EQUILIBRISTAS NO CAOS

A rotina da Casa Gamarra, em Belo Horizonte, que abriga e acolhe artistas de circo

Lucas Buzatti (texto) e Avener Prado (fotos) Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte Avener Prado/UOL

Domingo, 7 de março. Um dia após o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), decretar o fechamento do comércio em função da escalada de casos de covid-19, o clima na cidade é de desconfiança. Transeuntes e atletas de fim de semana compunham a fauna urbana daquela tarde nublada, além de adictos e pessoas em situação de rua, misturados a trabalhadores informais nos semáforos.

Também por ali, uma dupla chamava atenção. Os argentinos Enzo Cacciatore, 25, e Tomas Maciel, 26, tentavam arrancar sorrisos dos motoristas e incentivá-los a baixar o vidro dos carros para colaborar, brincando com claves de malabares em um sinal na Rua Niquelina, no bairro Santa Efigênia.

"Estou em dúvida quanto ao meu papel de artista, não sei se coloco a máscara na boca ou nos olhos", brincou Enzo. Eles estão hospedados na Casa Circo Gamarra, espaço na Vila Dias que funciona como centro de criação circense e hotel informal para artistas de diversos cantos do mundo, que passam pela cidade e resolvem ficar um tempo. Nos últimos meses, a trupe literalmente tem feito malabarismo para sobreviver a estes tempos bicudos.

Criado em 2008, o lugar é ideia de outro argentino, Diego Gamarra, 42, radicado na capital mineira há 16 anos. Gamarra decidiu transformar a casa onde vive com o filho Juan, 13, depois de viajar cinco anos pela América Latina e notar que são raras as cidades que oferecem um porto seguro para "viajeiros" ligados às artes circenses. O filho o acompanha em tudo que faz. "Tem mais experiência com o circo que muitos artistas por aí."

A casa foi crescendo de maneira mambembe e, ao mesmo tempo, caprichosa — um case anárquico de produção cultural independente, autogestão e autoconstrução, cuja rotina o TAB acompanhou por quatro dias.

Avener Prado/UOL Avener Prado/UOL

Seja pela fachada colorida e cheia de cacarecos ou pelos "bichos-grilos" tatuados, treinando malabares e equilibrismo na calçada da frente, a Casa Circo Gamarra grita visualmente. Ali, vários artistas se encontram para trocar ideias e compartilhar experiências, seja para almoçar uma marmita no meio-fio ou para batalhar juntos o ganha-pão.

Lá dentro, contudo, a pandemia apaziguou a movimentação outrora intensa. Segundo Gamarra, há cerca de 10 artistas morando na casa atualmente. É pouco. Em geral, eles recebem entre 15 e 20 pessoas por temporada. Os hóspedes se revezam nas atividades cotidianas e nos treinamentos. Justo naquele dia, ficaram sem luz — por isso, as fotos parecem escuras. "Depois da entrevista, vou ter que sair para resolver isso", diz o argentino, sem pressa, enquanto um conterrâneo, fotógrafo e artista circense, parece preocupado em resolver outras coisas.

A construção tem quatro andares e um terraço, onde é possível ter uma vista bonita da cidade, com a linha do metrô de BH em primeiro plano. Os mais atentos conseguem notar a confecção do muro de arrimo nos fundos da casa, feito com peças de carrinhos de supermercado, impressoras e eletrônicos descartados. É comum ver os hóspedes subirem ao terraço para pegar verduras — há uma horta ali.

No primeiro andar, além de uma pequena lavanderia, há duas cozinhas, uma externa e outra dentro de um cômodo que abriga o quarto de Gamarra, além de banheiro, sala e copa comunitária. O segundo andar é uma espécie de sacada e abriga quartos, banheiros e um pequeno espaço para alimentação. Mas é no centro da casa que brilha o picadeiro, um grande vão de pé-direito alto para ensaios e apresentações (atualmente suspensas).

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TAB acompanhou a rotina do espaço, alterada pelos dias estranhos da pandemia. Alguns residentes treinavam atividades circenses no picadeiro, como alongamentos e exercícios de equilíbrio. "Hoje está rolando aula de circo, viu?", exclamou Gamarra, orgulhoso, preparando-se para gravar um espetáculo online e apontando em direção à dupla de professor e aluna, ambos não residentes.

Outros cômodos foram erguidos ao nível da rua, e são fechados com portas de aço. Os espaços funcionam de forma híbrida. Em um deles, uma jovem família circense, também portenha, conversava em castelhano e se preparava para sair para comer. Arredio, mas educado, o pai justifica a dificuldade com o português para declinar o pedido de entrevista e deseja suerte (sorte, em espanhol).

Para ficar na casa, Gamarra cobra R$ 20 por dia ou R$ 100 por semana, pagos até com benfeitorias. "Não é o dinheiro que move o mundo, mas essa troca energética. O dinheiro é basicamente para ratear os custos." Cerca de 80% dos ocupantes são latino-americanos.

A quem chega, Gamarra não pede documentos, não pergunta se a pessoa está no país de forma legal ou ilegal. Faz a ficha com nome, cidade de origem, país e um contato para emergências. "Temos algumas regras, como não morrer (risos). Sem contar que é onde eu moro, com meu filho", afirma. "Outro dia, teve um artista que perdeu as chaves, chegou tarde e a porta estava trancada. Teve a ideia de tentar escalar e entrar pelas janelas. Acabou caindo e se quebrou todo (risos). O caso é engraçado, mas ficamos preocupados e, claro, demos todo o suporte a ele."

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Conhecido como Cebola, o paulistano Sérgio Yago Mendes de Andrade, 28, está em BH há cerca de dois anos. Malabarista, músico e artesão, decidiu ir para a Casa Circo Gamarra quando a pandemia apertou. A cara fechada e as tatuagens espalhadas pelo corpo contrastam com a fala mansa e educada do artista, que adotou o estilo de vida nômade desde moleque.

"É a primeira vez desde os 12 anos que eu pago aluguel. Sempre fui contra isso tudo, mas a pandemia fez com que eu me privasse de muita coisa. Tive que me entocar para proteger as pessoas que eu amo e até quem eu nem conheço, porque não quero passar isso para ninguém", afirma.

Cebola destaca que o corre do artista tem ficado mais penoso. "As pessoas pagam pelo nosso sorriso, não é nem pelos malabares em si. E, nesse momento, elas não veem mais o nosso sorriso, tá ligado?", diz. "Muita gente aplaude, agradece, mas fecha o vidro. É difícil alegrar as pessoas e, ainda, tirar uma moeda. Hoje, trabalhei três horas direto e não fiz nem R$ 15."

Gamarra conta que, nos primeiros 40 dias de pandemia, fechou a casa. Dos 20 hóspedes na ocasião, sete decidiram seguir caminho. Fez uma compra de supermercado e garantiu refeições para todos. Depois desse período, reabriu as portas para atividades sem aglomeração. "Como tinha trabalhado muito no Carnaval, consegui passar até o fim do ano."

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Há décadas, Gamarra não faz mais semáforo. Depois de anos circulando com espetáculos autorais e trabalhando como arte-educador, o argentino consolidou sua carreira pelo Brasil e América Latina. Mas não deixa de ter um olhar clínico para o desafio dos colegas. "Sempre foi difícil, sempre vai ser, mas está muito caro se manter. Você vai ao supermercado e as coisas aumentaram horrores", afirma. "Agora, o nível de vida que o artista de rua leva é fora do padrão. Ele usa roupa doada, tem só um par de tênis, uma mochila nas costas. É mais econômico."

Há, porém, quem veja nos tempos difíceis oportunidades de aprendizado. É o caso do paulista Raphael Xavier Costa, 32, de Guarulhos (SP), há quatro meses em BH com a companheira, a chilena Mara Revveco, 30. O casal, que faz performances artísticas com bolhas de sabão, veio direto para ficar hospedado na Casa Circo Gamarra.

"Um amigo tinha passado por BH e comentou dessa casa. Essa autogestão, essa troca de experiências, a coisa de você mesmo se cobrar, de ter espaço na casa e pessoas para ensinar novas habilidades. Tudo que tinha planejado na minha cabeça estou conseguindo fomentar", diz Raphael, que se preparava para ajudar o amigo, Vini (aquele que se acidentou na mal sucedida tentativa de escalada), em um compromisso externo.

Para subsistir com o espaço e continuar trabalhando, Gamarra, como a maioria dos artistas, se inscreveu em dois projetos de lei de incentivo à cultura para apresentações virtuais. "Comparar a rua e o virtual é como comparar cavalo e bicicleta. Os dois servem para o mesmo fim, mas são completamente diferentes. O virtual não tem isso, mas tem a superação da dificuldade, que é uma coisa do palhaço, que eu também gosto."

Sobre o futuro, Gamarra espera a criação de novos editais — como o da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc de 2021 — e a ampliação de possibilidades das políticas de incentivo à cultura. O artista destaca, contudo, a importância de se reinventar para continuar a resistir. "Circo é desafio. Sempre vai se adaptar, se ressignificar. Mas não vai acabar. Não acabou com a peste bubônica, com a gripe espanhola, com a rádio, com a TV, com a internet. E nem com a covid-19 ele vai acabar. Esse lugar continuará resistindo."

Diante das agruras de uma época tão sombria, as falas de Gamarra soam como um farol de esperança. "Sou otimista de que o mundo fique melhor quando eu ficar velho (risos). E acho que ainda há tempo", diz o argentino. "Enquanto isso, espero que tudo que estamos vivendo nos ajude a aproveitar mais o tempo em família, a dialogar melhor, a viver com menos. A responder questões como: o que é essencial na sua vida? Qual é o seu desejo? O que te faz feliz? Quem são as pessoas que realmente importam?".

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