JULGA A JATO

Tecnologia pode acelerar um Brasil cada vez mais litigioso e até prever sentenças

A indústria da música foi a primeira a nos ensinar o que o avanço tecnológico pode fazer com um setor inteiro da sociedade. Do surgimento do Napster até o streaming do Spotify, a música foi obrigada a se repensar como produto. Com a telemedicina, ainda sem regulamentação no Brasil, ninguém sabe direito o que será, no futuro, uma consulta médica. E a pressão tecnológica também bate à porta dos tribunais.

Muito além de digitalizar documentos e protocolar processos via internet, várias startups especializadas, conhecidas como "legaltechs" ou "lawtechs", estão enxergando formas de diminuir o papelório do Judiciário e, de quebra, encontrar um novo jeito de fazer negócios entre um recurso e um veredito.

Essas empresas estão desenvolvendo tecnologias que facilitam o acesso de dados, o gerenciamento de documentos e a promoção de acordos entre as partes. Além da expectativa de maior eficiência, há também quem acredite que a entrada mais incisiva da tecnologia no território das togas ajude a simplificar o linguajar utilizado por advogados, juízes e promotores, que de tão complicado, ganhou o nome de "juridiquês". "Usar uma linguagem específica é ao mesmo tempo uma questão de identificação e de afirmação de pertencimento a um determinado grupo por conhecer os códigos", explica a antropóloga do direito Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer.

O CASTIGO NÃO VEM A CAVALO

O sistema judicial brasileiro é tão grande quanto lento. Hoje tramitam 80 milhões de processos, e os gastos com litígios atingem 1,4% do PIB nacional. Uma decisão em primeira instância demora em média dois anos e meio. Na fase de execução, o tempo médio chega a seis anos. Se subir às cortes superiores, o caso pode contado em décadas.

E a Justiça vive nas várias vias, cópias autenticadas, documentos protocolados do mundo analógico. Os Diários Oficiais, publicações que divulgam os atos oficiais do Executivo, Legislativo e Judiciário, passaram a ser publicados online em 2000, e só em 2017 foi suspensa a publicação em papel. "Nem todos os processos judiciais são eletrônicos. Algumas comarcas, especialmente no interior, ainda não estão online", diz Michelle Morcos, CEO da startup Justto, que atua com resolução de conflitos através de uma plataforma online.

Outro problema é que os homens da lei são pouco afeitos a padrões que a tecnologia costuma utilizar. "Quando um advogado abre um processo, ou quando um juiz publica uma sentença, eles não preenchem um formulário, com uma informação em cada campo. Eles publicam um texto corrido, que é uma comunicação difícil para softwares ou para algoritmos de inteligência artificial entenderem", afirma Morcos.

Ao lidar com dados "desestruturados", a coleta e análise desses dados se torna mais complexa, precisando de algoritmos mais refinados. "Pegamos um sistema ineficiente e digitalizamos. Ele está online, mas segue ineficiente", avalia a CEO.

LINGUAGEM CIFRADA

Traduzir as leis para a compreensão de um público mais amplo é algo que se discute desde os anos 1970. A ideia é tornar o conhecimento sobre elas e sobre os direitos do cidadão algo de domínio popular, explica Pastore, que é especialista em Antropologia da Política e do Direito na Universidade de São Paulo (USP).

Apesar dessa antiga movimentação, profissionais tendem a manter entre si uma linguagem própria, que permite uma comunicação mais veloz entre eles, apesar de cifrada para os leigos. "Todos os grupos [profissionais] tendem a querer preservar o seu poder ao preservar uma certa linguagem específica. É um modo de dizer 'esse campo é meu, eu o domino, tem uma senha para entrar'", ilustra.

Quem zapeia e cai na TV Justiça tem a sensação de estar em um canal estrangeiro, principalmente nos julgamentos do STF (Supremo Tribunal Federal), com os juízes misturando latim ("data venia" ou "erga omnes") e jargões incompreensíveis como "embargos infringentes" ou "trânsito em julgado".

Apesar disso, o acesso ao conhecimento por meio da internet faz com que as dificuldades de compreensão sejam cada vez menores. Pastore cita os exemplos de réus que sabem mais sobre suas ações e sobre o processo penal que muitos advogados.

UM PAÍS QUE GOSTA DE CONFLITO

O Brasil tem muitos processos e muitos advogados. "É um dilema interessante: somos hoje mais de 1,2 milhão de advogados no Brasil. Temos muitos processos porque temos muitos advogados, ou temos muitos advogados porque temos muitos processos?", diz Morcos, em tom de brincadeira.

O curioso é que nem todos esses advogados trabalham nas funções de defesa e acusação. Muitos atuam com serviços repetitivos, como decodificar sentenças e monitorar o andamento de casos, coisas que poderiam ser feitas por "robôs".

Por isso, a automação tem sido um grande flanco de atuação de diversas startups. Das dez melhores legaltechs destacadas pela plataforma 100 Open Startups em seu ranking de 2019, ao menos cinco têm como principal atividade a automação de algum processo jurídico. Mais do que ajudar a compreender a justiça, as startups e investidores estão de olho em organizar, catalogar e acelerar os processos jurídicos, para então poder focar em prever resultados e lucrar com isso.

"Usamos demais o sistema judiciário aqui no Brasil e criamos um cenário muito litigioso. Em outros países, as ferramentas de acordo, como arbitragem ou mediação, são mais comuns, porque acabam sendo mais baratas", explica o advogado e investidor Eduardo Cavaliere, da 798 Ventures, consultoria de investimentos para internacionalização, que estuda o mercado asiático das legaltechs.

O JÚRI É UM BANCO DE DADOS

Com a automação, a expectativa dos especialistas é que em breve os advogados encontrem novas áreas de atuação, trabalhando em parceria com sistemas, algoritmos e robôs.

Uma das potenciais novidades é o crescimento da jurimetria, nome dado à metodologia que mescla dados jurídicos e modelos estatísticos para classificar litígios e prever decisões. A jurimetria é capaz de saber, por exemplo, se um processo trabalhista tenderá a dar ganho à empresa ou ao trabalhador, oferecendo mais insumos para que os advogados preparem suas defesas ou deem preferência para a realização de um acordo.

"Com ela, os profissionais passam a tomar decisões orientados a partir das informações advindas dos dados coletados pelas plataformas, seja via descrição de casos anteriores ou pela predição de resultados futuros", detalha Salvatore Bruno, CEO da Kurier, uma das legaltechs brasileiras com esse tipo de serviço.

UBER ENGRAVATADO

O crescimento do interesse por automação também é reflexo das facilidades no nosso dia a dia. Afinal, se é possível pedir um carro ou uma comida via aplicativo e mandar mensagens instantâneas, por que não usar a mesma lógica dentro de escritórios de advocacia e nos tribunais?

"Se eu estou pegando Uber, que é muito mais inteligente, porque o meu processo na Justiça tem que funcionar daquela forma super ineficiente?", questiona Salvatore Bruno, CEO da Kurier.

Um dos poucos empreendedores de legaltechs que não tem formação em direito, Bruno lembra que advogados, juízes e promotores já foram, um dia, muito tradicionais, apegados à burocracia e aos processos envolvendo papel e caneta, mas que isso está ficando no passado. "Eles estão em um momento de transformação, muito receptivos a usar a tecnologia", opina.

JUSTIÇA TARDA, MAS NÃO FALHA

Vendo de fora, a impressão é de que o sistema judiciário e os advogados estão sempre "um passo atrás" das inovações tecnológicas. Certa lentidão não é bug do sistema, mas uma das bases de uma justiça confiável, explica o consultor jurídico Christian Perrone, doutorando e pesquisador da Georgetown Law School, nos EUA.

"A ideia geral da lei é restringir. É sempre importante ter um espaço para utilizar a tecnologia, enxergando quais são os problemas e dificuldades, e depois incorporar isso no mundo jurídico", detalha, em entrevista ao TAB durante a semana da International School of Law and Technology que aconteceu em São Paulo, em julho de 2019.

Essa lentidão na implementação também é o que garante que os profissionais estejam tomando o devido cuidado com a legislação, concordou Jaimie Boyd, diretora da iniciativa Open Government do Canadá, presente no evento. "Existe aquela máxima do 'mover-se rápido e quebrar coisas' [move fast and break things, famoso lema de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook]. Não! Precisamos nos mover devagar e construir coisas. Temos que ser cuidadosos. Estamos tomando decisões que impactam a nossa sociedade e não queremos errar. Precisamos [adotar as inovações] de forma enriquecedora. E isso, claro, é difícil", argumenta.

Ela acredita que o governo e os legisladores têm toda a razão de ter um perfil um pouco mais avesso ao risco, comparados aos investidores e fundadores de startups. "Precisamos pensar bem no que fazemos, criando um modelo de trabalho para que as próximas gerações continuem a inovar", acrescenta.

O QUE É TEU, É TEU

A visão de Boyd ilustra bem a razão pela qual certos tipos de legislação demoram tanto a serem definidas, validadas e implementadas, como é o caso da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil.

"Qualquer legislação acaba tendo certa dificuldade diante da inovação para conseguir evoluir de forma democrática. Muitas vezes, a inovação vai tomar rumos que não são os previstos ou desejados", diz a juíza Renata Souto Maior Baião, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Aprovada em julho de 2018 e prevista para entrar em vigor em agosto de 2020, a LGPD tem como objetivo regulamentar o tratamento de dados pessoais de clientes, funcionários ou usuários pelas empresas públicas e privadas. Mesmo sem o estabelecimento da LGPD, quem se sentisse lesado pelo uso dos seus dados já poderia entrar na Justiça. Segundo o advogado Georges Abboud, que faz parte da Comissão Especial de Proteção de Dados da OAB, regras mais claras levam as empresas a dobrarem os cuidados com compliance (agir seguindo as regras estabelecidas). "Proteger os dados e a intimidade das pessoas não é supérfluo. As principais democracias do mundo se preocupam com isso", frisa ele.

O EXPRESSO DO ORIENTE

Se nos países ocidentais há uma espécie de parada estratégica para rever os danos que os avanços tecnológicos podem causar, na China essa não é a preocupação.

Por funcionar sob um regime centralizado e nada democrático (e não haver nenhum melindre sobre o uso de dados pessoais), as startups chinesas voltadas ao direito vão de vento em popa, explica o advogado Cavaliere.

Tanto Brasil quanto China vivem hoje um cenário de hiperlitigiosidade - é só lembrar as batalhas recentes dos casos do Mensalão e Lava Jato. "No Brasil existem poucos dispositivos alternativos para a resolução de conflitos. Na China, o engarrafamento se dá não por falta de eficiência, mas por falta de braço: há apenas um advogado para cada 4,5 mil chineses", detalha Cavaliere.

Os dois países, entretanto, buscam maior eficiência, e nesse quesito a China apresenta políticas mais flexíveis para as legaltechs, que apostam na automação de processos judiciais. No Brasil, o movimento é mais lento, tanto pela recente (e parcial) digitalização do sistema e pelos limites da LGPD quanto pelo receio do que as essas startups podem provocar no mercado e em seus profissionais.

"Na China, a tecnologia das legaltechs não está tirando emprego de pessoas, mas desafogando profissionais sobrecarregados", explica Cavalieri. Por aqui, prevê o investidor, um sistema mais eficiente deve criar oportunidades. Advogados poderão atuar em outras frentes, fazendo trabalho consultivo, preventivo ou até inventando novas formas de resolução de conflitos, área que já é um dos grande flancos de atuação das legaltechs, com o crescimento das plataformas de Resolução de Conflitos Online, conhecidas pela sigla em inglês ODR (Online Dispute Resolution), como a Justto.

DECISÕES A PREÇO DE OURO

Em um curto prazo, especialistas ouvidos pelo TAB apontam para um futuro de menos ações judiciais. A promessa é que a tecnologia traga formas alternativas de resolver conflitos, antes de virarem processos.

No entanto, não é apenas a ânsia por acelerar a Justiça que move os investidores das legaltechs. O mercado financeiro também está de olho. "Fundos de investimento veem as legaltechs como uma interessante fonte de renda, através da securitização de crédito", aponta Marcelo Callegari, CEO da Justiça Express. No ambiente jurídico, a securitização seria capaz de antecipar ganhos com base na probabilidade de receber uma indenização de um processo, por exemplo.

"Há um enorme mercado por trás das decisões judiciais", analisa Callegari, apontando para um futuro onde a Justiça passa não apenas a correr atrás da tecnologia, mas a se reinventar por causa dela. "Os advogados vão encontrar flancos novos de atuação, de forma mais consultiva e preventiva, porque o que as máquinas ainda não conseguem oferecer é um pensamento estratégico que vá além do litígio", prevê Cavaliere. "O que falta é conseguir conectar o gigantão do nosso judiciário com os novos ingressantes, como as startups e as novas soluções tecnológicas", analisa.

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