'O PIOR RACISMO É AQUI'

Emicida quer Brasil sob novas perspectivas e diz que manifestações são 'explosões legítimas'

Tiago Dias do TAB Arte/UOL

"Nossa, mano, depois que você sair dessa quarentena vai ter uma pá de rap." É o que Emicida mais ouve desde que entrou em quarentena. Mas, entre pandemia e manifestações, não há clima para isso. Sua viagem, ele diz, é outra.

Em isolamento social em sua casa, na Serra da Cantareira, em São Paulo, Emicida voltou sua energia para trabalhos manuais, e sua mente, frenética em rimas e analogias fortes, passou a entender sua horta ou as tentativas de fazer queijo como metáforas de transformação. A realidade, contudo, foi mais literal e não dá sossego.

Entre sementes e tiros, microbiologia e desigualdade social, ele tenta captar o estado político e social do Brasil — 30 mil vidas perdidas para o novo coronavírus e outras tantas, como a do menino João Pedro, na mão da velha violência policial. "A estrutura racista da sociedade tem se intensificado mesmo durante a pandemia. Não faz sentido nenhum você ficar guardado na sua casa para ganhar um tiro nas costas", diz. "O racismo do Brasil é o pior racismo do planeta."

Com as rachaduras do país expostas, ele acredita que há chance de estabelecer novos pontos de conexão com nossa história. Como continuação do seu álbum "AmarElo" (2019), em que já buscava calma e reflexão no lugar de letras mais raivosas, o rapper agora lança um projeto multiplataforma, AmareloPrisma, que reúne vozes pouco ouvidas para discutir novas perspectivas de transformação — que, acredita, podem surgir também nas ruas. "É legítimo reivindicar essas transformações de maneira agressiva", diz. "No meio desse abismo, o novo coronavírus é só um detalhe."

Julia Rodrigues/Divulgação

TAB: Você abre seu novo projeto, AmareloPrisma, falando sobre estar vivo. "Pode até ser simples, abrir os olhos de manhã, se esforçar para fechá-los à noite, e fazer quantas vezes isso for possível." É algo básico, mas, como você mesmo diz na sequência, "a parada é complexa". Como está sendo para você?

Emicida: Tem dias que são bem difíceis, principalmente quando a gente fica nas redes sociais se obrigando a ver tudo. No nosso tempo, a informação funciona como uma droga. Dependendo da dosagem, ela é um remédio, mas quando você excede aquilo, passa a ter outras consequências. É que nem água: se colocar muito na rega, você mata a planta. Nesse desespero de ser a última pessoa a saber, a gente vai se conectando novamente a uma série de futilidades. Por isso fui fazer queijo. Você percebe a quantidade de pessoas que, quando atravessam momentos difíceis, recorrem às habilidades que elas têm com as mãos. As pessoas começam a fazer marmitas, máscaras. De alguma maneira, manipular as coisas com nossas mãos nos dá uma sensação de controle. Se eu consigo criar coisas pequenas, consigo criar coisas grandes que melhoram minha realidade. Minha mãe fazia sandalinha de crochê para vender, e isso fez aparecer um prato de comida na nossa mesa. Mas a gente continua nesse vórtice doentio de milhões de seguidores, informações, o tênis mais caro, a roupa mais cara, a maior casa. Todas essas coisas são características de um mundo doente.

TAB: O compositor Aldir Blanc escreveu que o "Brazil não conhece o Brasil". Que mais esse momento está revelando sobre nós?

Emicida: A gente se habituou a pular um monte de cadáveres na nossa rotina. Se habituou a ver uma criança de oito anos fazendo malabares com três peças de plástico pegando fogo no farol, parecendo três coquetéis molotov. E a gente acha que é normal, bonito, a gente remunera criança. Damos uma característica artística para as nossas tragédias. Todas essas fraturas que já estavam expostas, entendeu? A gente fica endeusando essa capacidade de resistência. Essa parada é doentia, as pessoas não querem sobreviver, as pessoas querem viver.

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TAB: Com as manifestações explodindo em muitos países, o racismo e a violência policial se tornaram as rachaduras mais visíveis?

Emicida: Mais visível para quem? Todo mundo sabe o que acontece nas quebradas, como vivem as pessoas nas periferias do mundo, mas tem quem ignora, quem vira a cara. O que gera essa estupefação tremenda é o óbvio, nossos sentimentos humanos explodem porque tá todo mundo na merda. É uma explosão legítima, uma vontade de destruir tudo, mesmo. O mano perdeu o emprego, não sabe se mês que vem vai ter dinheiro para alimentar os filhos, uma pessoa que ele ama morreu e ele não pode chorar o luto. No meio disso aí, o sistema dá trégua? Dá nada. E hoje tudo é filmado, todo mundo viu. Quem chama o discurso de vitimista está convidadíssimo a experimentar o vitimismo debaixo do joelho do policial. A estrutura racista da sociedade que a gente vive faz surgir uma urgência maior do que essa de a gente sair de máscara. Imagina, você está recluso sem poder ter a única coisa que faz sentido na nossa vida, que são as relações sociais, o afeto físico, e você vê uma cena como aquela [em que George Floyd é morto sob joelho de um policial]. No meio desse abismo, o novo coronavírus é só um detalhe.

TAB: A pandemia tem criado a necessidade de repensar e organizar muitas coisas. De que transformações você fala?

Emicida: Tem um grupo de pessoas que sonhavam em acessar, por exemplo, uma universidade. Eles tinham uma crença, em algum lugar na mente deles, de que aquilo não era um ambiente para a cor deles. E as metáforas das músicas que a gente criou funcionam como uma metáfora de possibilidades para essas pessoas. A gente está falando aqui hoje, depois de toda essa construção, por causa da força da palavra, mas a gente diminui a importância da parada em algum momento. Entender como a vida continua não é uma reflexão fácil. É sobre a gente conseguir recuperar nossa calma, o nosso tempo. Como diz [o escritor] Mia Couto, 24 horas são suficientes, mas a gente precisa de um tempo que de fato seja nosso. O quanto eu desperdiço com coisas supérfluas, que no final das contas acabam não fazendo bem para mim? Para onde a gente queria ir enquanto ser humano, enquanto comunidade? Em que momento aparece uma bifurcação que se transformou num labirinto e fez a gente chegar aqui?

Tem um porquê filosófico de se falar sobre queijo. A microbiologia pode ser tão fantástica a ponto de transformar o líquido em sólido. Isso é a magia da microbiologia todos os dias na nossa vida, mas desconsideramos isso. A gente pensou em consumo e produção, uma bússola torta. A forma arrogante com que a gente lida com a realidade precisa ser colocada na berlinda.

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TAB: Que mudança de narrativa dá pra propor a partir dessas movimentações na rua? Você falou sobre a importância de se acalmar, mas muita gente tem defendido que os movimentos sejam mais enérgicos, seguindo os "riots" nos Estados Unidos.

Emicida: É uma semente de reflexões. A semente é uma coisa minúscula que guarda uma coisa gigantesca. Nas condições certas, essa coisa gigantesca rompe a casca, se enraíza, cresce, dá frutos e esses frutos geram transformações. Essas transformações podem ser reivindicadas de maneira agressiva. As famílias pretas e indígenas que estão chorando seu luto tiveram seus entes queridos arrancados de seus braços de uma maneira muito agressiva. É legítimo.

A vida acontece em ciclo, e por mais que a lógica do homem branco convença muitas pessoas de que a gente existe fora do ciclo, o novo coronavírus e a microbiologia estão batendo nessa tecla para dizer que não. Quando a natureza quer, as coisas param. O mundo cultural inteiro está num grande "pause". Na natureza não existe punição, nem prêmio, só consequência. O que a gente vê agora é o ciclo de violência que muita gente ignorou, sem filtro.

TAB: Há algum paralelo entre a realidade dos Estados Unidos e o nosso país?

Emicida: São contextos diferentes. Se na experiência estadunidense as pessoas pretas são uma minoria, na nossa realidade isso não é verdade. Já andei o mundo e digo: o racismo do Brasil é o pior racismo do planeta. Torço muito para que tudo isso consiga conduzir a gente para um lugar melhor. Eu acredito sim na força da manifestação. Para muitas pessoas, a normalidade já se quebrou faz tempo. Vejo as pessoas falando: "sem radicalismo, sem destruição". A gente perdeu a capacidade de fazer uma conta muito simples: se a gente quebrasse hoje todas as vidraças de todos os bancos, de todo planeta, ainda assim toda destruição não seria nada, se comparada ao que é uma família destruída por fechar a tampa de um caixão com uma criança dentro, baleada por um policial.

Muitas pessoas estão submetidas a uma violência desumana que acontece por parte do Estado. Essas pessoas decidiram abdicar de se resguardar em casa nesse momento, porque não faz sentido nenhum você ficar guardado na sua casa para ganhar um tiro nas costas, como o João Pedro.

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TAB: No seu novo projeto, você ouviu muitas pessoas para agregar pontos de vista em vários assuntos. Por que você diz que essas histórias e vivências não fazem parte da história oficial?

Emicida: É interessante pensar na luz como uma metáfora de sabedoria. O ser humano se transforma em seres iluminados a partir do momento que ela se relaciona bem com a sabedoria, com a ciência. Nós, como sociedade, fomos orientados por uma única forma de luz, uma luz branca, eurocêntrica. A gente acredita que a história desse pedaço de chão começa há 500 anos, a partir da chegada dos europeus. Isso faz com que a gente irresponsavelmente jogue quinze mil anos de história no lixo, desconsiderando todas essas perspectivas e seguindo essa única luz branca que vai nos guiar para o progresso.

O ser humano deu um salto desgraçado depois que ele domesticou o fogo. A gente criou uma ficção de que a gente nasce fora do ciclo. A religião é isso. Acho muito louco quando você pega o Gênesis da Bíblia, quando Deus cria a água, a terra, as plantas, todos os versículos terminam como "e Deus viu que era bom". Quando ele criou o homem, só tem um ponto final (risos). Depois do sétimo dia, ele vazou. Ainda mandou o filho dele. O cara falava: "mano, amai uns aos outros". O ser humano foi lá e crucificou o cara e martelou as mãos dele. O que ele seria hoje? Comunista.

TAB: Como analisa a memória do brasileiro sobre o Brasil?

Emicida: Nossa relação com a memória é bastante problemática. A gente não tem acesso a um monte de informação a respeito da nossa própria vida. A que tipo de história a gente tem acesso? Quem pode contar uma história? Que tipo de pessoa consegue produzir memória para que daqui vinte anos a gente possa revisitar esse ambiente que a gente está hoje e dizer: 'Isso aqui aconteceu'? Esse grande vácuo, desenvolvido pela falta de acesso à memória, fortalece e faz nascer estereótipos muito agressivos. Acho que a música rap me trouxe a capacidade de analisar e entender que alguma coisa estava errada. A gente não pode voltar e reescrever a história. O tempo não negocia, não abre a possibilidade fazer um backup e salvar outra versão. A gente precisa interpretar a história baseado nos fatos, e trazer para o que a gente chama de história oficial outras perspectivas.

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TAB: Que aspectos precisam ser reinterpretados?

Emicida: Todo início de ano a gente tem a mesma problemática a respeito de enchente. As águas de março do Tom Jobim e da Elis Regina, sabe? Não passou pela cabeça de ninguém que a forma como os indígenas que residiam aqui se referiam a esses lugares eram exatamente aviso de perigo? Essas pessoas têm quinze mil anos de conhecimento, de engenharia, de tecnologia, conhecimento ambiental. A gente aprendeu a chamar de ciência só o que parece com Albert Einstein, e a gente ama Albert Einstein, mas a gente precisa aprender a reconhecer a ciência quando a gente vê o [escritor, xamã e líder político Yanomami] Davi Kopenawa. Todo esse saber ajudaria a gente a construir um projeto de país que orgulhasse e matasse bem menos gente.

Passei as férias do lado do epicentro da Covid-19, estava no Vietnã. No meu primeiro dia lá, a gente foi visitar uma universidade que tem 11 mil anos. O que nesse pedaço de terra que agora a gente chama de Brasil tem 11 mil anos? Sabe o quê, meu mano? As pessoas. O patrimônio desse lugar são as pessoas. O resto é uma tentativa de replicar alguma realidade fora daqui. A gente olha o mundo por uma lente muito tosca, que rouba muita coisa foda da nossa realidade, e o que estou tentando fazer do AmareloPrisma é sugerir que a gente deveria agora, mais do que em qualquer outro momento, se desconectar dessas doenças, porque isso aí está virando uma fechadura, que diminui cada vez mais nossa experiência de realidade.

TAB: Como se pratica esse entendimento durante uma pandemia?

Emicida: A gente parte desses quatro pilares: paz, clareza, compaixão e coragem. A gente precisa se pacificar. Paz não é nenhum tipo de apatia, é só você conseguir ter uma percepção melhor da realidade social com calma. Quando você consegue diferenciar um copo de água suja de um copo de água limpa, você consegue perceber a vida. Com essa capacidade de percepção, eu consigo me colocar no seu lugar, eu alcanço compaixão. E alcançando minha compaixão, meu mano, é muito difícil que não sinta coragem para tentar mudar uma coisa que te fere e que pode não estar me ferindo, no primeiro momento.

Quando você olha os abismos evidenciados pela Covid-19, Jair Bolsonaro é a ponta do iceberg. Tem tanta coisa. Muitas tragédias validaram esse caminho. Nesse momento a gente não pode perder a capacidade de ler isso aí. A gente perdeu e a gente está pagando por isso.

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TAB: Além da pandemia, estamos numa crise política, com pessoas saindo às ruas para defender a democracia. Acha que é o momento também de repensá-la?

Emicida: Claro. Acho inclusive que a demonização da política não serve para nada. É um caminho no qual a gente investiu de 2013 para cá, a negação de tudo. "Sou contra tudo. Sou contra todos." Mas uma hora a gente vai ter que sentar e conversar sobre construção. Ou a gente aprende a orbitar em torno de um sim, compreendendo com grandeza e humildade que a experiência humana é complexa, ou então a gente vai saltar de abismo em abismo.

Mas eu sou um esperançoso incorrigível, porque passeio por mundos que estão se transformando, sejam eles no ambiente artístico, no mundo do comportamento humano ou no ambiente universitário, onde existem outras guerras sendo travadas. A vida universitária no Brasil é jovem. As únicas universidades de cinco séculos que o Brasil possui são as florestas. A gente está colocando fogo nelas, junto com esse fogo a gente está mandando embora toda a sabedoria e toda a possibilidade de salvar o planeta que elas guardam.

TAB: As pessoas falam muito do "novo normal". Como você enxerga esse depois?

Emicida: Essa é uma reflexão romântica. É só um grande playground de uma rapaziada pseudo-progressista, se a gente não falar de mudanças estruturais na sociedade. As pessoas estão achando que a pandemia vai ser uma escolinha, não vai. Nossa cegueira para as tragédias já está começando a dar as cartas de novo. A gente tem que refletir sobre o modelo de sociedade que a gente chama de normal. A gente está vendo os números crescendo, qual é o bairro onde mais se morre? Brasilândia.

A gente não vai sair dessa experiência em setembro como se a gente estivesse vivendo dentro de um panfleto das Testemunhas de Jeová. Tem uma questão pedagógica que vai nos ensinar a nos comprometer com os resultados. Na quarta série eu repeti de ano. Matei aula por seis meses. O dia em que minha mãe foi à escola, parceiro, parecia que eu estava pelado no Alasca, de tão gelado que estava. O que a gente está atravessando agora é tipo o dia em que minha mãe foi à escola. A gente está gelado porque, irmão, a gente vai ter que debater com a mãe Natureza. E não vai ser fácil, não.

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