Que horas eles voltam?

Os rostos e histórias de pessoas que desaparecem sem deixar vestígios

O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores e de gente que não disse adeus.

Gente como Marco Aurélio Bezerra Simon, que tinha 15 anos no dia 8 de junho de 1985. Era um sábado e ele fazia parte de um grupo de quatro escoteiros com a mesma idade que ia escalar o Pico dos Marins, próximo a Piquete (SP), na Serra da Mantiqueira. O comando do grupo era do espanhol Juan Bernabeu Céspedes. A 1.700 metros de altura, um dos jovens se machucou e o grupo resolveu voltar. Enquanto dois carregavam o ferido, o quarto escoteiro foi encarregado pelo líder para ir na frente e buscar ajuda. Era Marco Aurélio, na última vez em que ele foi visto.

Desde então, o jornalista Ivo Simon, que vai completar 78 anos em fevereiro, dedicou integralmente sua vida a encontrar o garoto, um dos seus cinco filhos. Naquele fim de semana ele havia ido com a mulher, Neuma, para o sítio. Ela pediu para voltar no sábado. No domingo à noite, Juan ligou avisando que Marco Aurélio tinha sumido.

“Não há uma prova de que ele morreu. Por que eu tenho que acreditar que ele morreu?”, pergunta Simon, diante da descrença de seus interlocutores depois de tantos anos de busca. Na semana seguinte ao desaparecimento, teve início uma das maiores buscas já vistas no país. “Todo mundo me ajudou. A solidariedade do povo foi algo emocionante”, lembra. Nesse time de apoio, estavam três equipes do Comando de Operações Especiais, helicópteros e cães farejadores. Até um certo Michel Temer, então secretário de Segurança Pública, agiu diretamente no caso. Não foi encontrado um único vestígio do jovem. Todas as hipóteses foram levantadas. Nenhuma pista apareceu.

Simon tem uma sombria memória dos últimos momentos com o filho. “Eu dei carona até o metrô, onde eles iam pegar um ônibus. Dei um abraço nele e passou na minha cabeça que jamais iria vê-lo de novo”, afirma. “Pensei: ‘Fizemos tanto para salvar a vida desse garoto e agora vamos soltá-lo no mundo?’.” Ivo e Neuma já tinham dois filhos quando os gêmeos Marco Antonio e Marco Aurélio nasceram, em janeiro de 1970, com seis meses e meio de gestação. Eles passaram três meses em incubadora. Foram longos períodos em operações e internações. Durante muito tempo estiveram entre a vida e a morte. O pai usa a imagem atual de Marco Antonio, 47, para projetar como o irmão estaria hoje.

Juan, o líder da tropa, está vivo e bem. Mora em Manaus. O TAB o procurou para falar sobre o caso, mas não teve retorno. Outros veículos que tentaram ouvi-lo em diferentes ocasiões também ficaram sem resposta. Dona Neuma, mulher, mãe e companheira na busca por Marco Aurélio, morreu no fim de 2015. Com Ivo, ela seguiu todas as pistas que poderiam levar ao filho. O pai lembra de ter assistido a jogos da Copa do Mundo de 1986 dentro da Divisão Anti-Sequestro da Polícia de São Paulo. “O caso era tão estranho que eles queriam achar um culpado, e o principal suspeito era o Juan, mas eu nunca acreditei que ele matou meu filho”, afirma Simon. “Mas a irresponsabilidade dele, de ter deixado o Marco Aurélio seguir sozinho na frente, acabou com a minha vida”, desabafa.

 

Gente como Ana Paula Moreno, que tinha 23 anos em 3 de outubro de 2009, quando saiu às 5h20 de casa para o trabalho em Carapicuíba (SP) e nunca mais foi vista. Sua mãe, Sandra, se separou grávida de dois meses da filha, a terceira, depois de uma traição. O marido havia sido o primeiro homem da vida dela, e Sandra decidiu viver para os filhos. “Costumava dizer que a sorte que não tive no amor, eu tive com os filhos”, define. As duas trabalhavam na mesma empresa de processamento e emissão de documentos transacionais. Ana Paula pela manhã, Sandra à tarde. Ana gostava de pintar, não era muito de sair e tinha os mesmos amigos desde a adolescência.

“Todos os dias, quando meus filhos saem para trabalhar, eu consigo acompanhá-los mentalmente. Se eu vir a minha filha entrando no shopping e ligar para ela, ela vai me dizer que está entrando no shopping, entende?”, diz Sandra. Ela lembra que, na manhã do desaparecimento, só conseguiu enxergar Ana Paula até a primeira esquina, onde ela viu dois homens. Depois, a filha desapareceu.

Diante da impossibilidade de conseguir resultados na Justiça, Sandra levantou de forma ilegal o extrato telefônico da filha. Nada de suspeito foi encontrado. Conseguiu também levantar a movimentação da conta bancária de Ana Paula. Nem um centavo havia sido sacado.

“Uma das hipóteses que cogitei foi de, eventualmente, ela ter tido um acidente e perdido a memória”, diz a mãe. Isso a levou a passar dias na cracolândia, na região central de São Paulo, mas Ana Paula não estava lá. Passou noites andando pela cidade, entrou em favelas, invadiu lugares de desovas de cadáveres. “Fiquei uma semana com os moradores da Praça da Sé. Depois recebi um telefonema que ela estaria em Santos e passei três dias lá dormindo com os moradores de rua. Fui a Curitiba, Rio, Itu, Recife. Até hoje, onde disserem que ela foi vista, eu vou”, afirma Sandra, que só tem uma certeza: a filha está viva. “Deus me faz acreditar nisso para continuar de pé, porque não estou preparada para lidar com a minha filha morta. Se pensar isso hoje, eu desabo”, confessa.

Sandra esteve nove vezes em Brasília. Visitou o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos, a Presidência da República. A parceria com o Ministério Público de São Paulo foi a mais efetiva. “A Lei de 2014, que prevê que um inquérito não pode ser encerrado enquanto não houver uma resposta para as famílias, foi tirada do meu projeto”, conta. Sandra elaborou um projeto de lei que foi aproveitado em partes pelo MP.

A gênese tanto da peregrinação quanto da proposta de mudança da lei foi a falta de uma resposta policial. “Eu cheguei lá e eles me disseram: ‘Agora a senhora traz informações e, se tiver novidades, a gente vai atrás’. Aquilo foi um tapa na minha cara, eu queria avançar no delegado”, lembra. “No momento em que fiz um boletim de ocorrência na delegacia em Carapicuíba, não parece razoável que essa informação esteja disponibilizada na mesma hora para todas as delegacias do Brasil? Para pedir as imagens do aeroporto para saber se a minha filha passou por lá eu preciso de uma ordem judicial e, até isso acontecer, minha filha já está no Japão!”

 

Gente como Priscila Vieira Belfort, que tinha 29 anos no dia 9 de janeiro de 2004. Naquela manhã sua mãe, Maria Jovita Vieira, deu carona a ela até o trabalho, na esquina da rua Uruguaiana com a avenida Presidente Vargas, no centro do Rio. Foi quando viu a filha pela última vez. Funcionária da prefeitura, Priscila estava instalada com a mãe na casa da avó, na Zona Sul, enquanto o irmão, o lutador de MMA Vitor Belfort, ocupava a casa onde as duas moravam, na Zona Oeste, para se preparar para uma luta.

 

“Sou separada e nós três sempre fomos muito unidos, estávamos sempre juntos”, relembra Jovita. Naquele dia, o namorado da Priscila, Lucas, ligou dizendo que eles tinham combinado de almoçar, mas não tinha notícia dela. Quando Jovita conseguiu falar na Fundação Esporte e Lazer, órgão da prefeitura onde Priscila trabalhava, disseram que ela tinha saído para almoçar e não havia voltado. “Quando recebi o telefonema perguntando por ela, senti uma coisa esquisita. Queria evitar de falar com o Vitor porque ele estava em treinamento, mas quase dez da noite eu liguei para a Joana (Prado, mulher do Vitor) porque era uma situação estranha, ninguém tinha notícia”, conta Jovita. “Aquela primeira noite foi um terror, as horas pareciam intermináveis.”

O caso foi para a Delegacia Anti-Sequestro porque, no primeiro fim de semana, depois que o caso foi noticiado, houve um pedido de resgate, mas era falso. Foi na Anti-Sequestro que aconteceu algo que intriga Jovita até hoje. “Cheguei com o pai da Priscila e vi o Lucas com o pai dele e o Técio Lins e Silva. Desaparecimento não é crime, e ele aparece com o pai e com um dos maiores advogados criminalistas do país?”, questiona. Priscila falava em terminar o namoro e Jovita acredita que Lucas não foi investigado como deveria.

 

“A primeira coisa que as pessoas pensam sobre um desaparecido é que ou ele brigou com a família ou que mexe com algo suspeito. Levantamos telefonemas, conta bancária, tudo da Priscila, e nada de suspeito apareceu”, lembra a mãe, que se recorda de ter se irritado ao ouvir de um dos agentes dentro da delegacia algo como “ah, mãe, depois do Carnaval ela volta da Bahia...”

Jovita é uma rara mãe que não se furta a falar de morte. “Meu pavor hoje é a minha filha ter sido morta e enterrada como indigente”, diz. Ela foi candidata à vereadora ano passado, usando o sobrenome Belfort. Não se elegeu, mas pensa em se candidatar a deputada estadual em 2018. Sua missão hoje é levantar a bandeira das famílias de desaparecidos. “Tem que passar fotos dos desaparecidos nas TVs, que são concessões públicas, nos telões dos aeroportos, engajar a sociedade”, diz Jovita, que foi uma das principais vozes a reclamar a DDPA (Delegacia de Descobertas de Paradeiros), criada em setembro de 2014. “Vivo hoje para que outras famílias tenham a paz que não sei se eu vou ter”, desabafa. “A delegacia devia se chamar Priscila, de tanto que eu vivo lá.”

Mudança de cultura

A julgar pelos relatos anteriores, a DDPA era emergencial. Mas um decreto não basta para mudar a cultura enraizada nos setores de investigação. “Se você chega na delegacia e diz que seu filho desapareceu, o policial continua achando que isso é um problema seu, que esse assunto é desimportante”, diz Dijaci Oliveira, diretor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG (Universidade Federal de Goiás) e autor de “O Desaparecimento de Pessoas no Brasil” (Cânone Editorial, 2012).

Mudar a cultura exige permanente vigilância, como é a postura do Ministério Público. “Dizer que desaparecimento não é crime, para nós, é um discurso fácil. Essa não é uma questão de menor importância, é um trabalho de direitos humanos, e a gente não vê ainda essa consciência pública”, indica a promotora de Justiça Eliana Vendramini, coordenadora do Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos) do MP-SP.  O professor Dijaci Oliveira completa: “Quando não há crime, a polícia não vê razão para investigar. A gente não precisa transformar desaparecimento em crime, mas precisa garantir que, para cada desaparecimento, haja uma investigação policial que ajude a família”.

Nem toda polícia parece desinteressada no assunto. Há policiais como o tenente-coronel Marcus Roberto Claudino, coordenador do Programa S.O.S. Desaparecidos da Polícia Militar de Santa Catarina desde a sua criação, em 2012. Ele relatou sua experiência sobre o tema no livro “Mortos sem Sepultura – O Desaparecimento de Pessoas e seus Desdobramentos” (Palavracom Editora, 2014). Segundo ele, uma polícia mais efetiva no assunto é menos questão de dinheiro e mais de estratégia. “A gente provou aqui que não é preciso muito recurso, mas redirecionar parte do recurso já existente e usá-lo com inteligência”, afirma Claudino.

Ele avalia que cerca de 80% dos desaparecimentos têm raízes em conflitos familiares, entre maus tratos, assédios e consumo de drogas. E faz questão de ressaltar um detalhe pouco lembrado. “Entre os moradores de rua, além de problemas com bebida e droga, há também muita desilusão amorosa. Um exemplo foi o sujeito que encontramos aqui que tinha vindo a pé, de São Paulo a Florianópolis, depois que a mulher o abandonou.”

Conhece essa pessoa?

A família que busca um parente desaparecido precisa da polícia, mas não só. Em todos os relatos, uma frase é recorrente: “Uma mãe nunca deixa de buscar seu filho”.  Ou seja, a busca por um parente desaparecido é um fardo permanente, que mobiliza, paralisa e, frequentemente, desintegra as pessoas que passam a viver em função dela. Logo, além de polícia, essas famílias precisam de conforto para encarar um roteiro no qual, muitas vezes, tão importante quanto achar a pessoa é saber o que aconteceu com ela. E saber que essa resposta pode não ser a desejada.

“É fundamental tornar conhecido os acontecimentos frente à morte por desaparecimento, pois está em jogo também o destino psíquico, a memória, a história pessoal e social de quem morre e de quem vive”, explica a psicanalista Bárbara de Souza Conte, integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. “Tudo que fica ‘desconhecido’ e não falado é fonte de sofrimento e impede saídas, vias simbólicas de recomposição frente à dor psíquica e à memória do acontecido”, conclui.

O maior conforto que as famílias buscam é encontrar o desaparecido. Mas nem todos analisam se estão realmente preparados para isso. Ivo Simon viu um menino de 15 anos pela última vez, e, se tudo der certo, vai reencontrar um homem de 47 anos, que passou mais de dois terços da vida longe dele. “Seja lá o que tenha acontecido, estou preparado para qualquer coisa, só quero meu filho de volta. Eu nunca mudei a fachada da minha casa, porque, se ele voltar, vai precisar lembrar dela como a conheceu.”

Jovita Belfort despediu-se em 2004 de uma moça de 29 anos, de quem sabia tudo a respeito, e hoje estará diante de uma mulher de 42 anos de quem nada soube desde então. “Não importa, mesmo se ela estiver na rua, mal, destruída, me tragam a Priscila de volta que eu vou arrumá-la.” Sandra Moreno viu a filha pela última vez aos 23 anos e hoje procura uma mulher de 30 anos. Ela é sincera sobre o seu sentimento. “Estou preparada para encontrar a minha filha, não uma pessoa que eu não conheço. A delegacia fez uma projeção de como ela deve estar hoje. Respeito o trabalho dos peritos, mas não consigo olhar, não aceito aquela pessoa. Eu busco a Ana Paula que saiu daqui em 2009.”

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