem saber a data certa, partimos para Nova Déli em outubro passado. Faisal já estava na Caxemira e não respondia direito às minhas mensagens. Dias depois, ele me mandou passagens aéreas para Serinagar, na Caxemira. Disse que se sentia culpado por termos enfrentado mais de 24 horas de viagem sem saber ao certo como seria o misterioso casamento.

Faisal nos recebeu no aeroporto, de olho no relógio, em 9 de outubro. Disse que estava muito atarefado com os últimos preparativos do casório e sem tempo para encontros. Foi quando me dei conta de que meu amigo de Déli já não era o mesmo. Tinha no rosto o peso do conflito de administrar duas identidades (uma, a do jovem iconoclasta, atirado a novas experiências e orgulhoso das próprias decisões; outra, a do noivo de família muçulmana tradicional). O que estava em jogo, compreendi, era por quanto tempo ele daria conta de bancar seus dois "eus".

O noivo nos hospedou no hotel mais sofisticado de Serinagar, numa suíte com vista para o lago, tudo pago. Era como ele tentava se desculpar por não poder passar mais tempo conosco. Michel e eu passamos quatro dias na cidade, entre mercados e visitas aos Himalaias, com a ajuda de um motorista indicado por Faisal, com quem só conseguia conversar por telefone.

Retornamos a Déli, na expectativa de voltar à Caxemira para o casamento. Três dias depois, Faisal marcou outro voo para a Caxemira. Só então contou à família que tinha convidado amigos estrangeiros para a festa. A mãe do noivo não titubeou: reforçou o convite e fez questão de que nos hospedássemos junto da família, no casarão de dois andares e dez quartos que foi transformado para a ocasião.

Entretanto, com um detalhe: na chegada, em 19 de outubro, fui avisada de que eu seria apresentada a todos como "amiga da irmã de Faisal", e que não deveria, sob nenhuma hipótese, tocar no meu amigo noivo. Os demais ficariam chocados com tal proximidade entre um homem e uma mulher.

Pouco a pouco, fui engolida pela lógica indiana na qual todos os passos são vigiados, no caso, pela família do noivo. Passei três dias na casa em uma ala reservada às mulheres, sob tutela de Neelu, a irmã de Faisal. Nos quartos, elas cantavam e tocavam tambores por horas seguindo as tradições dos casamentos muçulmanos na Índia.

Há pequenos rituais nessas festas, que duram três dias. Entre eles, um corte cerimonial do cabelo do noivo, para indicar sua mudança de status, de solteiro para casado; a pintura com henna nas mãos do noivo e das convidadas para atrair boa sorte; e a oferta de presentes e notas de rúpias arranjadas como colares pendurados ao pescoço do noivo.

Ao longo dos dias são servidos verdadeiros banquetes, esbanjando arroz, cordeiro, frango, queijos e vegetais preparados de acordo com as receitas tradicionais da época em que os marajás islâmicos dominaram o norte da Índia (entre os séculos 16 e 19). Senta-se no chão para comer com as mãos, compartilhando um prato de metal com outros três convidados.

No segundo dia de festa, fomos "buscar a noiva". Por volta das 23h, partimos num comboio. A noiva ficava num aposento; o noivo, noutro. A cerimônia de casamento ocorre assim, em cantos diferentes da casa da noiva. Na ala feminina, foram recitadas passagens do Alcorão, e Fatimah, tremendo sob o véu, assinou uma certidão e disse "qubool hai" ("sim"). Depois, caiu num pranto tão profundo que me levou às lágrimas também. Ela me contaria, semanas mais tarde, que o choro explodiu num misto de alegria por se casar e de tristeza por deixar sua família e passar a pertencer à do noivo.

Não tinha ideia do que se passava no outro cômodo onde estavam os homens, mas Michel me contou que tudo que acontece num cômodo acontece simultaneamente no outro, com exceção da assinatura da certidão, que é feita pela noiva primeiro.

Enquanto o jantar era servido para os convidados, a noiva se retirou e foi se aprontar para ser conduzida à ala masculina, a "casa" do noivo. Após uma hora, eles se encontraram no corredor e um véu foi colocado sobre ambos, simbolizando que agora estavam unidos. De volta à casa de Faisal foi servido o bolo de casamento, semelhante aos do Brasil, mas acompanhado de bebidas sem álcool.

Depois, a família dela partiu. A família dele os conduziu para o quarto de núpcias, onde receberam os últimos cumprimentos. A mãe de Faisal fechou a porta do quarto, e assim deu o serviço por encerrado. Na manhã seguinte, um último rito: o novo casal abriu a porta do quarto e foi à sala de estar para receber presentes dos convidados do noivo.

Voltei a Déli, onde nossos amigos estavam curiosíssimos sobre o casamento. Rekha, nossa amiga dos tempos de pensionato, estava junto do marido e dos dois filhos para acompanhar as festividades do Diwali, época em que a cidade é tomada por luzes como as nossas de Natal.

Ela, assim como outros, estava magoada por não ter sido convidada. Fui discreta. Mas Rekha deve ter lembrado da conversa sobre casamento na sorveteria naquela noite de maio de 2013, como se esperasse uma pista minha dos últimos acontecimentos.

"E não é que Faisal, o iconoclasta e progressista de 'South Delhi', também casou?", disse ela ("South Delhi" é como eles se referem a uma área nobre, algo como a zona sul do Rio). "Não foi ele", respondi. "Foi outro Faisal."

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