A sofisticação dos métodos de identificação reduziu o número de enterros de desconhecidos em São Paulo.
Mas quem não tem a sorte de morrer com um nome corre o risco de nunca ser identificado, caso termine na quadra geral.
"Uma pessoa desaparecida certamente tem um boletim de ocorrência de desaparecimento lá na outra ponta e, por falta de comunicação básica entre o IML, o SVOC e a delegacia de desaparecidos, essa pessoa é enterrada como não reclamada ou desconhecida, sendo que a família estava procurando por ela", explica Vendramini.
Em outras palavras, a pessoa desaparece duas vezes. Primeiro, literalmente, quando ela some. Segundo, quando o desaparecimento é comunicado pela família às autoridades, mas a informação não alcança o banco de dados de hospitais, IMLs e SVOCs.
Vendramini chama esse fenômeno de "redesaparecimento".
As pessoas lidam com desaparecimento todos os dias, mas elas não se tocam que no cemitério está a resposta para muitos deles
Eliana Vendramini, coordenadora do PLID (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos)
Quem entende os meandros do serviço funerário diz que sempre houve muito pouco interesse em identificar quem foi enterrado como não reclamado.
O estigma cercando o Dom Bosco também é forte. "Aqui só vinha 'tranqueira'. Só bandido", diz o diretor-executivo do Grupo Cortel, Ricardo Pólito.
"Era o que diziam", corrige-se ele, quando perguntado qual seria a diferença entre o que se considerava indesejado na época da Vala de Perus e, hoje, na quadra geral.
O perfil da lista de óbitos de desconhecidos e não reclamados é marcado pelo gênero (masculino) e pela cor (parda). O local da morte é outro padrão: muitos são recolhidos em via pública e em hospitais públicos.
Robson Mendonça, do Movimento Estadual da População em Situação de Rua, vê de perto como a vulnerabilidade social pesa na hora de morrer.
Em um dos grupos de WhatsApp em que ele se comunica com assistentes sociais e ativistas, uma das perguntas mais constantes feitas por ele é: "Alguém sabe de um irmão morto na rua?"
Quando há algum caso, vai até o local e chama a polícia para recolher o corpo - ele conta que já precisou esperar 12 horas uma vez.
Em muitos casos, ele e outros ativistas não conseguem identificar pessoas mortas em situação de rua, pois são conhecidas apenas pelo apelido.
Mesmo com o perfil de desconhecidos coincidindo com o da população mais vulnerável de São Paulo, nenhum órgão arrisca dizer quem são as pessoas que terminam a vida sem nome e sem família para cuidar do velório.
Eles, que eram invisibilizados em vida, continuam invisíveis na hora da morte.
*Colaborou Luiz Fernando Toledo