René Cardillo/UOL

José Rodrigues Neto, o Zico, 56, estava no telefone da recepção quando quatro policiais da equipe Falcão 41 do Denarc (Divisão Estadual de Narcóticos) entraram no Motel Bataklan. O papo do investigador Silvio Severino Pereira foi reto. Havia denúncia de que ele estava traficando drogas e seu quarto seria revistado.

No lugar errado e na hora errada, a ajudante geral Vera Lucia Valesi fazia outro caminho para chegar ao quarto 21 do Bataklan. Por uma abertura na parede — o chamado passa-pratos —, ela abastecia o cômodo com um rolo de papel higiênico e um copo limpo quando os agentes apareceram. Virou suspeita.

Pereira usou linguagem policialesca até depois de ser convencido da inocência da funcionária: Vera Lucia foi "arrolada" como testemunha.

A revista foi fácil. Em cima da pia do lavabo havia uma lata que fazia as vezes de fogareiro. As chamas mancharam de preto o fundo de uma tampa de marmita coberta por uma "substância amarronzada que estava endurecendo", descreveu Vera Lucia no depoimento.

No final do processo, formou-se um tijolo parecido com uma rapadura. Zico iria açoitar aquele bloco até ele virar pedra da droga recém-chegada ao Brasil, o crack. Mas deu tudo errado.

O homem, que se aproximava da terceira idade, encararia a 25ª passagem policial — a primeira prisão ocorreu em 1957. Desde então, Zico cometeu crimes em seis cidades paulistas: Bauru, Dracena, Mogi das Cruzes, Itaquaquecetuba, Suzano e São Paulo.

Se o traficante repetia um caminho conhecido, os investigadores tateavam um novo. Aquela foi a primeira prisão por tráfico de crack no Brasil.

Dados oficiais apontam que Zico foi detido por volta das 16h de 22 de junho de 1990 no Motel Bataklan, em Guaianases, zona leste de São Paulo. A prisão é citada en passant no livro "Crack: o caminho das pedras", de Marcos Uchôa, vencedor do Prêmio Jabuti de 1997, que faz uma imersão no submundo da droga no centro de São Paulo.

O calhamaço de 319 páginas do processo contra Zico repousava no almoxarifado da Justiça até o pedido de desarquivamento do TAB. A reportagem consultou o documento, ouviu os primeiros policiais a enfrentar o crack no país e conversou com familiares de usuários daquela época para contar a história do primeiro traficante preso com crack no Brasil e como essa história se entrelaça à formação do que hoje é conhecido como "cracolândia".

Zico chegou ao Motel Bataklan no dia anterior à prisão acompanhado de Mônica Soares Souza, na época com 23 anos. A garota permaneceu sentada na cama enquanto os policiais revistavam o quarto. Ela foi descrita pelo traficante como "uma pobre coitada que estava ali somente como companhia".

Os policiais não lhe deram muita atenção. Estavam mais curiosos com o pacote de cocaína e o revólver sobre a mesa. Também perceberam a existência de um cachimbo com restos de crack. A polícia não era o único problema de Zico.

Levado à delegacia, o traficante confirmou que era de Campos da Cunha (SP), trabalhava como barbeiro e estava encostado por causa de um problema na vista. Acrescentou que morava com um filho no Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo.

Durante o depoimento, afirmou que conheceu o dono do motel em mesa de jogo, assumiu a posse da arma e desconversou sobre o crack. Foi enquadrado por tráfico de drogas e mandado para o Carandiru.

A cena do crack que Zico integrava em 1990 é muito diferente da "cracolândia" atual. Era tudo tão novo que o promotor escreveu "clack" no pedido de abertura da ação. O PCC (Primeiro Comando da Capital) nem sequer existia e os donos de boca de fumo estavam preocupados em "fazer presença", ou seja, dar um pouco de crack para o cliente experimentar.

Na época, as pedras não chegavam prontas. Era preciso "cozinhar" o crack misturando cocaína, bicarbonato de sódio e água no fogo — tal qual Zico fazia no Bataklan. A "presença" dos traficantes seguia a mesma fórmula, mas em menor proporção. O crack era preparado em uma colher e um isqueiro servia de fogareiro, formando uma camada fina sobre a parte cavada do talher.

A fase ficou conhecida como o tempo do "crack casca", explica Solange Nappo, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. As estratégias de mercado incluíram "venda casada": o usuário ia comprar maconha e só se fechava negócio se aceitasse levar crack junto.

A cocaína era então vista como droga de artistas e políticos da alta sociedade. Os traficantes tentaram trabalhar o crack como uma cocaína acessível — as pedras de Zico seriam vendidas por mil cruzeiros.

Os traficantes descobriram que o usuário da nova droga, chamada de "cocaína de pobre" ou "cocaína fumada", fazia qualquer coisa pela próxima pedra. Foi a hora de abandonar o menu-degustação do "crack casca" e cozinhar quantidades maiores. Surgiam as paneladas, que usavam pasta-base como matéria-prima, muito mais barata que a cocaína. Restos da pasta-base, que países latino-americanos produtores de cocaína mandariam para EUA e Europa, foram ficando no corredor da rota de comércio, o Brasil.

Bastou um ano para a situação degringolar, lembra Marco Antônio de Paula Santos, então delegado-chefe da Dise (Divisão de Investigação Sobre Entorpecentes) do Denarc. "O bicho pegou em 1991."

Depois de três apreensões na "Boca do Lixo", na região da Luz, o crack reapareceu com força no centro antigo de São Paulo. "A rua do Triunfo passou a ser o centro nervoso, com apreensões todo dia, e a grande maioria, de menores de idade. Mas é aquele negócio: eram rapidamente substituídos."

Estava lançada a base para o que seria conhecida como "bolsa da droga". O traficante cozinhava o crack e aparecia na rua do Triunfo no final da tarde. Era imediatamente cercado por dezenas de usuários que faziam seus lances. Por causa da agitação semelhante a uma bolsa de valores, a negociação ganhou o apelido de "pregão do crack".

Também apareceram os primeiros grupos de pessoas falando sozinhas e berrando nas calçadas durante surtos psicóticos. Hoje a cena é comum nas "cracolândias", mas, na época, era coisa inédita no Brasil. Comerciantes da rua do Triunfo e arredores viram a clientela desaparecer e tentaram resolver a situação por conta própria. Contrataram seguranças, a "turma dos pauladas". Não adiantou.

Roberto Alonso trabalhava de outro jeito. Ele era um dos investigadores da equipe de Marco Antônio no Denarc e se misturou ao tumulto da rua para identificar a origem dos traficantes. A investigação o levou a vários prédios da rua Guaianases. Hotéis que serviam de parada para viajantes até a década de 1980, quando a rodoviária deixou o centro, começaram a ser alugados por traficantes.

Surgiam as figuras que faziam a engrenagem da pedra girar. Diabo Loiro tinha 13 anos e surfava na lenda de que teria atirado contra a Polícia Militar. Não era levado a sério. A reputação que construiu foi a de garoto avoado preso 20 vezes. Traficante que vendia para manter o vício, acabou assassinado.

Maria Julia Bellaner, 25, era outra conhecida pelo apelido. Por causa do jeito de usar o cabelo e da pele muito branca, era chamada de Hippie. Mesmo grávida, a traficante cumpriu a rotina de cozinhar na Guaianases e vender na Triunfo até ser presa.

Outra característica da pedra é que tudo ao seu redor era sujo, descuidado e desumano. Roberto Alonso conta que as cozinhas eram muquifos com azulejos encardidos e geladeira e fogão enferrujados, combinando em decadência com os móveis queimados por cigarros.

O número 154 da rua Guaianases é um dos primeiros locais citados nos relatórios do Denarc aos quais o TAB teve acesso. Hoje, o primeiro piso do endereço abriga um restaurante peruano.

O negócio é tocado por Jussara Pereira de Oliveira, 54. Ela conta que comprou o prédio há 20 anos de pessoas que usavam o imóvel para rodadas de carteado a dinheiro grosso. Sem intimidade com o ramo, Jussara e a mulher abriram um restaurante de comida caseira e uma casa de prostituição.

"Funcionava das 9h da manhã às 9h da noite e era tipo lava-rápido, faz em 20 minutos e vai embora. Dá uma gozada e tchau."

Ao fim de 1991, as bases do mercado consumidor de crack estavam estabelecidas. O investigador Alonso diz que havia cerca de 40 pessoas perambulando por um quadrilátero do centro. Não significa que esse era o total de usuários. E era possível identificar dois públicos majoritários.

De um lado, homens na faixa dos 30 anos que usavam cocaína injetável e partiram para o crack por medo da Aids; de outro, jovens começando a experimentar drogas e que se viram arrebatados pela pedra.

Havia bem menos mulheres e a maioria das usuárias eram prostitutas da região central da cidade. Eram chamadas de "micróbias". A maioria contraiu HIV por aceitar fazer sexo sem camisinha.

O delegado Luiz Carlos Magno trabalhava em outra frente de atuação do Denarc, a Dipe (Divisão de Prevenção e Educação). Percebendo a disseminação do crack, os policiais dessa área começaram um trabalho de orientação e tentativa de encaminhamento para clínicas.

Para facilitar a adesão, não era preciso dar o nome; apelido servia. O serviço começou a ter fila de espera e receber até 25 pessoas por dia, a maioria se identificando como Pelé, Zóio, Baixinho ou Nordestino. Logo, o mito de droga de pobre caiu por terra e a Dipe se acostumou a servir água com açúcar para famílias que desmoronavam em suas salas.

Pais descobriam que a correntinha não havia desaparecido pelas mãos da empregada. Que o sumiço do toca-fitas dos carros em plena garagem de prédio de alto padrão foi obra dos filhos dos donos. Abrigada no sétimo e no oitavo andares de um prédio, a divisão instalou grades nas janelas para evitar suicídios.

Um memorando enviado às autoridades de segurança pública do estado alertava sobre uma epidemia de viciados, lembra o investigador Alexandre Avilez, palestrante da Dipe desde o começo do crack no Brasil. "O crack não existe e o que está ocorrendo é um surto de epilepsia" — esta foi a resposta que recebeu.

Somente os hospitais de Taipas (zona norte) e Água Funda (zona sul) prestavam serviço a dependentes químicos. Pérsio Gomes de Deus dirigia o departamento do Água Funda e sua equipe ficou espantada com a degradação física dos novos pacientes. Alertas foram disparados às autoridades de saúde. "Eles não aumentaram a rede, não nos deram mais condições."

O resultado foram empresários, engenheiros, advogados e gente do mercado financeiro querendo pagar para internar seus filhos num hospital de indigentes. Pérsio lembra de traficante oferecer dinheiro para conseguir um leito.

O relatório do Denarc indica que, em 1993, o número de usuários no centro já era de centenas. À noite, eles se reuniam na "radiação", pontos de consumo frenético.

Foi nessa época, conta o delegado Luiz Carlos Magno, que surgiu o medo de furtos e roubos nas praças da República e Sé. Num tempo em que não havia celular, correntinhas e toca-fitas eram os objetos mais visados. Os motoristas também tinham prejuízos com as antenas dos veículos, que sumiam para virar cachimbo.

Roubar moradores e comerciantes não era atitude tolerada na periferia, assinala o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) Bruno Paes Manso. Usuários de crack, os autores destes crimes, entravam na lista de grupos de extermínio e falava-se que não mereciam morrer de tiro, mas a pedradas.

"O centro vira um exílio do consumo, um reduto em que se consegue consumir com segurança."

Braço era um dos usuários que frequentavam o centro antigo para gozar dessa proteção. O apelido vinha de cicatrizes de facadas no bíceps e tríceps do braço direito. Ele não falava sobre o assunto. Na verdade, não falava coisa com coisa. Dependente avançado, só parava de fumar ao atingir o torpor que vem depois de dias seguidos no crack.

Quem conta a história é a professora Solange Nappo, que fez várias entrevistas com Braço. A pesquisadora usa o caso para derrubar o mito de que todo usuário morre depressa. Ele está vivo até hoje e deixou a droga. Vida nova, mas não uma vida correta. Braço entrou para o PCC. A facção cresceu os olhos para a "cracolândia" em 2014 por causa do potencial econômico. Um estudo de fevereiro de 2020 estimou que o faturamento mensal na "cracolândia" chegava a quase R$ 10 milhões.

O local virou um imenso pregão do crack. Os dias de venda alta são celebrados com o traficante gritando "aleluia de drogas!" e jogando um punhado de pedras para o alto.

O caráter de feira livre de crack tão associado às ruas da "cracolândia" começou a se impor conforme a década de 1990 avançou. Os usuários passaram a fumar à luz do dia e depois pararam de se esconder. Acendiam o cachimbo em qualquer lugar.

Nos anos 1990, havia uma confraria de chefões e o centro era área livre. Isso fez proliferar todo tipo de traficante: o local, quem passava uma semana no centro cozinhando e quem cozinhava na quebrada e transportava para vender no centro.

Ao mesmo tempo, havia o traficante que usava, o que não usava, o que terceirizava a venda e o que produzia e vendia. Toda essa força motriz estava concentrada em atender a uma demanda cada vez mais desenfreada. "A 'cracolândia' é algo que se formou no caos", resume Marco Antônio.

O centro aceitava todo mundo e 85% dos ex-detentos rumavam para lá ao recuperar a liberdade. Zico não escolheu esse caminho quando foi solto do Carandiru, em 28 de agosto de 1990. O traficante preferiu reencontrar Mônica na zona leste.

Angelina Soares Sousa, 74, já estava em polvorosa porque a filha passava dias sem dar notícia ou aparecer em casa. Ao saber que ela estava andando com Zico novamente, pressentiu que tudo iria piorar.

Estava certa. Mônica passou a viver em situação de rua. A decadência era visível, e as notícias, cada vez mais esparsas. Virou o ano e a única novidade envolvia Zico: ele dera entrada no hospital Tide Setubal, na zona leste, com uma facada. Morreu em 5 de fevereiro de 1991. A causa indicada na certidão de óbito foi "hemorragia interna aguda. Agente perfuro-contundente".

Esses detalhes não chegaram a Angelina. Ela soube da versão resumida espalhada na quebrada: "Deram cabo de Zico na favela do Boi". Mônica durou mais tempo, mas sempre morando na rua. Em 1997, foi assassinada no Parque Santa Rita, também na zona leste. A mãe não teve tempo de chorar: a notícia veio junto com duas meninas de fralda, filhas de Mônica, das quais passou a cuidar.

A sina de Zico antecipa vários caminhos do crack: as cozinhas improvisadas, a prisão e o traficante/usuário afundado numa espécie de suicídio light. Tornava-se escravo da pedra até definhar ou morrer de morte violenta.

Abalroado pela segunda opção, Zico foi enterrado no Cemitério da Saudade. Naquela época, os agentes do Denarc descobriram as cozinhas da rua Guaianases e se espantaram ao prender outro traficante, Reinaldo, já portando uma quantidade maior, 0,5 kg de crack.

Apenas quatro anos depois, em 18 de julho de 1995, Kito caiu na marginal Tietê com 200 kg de pasta-base. A ideia era cozinhar 1 milhão de pedras, o que dá a dimensão da explosão do crack.

A essa altura, usuários e traficantes davam um novo nome ao pedaço do centro de São Paulo dominado pela droga. O nome saiu do submundo e se tornou público pela primeira vez na edição de 15 de julho de 1995 do jornal O Estado de S. Paulo: "cracolândia".

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