Fuga para o Brasil

A crise da Venezuela explicada por imigrantes que tentam sobreviver em Roraima

Você está em Boa Vista, Roraima. É a mais setentrional das capitais brasileiras. O calor é senegalês e o ritmo de vida pode ser considerado pacato para uma cidade desse porte – segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), pouco mais de 330 mil pessoas vivem ali. De repente, você, boa-vistense ou não, se dá conta que há vendedores e limpadores de para-brisa em quase todos os semáforos. Pedintes se aglomeram, principalmente em frente aos restaurantes. Cartazes com erros de português – “pedindo uma ajuda do você”, por exemplo – são carregados por pessoas que passam uma mensagem clara em qualquer idioma: estão fugindo de um caos social. Os venezuelanos invadiram Roraima. E estão famintos.

Há quase dois anos como voluntário e jornalista, trabalhando em crises humanitárias principalmente na Grécia e na Itália, vi de perto o desespero de sírios e afegãos fugindo de guerras e traumas dos mais diversos. Convivi com africanos que trabalharam como escravos na Líbia antes de escaparem para a Europa. Mas nunca havia visto um povo com tamanho grau de desnutrição e em condições de vida tão insalubres como os venezuelanos, que representaram 17 mil das 33 mil solicitações de refúgio que chegaram ao Conare (Comitê Nacional para Refugiados) em 2017 – um aumento de 228% em relação ao ano anterior.

É uma bomba relógio que está longe dos holofotes. Se colocarmos no papel que, além das solicitações de refúgio (processo pelo qual o requerente tem permissão de um ano para estar em solo brasileiro enquanto aguarda sua tramitação), ainda existem os pedidos de residência temporária (dois anos, se aceito; neste caso, é preciso apresentar a certidão de nascimento, além da cédula de identidade venezuelana) e aqueles que entram de forma ilegal, já são mais de 30 mil venezuelanos no país, de acordo com estimativa da Polícia Federal. A maioria deles entra por Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, e percorre outros 200 km até Boa Vista – no vizinho Amazonas, a capital Manaus recebeu uma parte menor dessas pessoas.

É um fluxo migratório diferente do que ocorreu com os haitianos, por exemplo, após o terremoto que destruiu o país em 2010, no qual a mancha de deslocamento atingiu outras regiões do Brasil. Desta vez, os venezuelanos, em sua maioria, chegaram para ficar em Boa Vista. Não mostram intenção de deixar a cidade. Primeiro porque eles aceitam ser explorados como mão de obra barata – qualquer diária de R$ 20 vale uma semana de comida e suprimentos para familiares que ainda estão na Venezuela. É a possibilidade do dinheiro rápido para quem está passando fome. Segundo, pela questão geográfica: ao juntarem alimento e alguns reais, eles podem voltar para Santa Helena de Uairén, do outro lado da fronteira, e seguir viagem para visitarem familiares.

A maioria é jovem, do sexo masculino, tem boa formação educacional e, em comparação com países europeus, onde a espera pela legalização é longa, não tem encontrado muitas dificuldades para regularizar os papéis. Em um mês, vi diversos imigrantes com os devidos protocolos e liberação para o cadastro de pessoa física, carteira de trabalho e acesso ao SUS (Sistema Único de Saúde).

Mas quem são essas pessoas e por que elas vieram ao Brasil? O governo do presidente Nicolás Maduro e a oposição têm seus discursos. A imprensa destaca o tema, mas sem falar com e sobre quem mais sofre com tanta pobreza: o povo. A classe média. Os pobres. O objetivo aqui foi seguir a premissa de outras experiências com imigrantes e refugiados narradas no TAB: abrir “o microfone” para quem quiser se expressar.

Por 30 dias, trabalhei como voluntário e jornalista independente no ginásio Tancredão, onde dei aulas de português de segunda a sexta-feira com o auxílio de uma igreja adventista local, que me emprestou telão, microfone e cadeiras para acomodar os novos estudantes. Afinal, se eles queriam inserção no mercado de trabalho, a primeira barreira a ser superada era a do idioma – foram muitas as correções de cartazes de quem pedia emprego, um trabalho, uma ajuda pelas ruas.

Organizamos e colocamos para funcionar ações médicas de forma independente, com apoio de estudantes de medicina da Universidade Estadual de Roraima – o ambiente do ginásio era tão insalubre que, de cada dois venezuelanos que eu conhecia, um tinha as manchas vermelhas características da sarna. Ao menos 800 pessoas viviam no local.

Casos de tuberculose e suspeitas de meningite também foram registrados. No banheiro masculino tinha um chuveiro que funcionava direito, dois vasos sanitários e três mictórios - um deles interditado. Não entrei no feminino, mas segundo uma médica do Hospital da Criança de Boa Vista as condições do local foram responsáveis por uma garota contrair uma infecção urinária.

Com a associação Fraternidade Sem Fronteiras, doamos madeira e contratamos dois venezuelanos para o trabalho de carpintaria que resultou na produção de 32 mesas e bancos de um novo abrigo, que foi inaugurado pouco antes do Natal e atende mais de 300 pessoas.

Foi uma imersão na crise venezuelana: ouvi que as crianças estão desmaiando de fome nos colégios e que o Brasil é um país onde se cumpre as leis. O motivo? “Todo mundo aqui usa cinto de segurança nos carros e capacete quando anda de moto” era uma explicação comum, assim como o riscos sobre ser crítico ao governo Maduro: “serás perseguido, preso ou morto”.

Vi crianças sujas, magras, comendo um prato de arroz como se fosse um banquete. Vi também em duas ocasiões a Defesa Civil armazenar pedaços de ossos de boi no único freezer da cozinha para os venezuelanos comerem. Sim, a situação é caótica, tanto que a governadora Suely Campos (PP) decretou em dezembro de 2017 estado de emergência social. Mas a ideia de que pedaços de ossos poderiam ser entregues para os venezuelanos puxarem o resto de carne “e juntar no arroz” foi o suficiente para escutar "não somos perros (cachorros)" de muitos imigrantes.

Sobre essa questão, a Cepdec (Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil) esclareceu em nota que as "refeições diárias também são oriundas de doações", complementando ainda que "as quais são recepcionadas pela coordenação do abrigo e manipuladas pela equipe de cozinha que mantém a inspeção necessária e o aproveitamento do que é próprio para o consumo humano". Por fim, acrescentou também que "muitos pratos típicos da região (Venezuela) usam partes do osso bovino como componentes complementares nas refeições da culinária local".

Em outro dos muitos lados desse drama, os venezuelanos que por algum motivo são enviados para penitenciárias são obrigados a se juntarem ao PCC - um dia surgiu no abrigo uma pichação “15 3 3” (PCC, pela ordem das letras no alfabeto). O clima ficou bem estranho até os números serem apagados.

Também é trágica a situação das “otchenta”, como são chamadas as venezuelanas que se prostituem em praticamente todas as esquinas do antes pacato bairro do Caimbé. Os moradores não escondem o incômodo. Por outro lado, não há também interesse em saber os motivos que levaram todas essas mulheres às ruas. Nunca vou esquecer o dia em que um jornal local estampou uma charge na qual um homem perguntava a uma mulher, com seios e quadris exagerados, se entre as “otchenta” rolava uma “black friday”.

Seguindo a premissa dos projetos Drawfugees e I Am Immigrant, nos quais o mais importante é dar voz aos imigrantes, deixo os depoimentos abaixo a quem quiser entender o que acontece além da fronteira. São as palavras de quem vive na pele todos os efeitos de uma imigração que é baseada na fome e, segundo vários deles, na perseguição política.

O drama venezuelano

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