É bruxaria

DJ K leva som do 'tuin' dos bailes funk de SP para a Europa

Marie Declercq (texto) e Felipe Larozza (fotos) Do TAB, em São Paulo Felipe Larozza/UOL

O visor do relógio de mesa marcou quatro da manhã quando DJ K assumiu as pick-ups em um dos palcos da última edição da festa Mamba Negra na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Na plateia, uma multidão usando óculos escuros e vestindo preto dos pés à cabeça — o código de vestimenta "oficial" do techno — começou a vibrar assim que DJ K soltou a vinheta que leva a sua assinatura: "DJ K não tá mais produzindo, tá fazendo bruxaria".

Por duas horas, DJ K, produtor musical de 22 anos, levou o público à loucura com as produções autorais que o fizeram ficar conhecido dentro e fora do circuito dos bailes funk da periferia paulistana.

Antes de subir no palco, o produtor chegou na Mamba Negra de jaqueta branca e azul da marca Cyclone. No mar de frequentadores de preto e looks psicodélicos, o produtor se destacou de cara. "Estamos furando uma bolha", resumiu DJ K enquanto aguardava a vez de tocar no camarim na companhia do amigo MC Zero K, de dois dançarinos trajando máscaras de borracha de Halloween e da namorada DJ Dayeh, também especialista em funk bruxaria.

Foi a primeira vez que DJ K tocou na festa de música eletrônica, ainda que prefira ficar nos bastidores produzindo todos os dias em casa. "Eu não sou tão bom como DJ, minha função mesmo é produtor. Só que tem que abrir o horizonte para entrar em outros caminhos", diz.

Do Helipa para o mundo

A tal bolha que DJ K estourou não estava tão longe assim do centro de São Paulo, mas de certa forma parecia blindada. O produtor já criava funk mandelão e batia cartão como DJ nos bailes na periferia desde 2020, emplacando hits como "Renk Renk: Barulhinho da Cama" e "Tuin Destrói Noia".

Mas a maré mudou mesmo quando DJ K lançou "Pânico no Submundo", em julho, pelo selo Nyege Nyege Tapes, baseado em Kampala, Uganda. "Pânico no Submundo" recebeu resenhas positivas de publicações gringas como a britânica DJ Mag e a norte-americana Pitchfork. Na Pitchfork, aliás, o álbum ganhou uma pontuação maior do que "Yellow Submarine" dos Beatles e, por isso, virou meme entre os internautas brasileiros.

Foi preciso um lançamento internacional para que a cena nacional olhasse (e ouvisse) com mais atenção o trabalho do produtor. Depois do lançamento, DJ K passou a tocar no circuito de festas com um forte público LGBTQAI+, como a Buero e a própria Mamba Negra — festas "alternativas", nas palavras do próprio produtor.

"A Mamba Negra mostrou que acolhe outros públicos. Para mim, foi muito gratificante. Provavelmente o maior público pra quem eu já toquei", disse o produtor. A Mamba Negra já chamou outros DJs de funk para integrar o line-up, como o DJ Mu540 do litoral paulista — num reconhecimento do funk como música eletrônica e não estilo à parte, descolado do gênero.

Com o sucesso do álbum e a bolha estourada em São Paulo, DJ K — que até hoje nunca voou de avião — se prepara para levar seu funk bruxaria para as festas eletrônicas europeias no fim de setembro. No itinerário de 20 dias, o produtor deve tocar na Alemanha, Inglaterra, França e Bélgica.

Pai evangélico, filho funkeiro

DJ K é Kaique Alves Vieira, nascido em Diadema (SP). A carreira como produtor para o público foi revelada no baile do Helipa, na zona Sul de São Paulo, mas a relação com a música começou em casa, desde pequeno, por causa do pai e do tio — ambos roqueiros de carteirinha.

"Cresci ouvindo muito Rage Against The Machine, Led Zeppelin, System of a Down", relembra o produtor. "Mais velho, comecei a dar rolê em festas de dub e reggae."

Mesmo com a formação musical herdada do pai, Vieira diz que o patriarca não demonstra muito interesse pela profissão do filho. "Meu pai é de igreja evangélica e às vezes escuta uma música do mundo ou outra, mas acho que nenhum pai quer que o filho seja funkeiro", diz, aos risos.

Por causa das influências musicais da família, Vieira aprendeu a tocar bateria e outros instrumentos ainda pequeno. Todavia, a permanência na música aconteceu mesmo quando ele descobriu a possibilidade de controlar todos os instrumentos de uma vez através da produção musical. Aprendeu sozinho, trancado no quarto de casa.

Embora o funk seja um dos estilos musicais mais criticados pelos roqueiros brasileiros, DJ K conta que o estilo é uma de suas principais influências. No baile, já misturou canções de bandas como Evanescence, Guns'n' Roses e System of a Down. "Música é o melhor jeito de entrar na cabeça das pessoas. Às vezes elas dizem que não gostam, mas tão ouvindo e curtindo sem saber", resume.

'Tá fazendo bruxaria'

O nome "funk bruxaria" nasceu no estúdio do DJ K quando ele estava produzindo música junto com um amigo MC. "Ele falou a frase 'tá fazendo bruxaria' de brincadeira e ficou", disse.

A tal da "bruxaria" define bem o estilo diferenciado do produtor: uma música envolta por uma atmosfera de terror apocalíptico com sons agudos — os "tuins", definidos como "estoura tímpano" nos bailes. Para quem é bom de memória, os agudos lembram muito aqueles das músicas de MC Bin Laden no começo de carreira, como "Tchuplin" e "Lança de Coco", ambas de 2015.

A união do funk paulista com o terror não é de agora. O funkeiro paulista MC Kauan, por exemplo, fez sucesso ao criar seu próprio universo macabro cheio de palhaços, vilões, fantasmas e monstros nas apresentações ao vivo e nas composições. Mais recentemente, hits como "Montagem Silient Hills" do Dj Arana e "Tá Ok" de Kevin O Chris samplearam a trilha sonora da franquia de jogos de terror "Silent Hill".

No caso de DJ K, o terror da cidade se mistura com um clima apocalíptico. De acordo com o produtor, "Pânico no Submundo" é um retrato da realidade vivida nas ruas e nos bailes da periferia.

"Fiz 'Pânico no Submundo' pensando muito na realidade da favela durante a pandemia", conta. "Não sou muito de me meter em política, mas não teve como não falar do [Jair] Bolsonaro depois de passar por tudo que passamos."

Uma das vinhetas mais famosas do produtor, aliás, é uma frase retirada da franquia "Uma Noite de Crime", que se passa em uma versão distópica dos Estados Unidos onde, uma vez por ano, todo crime é legalizado durante 12 horas. Nas mãos do produtor, a frase foi adaptada para a realidade brasileira: "Isso não é um teste! É um sistema de transmissão de emergência anunciando o início da purificação anual aprovada pelo governo de Jair Bolsonaro."

Som centrado no agudo

Quem acompanhou o processo de produção do álbum, conta que a ideia era pirar ainda mais nas batidas do funk bruxaria em vez de partir para um rumo mais comercial e acompanhar o que está fazendo sucesso nos bailes.

"Na época, o pessoal tava curtindo um funk mandelão mais ritmado, mas falei para o DJ K fazer as paradas mais malucas e barulhentas da cabeça dele. Pra destruir europeu mesmo", conta GG Albuquerque, jornalista, pesquisador e dono do site Volume Morto.

Foi Albuquerque quem fez a conexão de DJ K com os donos do selo Nyege Nyege Tapes e insistiu para que ele continuasse apostando no funk bruxaria.

"O funk bruxaria é uma engenharia acústica que não tem muito paralelo na música eletrônica dançante", explica Albuquerque. "Ainda mais esse uso do som bem agudo, quando grande parte da música eletrônica é centrada no grave. Ele é influenciado pela força que tem um paredão de som, pelas drogas que são consumidas, pela forma de dançar. E ele não é um músico isolado da sociedade, mas um frequentador de baile."

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