CEOs da quebrada

Sem "serviço indisponível": quem são as pessoas que moram e empreendem na periferia

O motorista se retrai no banco. Aparentemente assustado, aperta o volante do carro e olha para os lados. Estamos chegando na Brasilândia, bairro da periferia da Zona Norte de São Paulo. Lá, o atendimento de aplicativos de transporte privado é limitado. É possível chegar partindo das regiões centrais, mas solicitar um carro de dentro do bairro é se deparar com uma mensagem de “serviço indisponível”. “Só ligo o aplicativo [para trabalhar] de novo quando sair daqui”, diz o motorista. Depois de alguns minutos, quem nos recebe ao fim da corrida é Alvimar Silva, 50. Ele é um dos criadores da Ubra, empresa de aplicativo de transporte privado que atua há cerca de um ano e meio no distrito.

A pouco mais de 20 quilômetros dali, em Osasco (SP), clientes levam suas roupas até a primeira unidade da Magic Clean Lavanderia, criada por Tatiana Lobato, 41. Em 2006, ela viu na periferia de uma das maiores cidades da Grande São Paulo a oportunidade de oferecer o serviço de lavagem, antes restrito aos bairros nobres e áreas centrais. Hoje, a rede conta com quatro lojas.

Em Heliópolis, maior favela da capital paulista, trabalhadores guiam os carros identificados pelas faixas da Godnet Telecom. Ruas estreitas e inúmeros veículos estacionados nas vielas dificultam bastante a passagem, mas a internet chega à casa de todos. A empresa foi criada em 2007 por Agostinho Souza.

Alvimar Silva, Tatiana Lobato e Agostinho Souza moram e empreendem na periferia. Todos são CEOs [chief executive officer, na sigla em inglês; em português, diretor executivo] da quebrada. Mas eles fazem mais do que isso: oferecem serviços até então negados aos seus bairros.

A ocasião faz o... CEO

A Godnet Telecom começou quase que por um acaso. Souza era montador e desmontador de móveis. Ao prestar um serviço durante a mudança de uma empresa, ele aceitou receber como pagamento os itens do imóvel que não seriam reaproveitados. Alguns objetos ele vendeu para reciclagem. Mas entre as inúmeras bugigangas havia metros de cabos de rede usados para conexões de internet. E foram eles que deram vida à Godnet. A empresa hoje tem uma receita bruta de R$ 200 mil mensais em média. Duas equipes atendem instalações e manutenções no bairro diariamente, e os funcionários almoçam ao lado da sede da empresa, em um restaurante adquirido, recentemente, por Souza.

Além de Heliópolis, a Godnet expandiu os negócios para Guarulhos, na Grande São Paulo, e começa a fazer os primeiros atendimentos para empresas na região de classe média do Brooklin, na Zona Sul paulistana.

“Eu não sabia mexer com nada disso de internet. Eu tive que aprender. Fiz um curso de fibra ótica porque no começo não tinha dinheiro para pagar ninguém para fazer isso por mim. Então me virei, mesmo sem saber muito de inglês, porque nessa área quase tudo é em inglês, né?”, lembra Souza. Com todos os requisitos e licenças da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), ele cogita agora incluir TV por assinatura no seu pacote de serviços.

Antes da Godnet, conectar-se em Heliópolis era difícil para os moradores. Alguns lugares chegavam a não ter nenhum acesso à rede de internet. O que começou via rádio, passou para o cabo e, hoje, a empresa oferece fibra ótica dentro do bairro, um dos tipos de conexão mais rápidos disponíveis no mercado brasileiro. O serviço é oferecido pelas grandes operadoras de telefonia, mas não dentro da comunidade.

Melhor operadora de telefonia em São Paulo segundo a Pesquisa de Satisfação e Qualidade Percebida da banda larga fixa divulgada pela Anatel, a TIM afirma que oferece cobertura 3G e 4G em Heliópolis e que seu plano de expansão da rede fixa é construído de acordo com a capacidade de investimento, as metas da companhia e o direcionamento estratégico do negócio. “O crescimento da cobertura da TIM Live, a ultra banda larga fixa da operadora, vem sendo realizado de modo constante e consistente e hoje o produto já está presente no Rio de Janeiro — com destaque para o subúrbio carioca e Baixada Fluminense —, em São Paulo — em uma grande área da periferia — e em Salvador. Especificamente, Heliópolis ainda não conta com o serviço de banda larga fixa”, afirmou a empresa em comunicado.

A Godnet concorre com pelo menos outras 12 operadoras locais na favela, de acordo com Souza. Sobre o estímulo ou facilitações a pequenos empreendedores nas áreas periféricas, a Anatel diz que há uma página específica em seu site para os interessados e categorias específicas para concessão de serviços.

O empreendedorismo sempre existiu, sobretudo nas periferias. Nós aprendemos a negociar, ser proativos, ser flexíveis, vender nossa ideia muito cedo. Não porque queríamos, mas foram ações quase compulsórias. Ou a gente fazia ou não sobreviveríamos

Monique Evelle, jornalista e empresária focada em empreendedorismo nas periferias

Sobre a competição, há brincadeiras e um modo particular na favela em lidar com elas. “Concorrência? Só entre os patrões! Chega fim de semana, às vezes, a gente marca partidas de futebol contra os funcionários dos outros provedores aqui do Heliópolis”, comenta, aos risos, Fernando Marques, que é técnico e instalador de fibra ótica da Godnet.

“A gente trabalha todo mundo na rua. No dia a dia é um ajudando o outro sempre. Se faltar uma fita isolante ou se precisar de uma escada a mais, todo mundo se ajuda”, completa. Marques trabalha há quase dois anos na empresa e o seu salário mais que dobrou em comparação com o seu último cargo em uma transportadora. Seu parceiro de instalação, Givaldo Moura, encontrou na empresa a primeira oportunidade de registro na carteira. E isso trabalhando dentro do próprio bairro: “Antes eu lavava carros lá no Tatuapé [Zona Leste de São Paulo]. Aqui meu salário triplicou”, diz.

'CEO da ponte para cá'

O estopim para criar a Magic Clean Lavanderia veio quando Tatiana Lobato precisou lavar um vestido emprestado por uma amiga. De Carapicuíba, ela se deu conta que não existiam lavanderias em sua região. A partir daí tomou coragem: pediu demissão do emprego de supervisora de loja e fez um empréstimo de R$ 10 mil. A primeira loja foi aberta no município vizinho, Osasco. A experiência de quase 13 anos em lojas de roupas a fizeram lidar mais facilmente com as peças e o negócio prosperou. Hoje, o faturamento mensal da rede é de R$ 58 mil.

Ao contrário do que muitos podem pensar, o acesso a lavanderias próximas e com preços acessíveis pode ajudar no bem estar e na rotina da família. Considerado um trabalho doméstico, a tarefa de lavar roupas, na maioria das vezes, é destinada às mulheres - principalmente nas periferias -, que já possuem as jornadas duplas, triplas ou até mesmo quádruplas de trabalho entre filhos, estudos, emprego dentro e fora de casa.

“No início, a maioria dos meus clientes nunca teve a oportunidade de usar um serviço de lavanderia. Eles achavam caro ou até mesmo que não precisavam. A minha primeira missão - e dificuldade - foi explicar e tentar vender os serviços para os clientes que entravam na loja e perguntavam como era lavar roupas em uma lavanderia”, conta Lobato.

A Magic Clean lava todos os tipos de peças - de roupas do dia a dia à tapetes. Os clientes também podem contar com o serviço de busca e entrega, o delivery. Hoje, a CEO conta com quatro filiais e cursa o oitavo semestre do curso superior de administração de empresas. “A formação sempre me ajuda a continuar fazendo as coisas da maneira correta e melhor”, afirma.

Case de sucesso

Hoje em dia é tão comum quanto beber água. Com um celular, você faz o download de um aplicativo, informa a sua localização e, em alguns minutos, um carro o aguarda para te levar aonde você quiser. Mas... na Brasilândia, não! Alvimar, CEO da Ubra, diz que a inspiração para começar o negócio surgiu, justamente, ao notar a ausência de aplicativos como o Uber em seu bairro. “Eu comecei a fazer uma corrida e outra “por conta” dentro do bairro. Logo depois comecei a entregar alguns cartões. Quando percebi estava delegando funções para alguns colegas que chegaram para me ajudar ou passando para alguns amigos taxistas, sem cobrar nada, algumas corridas que não dava”, explica.

Logo, a casa de Alvimar virou escritório e sede da Ubra. A sala de estar se transformou em uma central telefônica e sua filha, Aline Silva, em braço direito dos negócios. “Trabalhei em banco durante cinco anos. Quando percebi que a empresa do meu pai estava dando certo, e ele precisava de ajuda para administrar, pedi as contas e vim me dedicar somente à Ubra”, conta ela.

Os atendimentos são feitos tanto pelo telefone quanto pelo WhatsApp, em uma espécie de central telefônica que tem como atendentes o irmão e a prima de Aline. “A gente tem o aplicativo também. O plano é centralizar essas chamadas no aplicativo, em breve. Mas o atendimento pelo WhatsApp e, principalmente, pelo telefone ainda é necessário na região. Há pessoas que não sabem usar o aplicativo ou que não têm sinal de internet na região em que estão para usar o celular”, explica Alvimar.

A receita bruta da Ubra varia de R$ 15 a R$ 20 mil por mês. Segundo Alvimar, o plano é aumentar a meta e focar no desenvolvimento de um aplicativo produzido pela sua própria empresa. Com um aplicativo próprio, a Ubra deixará de usar o app desenvolvido por uma empresa no Rio de Janeiro e também mudará de nome.

Pouco tempo atrás era impensável Alvimar se ver como um CEO, mas essa sucessão de novas experiências abriram mais perspectivas para ele. Em 2017, ele participou da iniciativa Ford Fund Lab: Inovação e Mobilidade, realizada pela Fundação Ford e Artemisia. O programa avaliou mais de 150 startups no Brasil e selecionou 20 para participar de um processo de aceleração de curto prazo, com palestras e outras atividades. Das 20, três foram selecionadas por se destacarem ao longo do programa. Entre elas estava a Ubra, que recebeu um aporte de US$ 6,6 mil.

Se o  CEO é destaque na mobilidade urbana na região, é também gerador de empregos. Atualmente ele tem cerca de 50 motoristas parceiros — 40 deles trabalham também para outros aplicativos, enquanto dez escolheram atuar apenas com a Ubra.

Eu nem sabia o que era uma startup quando ganhei o prêmio de destaque de startup no evento em que participei

Alvimar Silva, proprietário da Ubra, na Brasilândia, Zona Leste de São Paulo

Nelson Cobertino é motorista e só atende os pedidos da Ubra. Além de se sentir mais seguro trabalhando dentro da Brasilândia, onde também mora, ele sente que está fazendo um serviço importante para a região, uma vez que supre a necessidade de um serviço não fornecido - ou com baixa cobertura - pelas maiores empresas do segmento, como a Uber e 99taxi.

Questionada sobre o atendimento limitado em alguns bairros da periferia, a Uber respondeu que entre 2016 e 2017 o número de viagens cresceu cinco vezes nessas regiões. Além disso, explicou que “para aumentar a segurança de motoristas parceiros e usuários, nosso aplicativo pode impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específicos”.

Para a inglesa Jennifer Stark, jornalista computacional e engenheira de dados, os passageiros da periferia podem estar menos interessados em chamar um Uber, fazendo com que os motoristas, por sua vez, tenham menos estímulos para dirigirem até lá. Pensando em algoritmos, isso acaba tornando essas regiões cada vez mais afastadas do atendimento”, analisa.

Em 2016, Stark publicou uma reportagem no “The Washington Post” sobre os algoritmos da Uber nos Estados Unidos. A jornalista mostrou o quanto os dados criavam exclusão de certas áreas e priorizavam um serviço melhor em áreas com mais pessoas brancas. Questionada sobre o caso brasileiro, embora considere que os algoritmos possam variar de país para país, Stark acredita que “os algoritmos da Uber exacerbam ou destaquem as desigualdades sistêmicas que já existem em localidades específicas: racismo, socioeconomia e desenvolvimento comercial e/ou cívico”.

FAVELA TOP

Além da necessidade dos serviços, a situação nas periferias e favelas brasileiras mudou muito nos últimos anos, principalmente quando levamos em consideração a grana da população que reside nessas regiões. Levantamento feito pelo Data Favela afirma que, só nas favelas, a renda da população chegou a R$ 68,5 bilhões em 2015, o que representa um crescimento de mais de 50% na comparação com 2005. Diante desse cenário, a vontade de empreender também cresceu: 4 em cada 10 moradores têm a intenção de um dia abrir o próprio negócio.

Não entendemos como um 'querer empreender', mas sim como uma necessidade. Não a necessidade propriamente de se pôr o feijão na lata ou da subsistência. Costumo dizer que empreender na favela e periferia é uma militância constante no objetivo de uma vida melhor

João Souza, diretor-presidente FA.VELA, aceleradora de negócios e projetos sem fins lucrativos, que atua nas favelas e periferias da Grande Belo Horizonte (MG)

Fábio Mariano Borges, doutor em Sociologia do Consumo (Ciências Sociais) pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), acredita que é necessário ter cautela ao pensar sobre isso. “Chamamos de pós-emprego quando as pessoas escolhem parar de trabalhar formalmente e se tornam empreendedores porque veem uma maior realização financeira ou pessoal nisso. No Brasil, quando falamos de classes populares empreendendo estamos falando de um público que está lutando pela subsistência. Existem exceções, mas eles não estão entre quem vai do desemprego para o empreendedorismo. É preciso tomar cuidado com esse discurso de otimismo para não mascarar situações no país”, alerta.

Diante de favelas e periferias pulsantes, o sonho de ser um CEO da quebrada ainda é distante para muita gente. Não se trata só de “correr atrás”, estudar e não desistir. A ausência de investidores, as mudanças de cenário constante e a falta de sustentabilidade, entre outros fatores, fazem com que muitos fechem as portas. “Não é romântico não ter dinheiro para tirar nossas ideias do papel”, lamenta Monique Evelle, da Evelle Consultoria.

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