Uma espiral de fumaça sobe aos céus, mas não vem de nenhum incenso: elas saem dos escombros de uma casa de reza queimada numa aldeia de Laguna Carapã, município a 284 km de Campo Grande (MS). É o sétimo incêndio criminoso do ano no Estado contra centros da religião tradicional guarani-kaiowá.
"Eles chamam a gente de Satanás, feiticeiro, rabudo. Não respeitam a crença do nosso povo", conta a rezadora Martina Almeida, 72, limpando do rosto as lágrimas provocadas pela tristeza e pela fuligem. "Não sei se vou ter força para reerguer outra. Dentro dela eu tinha paz."
Dois dias antes, três vizinhos — incluindo um genro de Martina —, atearam fogo na construção coberta de sapê, incinerando altares, objetos e vestimentas sagradas. Incomodados com rituais que levavam muitas pessoas para lá desde a inauguração, em agosto último, o trio havia feito ameaças e acabou reconhecido por uma testemunha fugindo da cena do crime. Eles foram detidos no dia seguinte. Agora respondem em liberdade e voltaram à aldeia e aos cultos.
Segunda maior população nativa do país (51 mil habitantes), os guaranis-kaiowás há tempos expõem suas tragédias no noticiário nacional. A desnutrição de suas crianças e o suicídio de seus jovens (índice 20 vezes maior que a média brasileira) é assunto há anos. Mais recentemente, houve o estupro coletivo e a morte da menina Raíssa Cabreira, 11. O conflito religioso entre seus integrantes tem ficado mais evidente nos últimos tempos.
Como pano de fundo dessa história está a miséria que ronda uma etnia espremida pelo agronegócio e em luta pela retomada de suas terras, rios e matas originais. Devido à intensidade do contato com os "caraís" (como eles chamam os brancos), os guaranis vivem de forma acelerada os vários efeitos do avanço econômico sobre as áreas indígenas.