DE VOLTA AO PICADEIRO

Circo Zanchettini, um dos mais longevos do país, volta a se apresentar depois de 18 meses isolado em fazenda

Amanda Andrade (texto) e Melvin Quaresma (fotos) Colaboração para o TAB, de Curitiba

Ao cumprimentar o respeitável público, Erimeide mal continha a emoção: estava voltando ao picadeiro após um ano e meio. Era 14 de setembro, dia em que o Circo Zanchettini inaugurava a temporada 2021 do Circo da Cidade - Lona Zé Priguiça, em Curitiba.

Quando as cortinas vermelhas se abriram, os números apresentados foram firmes e tradicionais. Os 14 artistas, todos parentes, se revezaram nos malabares, na lira (arco acrobático), no equilibrismo, no show de palhaços. Talita Daphne, 33, engoliu fogo. Gabriela, 22, se dobrou toda no contorcionismo.

Fora da ribalta, a plateia se comportava de modo diferente. Havia apenas 90 crianças — a lotação é de 300 pessoas —, todas usando máscara e cumprindo distanciamento social. Na fila de entrada, passaram por medição de temperatura e um dispenser de álcool em gel. Mesmo com os novos protocolos, o público não se inibiu nas demonstrações de carinho. Ao fim do espetáculo de 1h40, aplaudiu de pé.

Foram quatro espetáculos para alunos da rede municipal e um, em 18 de setembro, aberto ao público. A companhia foi uma das selecionadas em um edital da Fundação Cultural de Curitiba e apresentou "A arte se renova!". O show, criado para ocupar um picadeiro de 40 m², teve de ser todo adaptado para caber em metade dessa área.

"Só faltou beijarmos o picadeiro. Foi muita alegria, muita emoção", conta Erimeide Zanchettini, 60, uma das integrantes da companhia. "No final, foram lágrimas de felicidade. A gente viu que o nosso público estava emocionado também."

O último espetáculo dos Zanchettini antes da pandemia aconteceu em 21 de março de 2020. Desde então, 28 integrantes foram morar na Fazenda Potreirinho, em Campo do Tenente, na região metropolitana de Curitiba. O terreno foi cedido pelos filhos do dono, que haviam se juntado ao circo pouco tempo antes. A família, que não paga aluguel, ajuda na lavoura e na manutenção da casa do fazendeiro.

Os Zanchettini passaram a garantir o sustento com diárias na roça, recebendo pagamentos de cerca de R$ 80 diários por pessoa para limpar terrenos, retirar ervas daninhas e trabalhar em colheitas. Além disso, recebem cestas básicas arrecadadas pelo padre da região.

Estou me sentindo muito fora da caixinha aqui na fazenda porque o circo, para mim, é o mundo. Não vejo a hora de pegar a estrada e levar alegria, fazer crianças de um a 200 anos sorrir."

Sílvio, 48, um dos cinco irmãos e herdeiros do Circo Zanchettini

Na pandemia, alguns membros abriram outro circo — há também mais dois circos comandados por outros irmãos, instalados hoje no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Integrantes da família são chamados por outras companhias e recebem cachês, que ajudam a complementar a renda.

Mas as 28 pessoas em Campo do Tenente não buscaram trabalho fora e se mantiveram em isolamento. Quando receberam a visita de um sobrinho, vindo da cidade, 15 Zanchettinis pegaram covid-19. Felizmente, todos conseguiram se recuperar.

A relação dos Zanchettini com o circo começa com uma tragédia e um encantamento. Célia Cabral Salgueiro saiu fugida da fazenda onde morava, em Ponta Porã (MS), depois da morte de seu marido, o então prefeito Heleodoro Alves Salgueiro — assassinado, segundo a família, por razões políticas. O ano era 1935.

Ao lado dos quatro filhos, Célia embarcou em um trem para Três Lagoas (MS). Ali, uma das crianças, Wanda, tomou uma decisão que determinaria o futuro dos Salgueiro. Aos seis anos, entrou para um circo.

Quem conta a história é Erimeide, filha de Wanda. Junto dos irmãos Edlamar, Solange, Márcia e Sílvio, ela dá continuidade às atividades da companhia circense.

"Viemos de uma família que tinha terras, vida política, mas nossa sina era o circo."

Wanda e sua família foram acolhidas pelo Circo Irmãos Bocuti, com o qual viajaram até São Paulo. Mais tarde, a criança encantada virou trapezista no circo dos Irmãos Marques, comandado por uma trupe cigana. Com eles, ela viu acontecer a Segunda Guerra Mundial, quando o Exército brasileiro confiscou os caminhões dos circenses.

Mesmo assim, os artistas não pararam. Levavam o material de carroça de uma cidade à outra. "Iam a pé e comiam o que encontravam no caminho: mamão, melancia, milho verde", relata Edlamar. O cenário onde ela narra as histórias da mãe — o interior de um dos trailers instalados na fazenda — foi o lugar onde os filhos de Wanda cresceram, estudaram e aprenderam cada função dentro do picadeiro.

Aos 18 anos, Wanda se casou com o também artista circense Primo Júlio Zanchettin, em Mandaguari (PR). Ela, o marido, a mãe e os três irmãos fundaram, então, o Circo da Família. O casal, posteriormente, saiu da sociedade e criou o Circo Teatro Gávea, oficializado como empresa em 1964 — e rebatizado, após a morte de Primo, como Circo Zanchettini, nome que vingou.

Os filhos e filhas, desde pequenos, participavam das atividades. As meninas estendiam todos os dias, às 5h, o tecido de algodão que servia como lona. À noite, durante os espetáculos, improvisavam tochas de fogo com pano e querosene para iluminar o picadeiro.

"Nós nos mudávamos a cada 15 dias, mais ou menos. E eles nos criavam sempre em lugares menores — geralmente onde havia um armazém, uma igrejinha e casas de colonos ao redor", lembra Solange, 55. Quando chovia muito, a família podia ficar até um mês no mesmo local, esperando a estrada secar.

Apesar das viagens constantes, as crianças tinham uma rotina de estudos. Aprenderam em casa a ler, escrever e fazer as quatro operações matemáticas. Em cada cidade, participavam das aulas como ouvintes: levavam as cadeiras do circo para a escola, assistiam às aulas e faziam as provas, mas não tinham matrícula nem boletim. A maioria dos irmãos não conseguiu regularizar a situação escolar, exceto Erimeide, que concluiu os ensinos fundamental e médio por meio de testes da Educação de Jovens e Adultos e tem graduação em letras.

Wanda treinou os filhos a fazerem todos os números para substituírem uns aos outros. Erimeide fazia números de contorcionista, trapezista e força capilar. Edlamar era trapezista, equilibrista, mágica e acrobata de solo. Já Márcia, além do trapézio e do monociclo, começou aos 16 anos a atuar no globo da morte.

Ela é considerada uma das precursoras como globistas (quem faz as rotações dentro do globo da morte, diferentemente dos rodantes, que apenas circulam na base da esfera).

Hoje, as funções mudaram. Solange fica na bilheteria; Edlamar faz a frente de circo, recepcionando o público e recebendo os ingressos, além da parte administrativa. Erimeide é a locutora do espetáculo. "Nós somos os artistas do ontem. Os artistas de hoje são o reflexo do nosso passado", diz Erimeide.

Entre os trailers onde moram, duas crianças da família brincavam em um colchão inflável e um trampolim, dando cambalhotas e fazendo paradas de mão. Embora tenham liberdade para viver fora do circo, a maioria se encanta pela magia sob a lona e segue os passos dos pais e tios. "Parece que tem uma cerca invisível que faz todos se concentrarem neste mundo, que é um mundo cheio de desafios. Eles querem ser artistas; está na veia", observa Solange.

Além do treino diário, os integrantes aprendem tarefas cotidianas. "O circo não é só espetáculo", afirma Edlamar. "Aqui se aprende a ser soldador, eletricista, encanador, mecânico, motorista de carreta... Nós sabemos fazer tudo isso."

Como os homens do circo costumam ser encarregados das tarefas mais pesadas, são as mulheres que lidam com a burocracia. Sempre que desejam se instalar em uma nova cidade, elas precisam contatar a prefeitura para verificar se algum outro circo já está protocolado para uma temporada.

Se não houver nenhum outro, é necessário procurar terreno, cedido ou alugado pelo proprietário. Depois, protocolam na prefeitura uma data de chegada. O pedido pode ser deferido ou indeferido.

Com a aprovação, conversam com as companhias locais de energia elétrica e saneamento básico. Também é preciso que um engenheiro apresente o projeto do circo ao corpo de bombeiros, que realiza uma vistoria no local antes da estreia. São necessárias, ainda, aprovações da vigilância sanitária, do Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) e do Juizado da Infância e da Juventude, que autoriza a apresentação ao público infanto-juvenil.

"Em cada cidade, fazemos uma reunião dos irmãos. Não tomamos decisões sozinhas", diz Solange. Ainda assim, as irmãs concordam que a percepção do circo como espaço matriarcal é bem fundamentada. "As mulheres do circo são fortes", afirma Edlamar.

As filhas de Wanda guardam, debaixo da cama de um dos trailers, uma caixa de papelão cheia de fotos antigas da família.

Além das fotografias, elas se orgulham, também, de todos os certificados, prêmios e menções honrosas recebidos pela mãe, que morreu em 2018, aos 89 anos, após um AVC. A matriarca é, até hoje, a fonte de inspiração da família. "Circo é esperança. Hoje está ruim? Espera, que amanhã vai estar melhor. Como minha mãe dizia, 'me tirar do circo é como me exilar da nação'."

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