DESIGUAIS PERANTE A LEI

Como o Brasil usou -- e usa -- leis para criminalizar a vida da população negra, desde o fim da escravidão

João Vieira Colaboração para TAB

A Lei Áurea assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888 tem só dois artigos. O primeiro decreta o fim do regime escravocrata no Brasil. O segundo revoga as disposições em contrário.

Até então, o Brasil construiu e aplicou um sem-número de leis que limitavam ao máximo a vida de negros e ignoravam apelos internacionais para reduzir o trabalho forçado. A canetada garantiu liberdade uma população de escravizados, mas não freou o surgimento de legislações discriminatórias. A "neutralidade" dos dispositivos ignorava séculos de escravidão, enxergando como iguais cidadãos que, até pouco tempo antes, eram vistos como mercadoria.

Especialistas ouvidos por TAB contam como os diversos dispositivos legais surgidos antes e depois da Abolição desconsideravam abismos sociais para transformar o "todos são iguais perante a lei" em pretexto para marginalizar manifestações sociais, culturais e econômicas de ex-escravizados. Muito do que elas pregavam ainda está presente em regras que doutrinam nosso cotidiano.

O Brasil não teve leis segregacionistas como o regime Jim Crow, ou o apartheid na África do Sul. Mas não é preciso que a lei diga explicitamente que é contra o negro, nem que seja discriminatória, para produzir efeito muito semelhante. A neutralidade do sistema jurídico tem como foco o privilégio de determinado sujeito do Direito
Lívia Sant'Anna Vaz, mestra em Direito Público pela UFBA e promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia

INDEPENDÊNCIA E MORTE

Muito antes da libertação dos escravizados, o sistema Judiciário brasileiro já implementava barreiras que impediam o desenvolvimento pleno da vida de pessoas negras por aqui — mesmo que fossem livres e libertas. A Constituição de 1824, por exemplo, não mencionava "escravos" ou "escravidão". Quem a consulta não consegue entender o Brasil que surgia logo após a Independência.

"Se você ler aquele texto de maneira descontextualizada, talvez pense que não havia regime escravocrata no Brasil", diz Vaz.

O documento ignorou parte da população, mas diversas leis que se seguiram trataram especificamente de escravizados: um ato complementar à Carta proibiu negros de ir à escola. "Um decreto de 1854 impedia meninos portadores de doenças contagiosas, não vacinados e escravizados de frequentar grupos escolares. As pessoas negras deste país passaram décadas proibidas de ter educação formal", completa a promotora de Justiça.

Em 1835, entrou em vigor um dispositivo legal que previa pena de morte apenas para escravizados, ato para conter insurreições da época, como a Revolta dos Malês.

[A pena de morte está ligada a] uma revolta menos conhecida de 1833, em que escravos de uma fazenda de Minas mataram o senhor e toda sua família. Na época, isso chocou muito a Corte. Por isso, trataram de fazer um código paralelo para controlar os escravos, porque antes a gente não tinha uma legislação separada

Keila Grinberg, historiadora, escritora e professora da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

EM NOME DA FÉ

Além de não terem acesso à educação e sujeitos à pena capital, escravizados não podiam professar a própria fé. Desde 1805 o Brasil já classificava rituais religiosos diferentes do catolicismo como feitiçaria e os criminalizava.

Segundo Lívia Vaz, houve muitos processos de feitiçaria contra pessoas negras escravizadas, e a pena para isso era a morte.

A partir de 1890, cultos afro-brasileiros eram enquadrados nos artigos 157 (espiritismo, magia e outros sortilégios) e 158 (curandeirismo) do Código Penal. Em 1942, uma reforma acabou com a criminalização oficial da umbanda e do candomblé no Brasil. Ainda hoje, porém, as definições de charlatanismo e curandeirismo são usadas para criminalizar terreiros e religiões afro-brasileiras, diz a promotora e historiadora.

"Trabalhando na promotoria de combate ao racismo e intolerância religiosa de Salvador há cinco anos, eu atendo muitos casos de intolerância religiosa. O termo 'charlatão' é muito usado nos crimes de injúria religiosa contra pessoas adeptas de religião de matriz africana. É uma legislação que não precisa dizer que é contra o negro, contra religiões de matriz africana, para produzir esse efeito."

DO PITO DO PANGO À LEI DE DROGAS

No livro "O Quilombo dos Palmares", o historiador e etnólogo Edison Carneiro relata assim a chegada da maconha ao Brasil:

Nos momentos de tristeza, de banzo e de saudade da África, os negros tinham ali à mão a liamba, de cuja inflorescência retiravam a maconha, que pitavam por um cachimbo de barro montado sobre um longo canudo de taquari atravessando uma cabaça de água onde o fumo esfriava. (...) Era fumo de Angola, a planta que dava sonhos maravilhosos

Conhecido popularmente como pito do Pango, por ser consumido pelos escravizados em cachimbos de barro, o fumo de Angola foi proibido em 1830 no Rio de Janeiro, à época capital federal. Abrigo da maior população escravizada entre as colônias, o Rio virou o primeiro lugar a criminalizar a maconha no mundo. Era o primeiro passo do Brasil na "guerra às drogas" que, 176 anos depois, daria origem à Lei de Drogas, de 2006.

"A lei de drogas é um exemplo nítido da aplicação de uma legislação para contenção da cidadania de uma parcela expressiva da população e para o sequestro da produção material e intelectual de uma grande maioria por uma minoria branca", diz ao TAB Dudu Ribeiro, historiador e coordenador da Iniciativa Negra, ONG que defende uma nova política sobre drogas.

A separação de usuários e traficantes, contida na letra da lei, não é aplicada na realidade. A lei não é apenas para encarcerar pessoas que praticam as condutas previstas nela. Mas permite um conjunto de políticas de aumento da violência na distribuição desigual de oportunidades, na criminalização de territórios e na estigmatização de um conjunto de pessoas

Dudu Ribeiro, historiador e coordenador da Iniciativa Negra, ONG que defende uma nova política sobre drogas. 

LEIS PARA INGLÊS VER

Até a Lei Áurea, o Brasil flexibilizou no papel o regime escravocrata. Mas, na prática, pouca coisa mudou. Pressionado pela Inglaterra, o país criou em 1850 a Lei Eusébio de Queirós, que encerra oficialmente o tráfico de escravizados. Àquela altura, o país já era o principal destino de escravizados no Ocidente (40% dos 12 milhões de africanos retirados à força de suas terras).

Cinco anos antes, os ingleses mostravam que não estavam brincando: decretavam a Lei Bill Aberdeen, que dava permissão para navios britânicos invadirem o território brasileiro e apreender embarcações que estivessem transportando de escravizados. A lei brasileira, porém, permitia que os africanos por aqui seguissem trabalhando como escravos.

Outra determinação que buscava responder aos desejos ingleses, mas que tinha efeitos quase nulos, foi a Lei do Ventre Livre, de 1871. Ela libertava os filhos de escravizadas, mas não suas mães, o que mantinha crianças presas ao regime até conseguir sua emancipação. Já a Lei do Sexagenário, de 1885, tornava livres os escravizados maiores de 60 anos. O problema é que a expectativa de vida dos negros mal chegava à metade disso.

ARAPUCA PÓS-ABOLIÇÃO

Da Constituição de 1824 à atual, o princípio de que "todos são iguais perante a lei" está presente, lembra a promotora Sant'Anna Vaz. Essa ideia de neutralidade escondia nas entrelinhas que a aplicação da lei tinha endereço certo, pois atingia com mais força determinados grupos sociais.

Ainda assim, alguns dispositivos nem se davam ao trabalho de disfarçar. Um dos elementos desse processo foi a instauração velada de uma política de "limpeza" social a partir da abolição. No Código Penal de 1890, o Congresso Nacional dá a si o poder de permitir o ingresso ou não de imigrantes africanos e asiáticos em solo brasileiro, especificação que não é mais prevista na atual Lei de Migração, sancionada em maio de 2017.

Ao mesmo tempo, o país investia na vinda de europeus, especialmente para a produção cafeeira do Sudeste brasileiro, em alta entre os séculos 19 e 20. A província de São Paulo, por exemplo, criou a Sociedade Promotora da Imigração em 1886 para recrutar, transportar e distribuir trabalhadores europeus pelas fazendas paulistas.

"Esses imigrantes têm acesso a terra, moradia e a postos de trabalho que eram ocupados por pessoas negras escravizadas. Nesse momento da história, cria-se um obstáculo muito severo para pessoas negras recém-libertas formarem uma possível classe média", afirma a promotora.

Outro desses obstáculos é a Lei de Terras. Escrito em 18 de setembro de 1850, o dispositivo legal reconhecia como propriedade apenas as terras adquiridas por meio de compra. Os negros, por não terem recursos para comprar terras, só poderiam adquiri-la por meio de posse.

A lei foi extraoficialmente substituída pelo Estatuto da Terra, sancionado em 30 de novembro de 1964, nos primeiros meses da ditadura militar, em uma tentativa do governo de realizar uma reforma agrária e conter movimentos camponeses. Se a Lei de Terras tinha o foco de formalizar a propriedade privada, o Estatuto da Terra tentava garantir acesso à terra para quem vive e trabalha nela. Ainda assim, deixou de fora a demarcação de terras indígenas e quilombolas, o que estimulou um ambiente hostil no interior do Brasil.

As oportunidades de trabalho também são outro campo em que falta incentivo.

Não tem nada na letra da lei que impeça a pessoa negra de ser rica e acessar [empregos], mas as oportunidades são muito menores. Quem olha pra isso é o Getúlio [Vargas], que cria a 'lei do um terço', nos anos 1930, que obriga toda fábrica a ter um terço dos chamados 'trabalhadores nacionais'. Com isso, boa parte da população negra, que não tinha emprego formal nem trabalhava nas fábricas, passou a conseguir

Keila Grinberg, historiadora, escritora e professora da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)

DA VADIAGEM À APOLOGIA AO CRIME

Sem trabalho e impedido de frequentar escolas, os negros viram também suas manifestações culturais e civis criminalizadas por toda a primeira metade do século 20. Em 1942, o movimento é cristalizado pela Lei da Vadiagem, que punia quem estivesse "habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que assegure meios bastantes de subsistência, ou de prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita". Um dos seus efeitos foi perseguir sambistas.

O termo "vadio", no entanto, já estava presente no Código Penal de 1890, que proibia "exercícios de habilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem".

Nos anos 1990, as forças policiais realizavam malabarismos legais para criminalizar o rap. Os Racionais MC's foram mais de uma vez detidos pela polícia sob a suspeita de "apologia ao crime", assim como os integrantes do Planet Hemp, presos em Brasília, em 1997, acusados de fazer "apologia às drogas".

Em 2017, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) da Câmara dos Deputados revogou um projeto de lei que visava transformar o funk em "crime contra a saúde pública". Porém, ainda que sua criminalização não seja oficial, o ritmo é reprimido por outros dispositivos. Em 2017, o então governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) regulamentou por decreto a lei 16.049, que "restringe ruídos causados por aparelhos de som instalados em veículos estacionados em vias públicas ou calçadas particulares". Isso deu à Polícia Militar o poder para acabar com os pancadões.

[Falar de raça no Direito] não é identitarismo, é o reconhecimento de identidades, e que essas identidades podem significar um obstáculo para que pessoas acessem direitos fundamentais. O Direito precisa enxergar esses fatores. Enquanto o fator raça for obstáculo para pessoas acessarem direitos fundamentais, o Direito precisa continuar pautando raça para proteger e promover direitos

Lívia Sant'Anna Vaz, mestra em Direito Público pela UFBA e promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia

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