Todo ano, centenas de pessoas são enterradas como desconhecidas na capital paulista.

O destino da maioria delas é o cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, no extremo da Zona Norte de São Paulo.

Mas o local já está lotado e as ossadas não identificadas acabam em sacos plásticos dentro de covas cada vez mais rasas.

A reportagem do UOL reuniu dados inéditos, visitou cemitérios e conversou com especialistas que constataram: é difícil dar um enterro digno àqueles que morrem literalmente sem ter onde cair mortos ou sem família para segurar o caixão.

Levantamento feito pelo UOL mostra que 1.794 pessoas foram enterradas como desconhecidas na cidade de São Paulo entre 2014 e 2022.

Destas, 86% eram homens e metade foi registrada como parda.

Antigamente eram chamados de "indigentes", mas funcionários do serviço funerário acreditam que o termo perpetuava o estigma da invisibilidade.

Hoje, usa-se o termo "desconhecido" para se referir aos que não conseguem ser identificados pelos órgãos competentes, ou "não reclamado" para quem tem identificação mas não foi localizado ou requerido pela família a tempo do sepultamento.

Em teoria, pode acontecer com qualquer um.

COMO ALGUÉM MORRE SEM NOME?

Se uma pessoa morre na rua ou em um hospital público, sem carregar documentos ou sem o conhecimento de parentes, o corpo é levado ao IML (Instituto Médico Legal).

Todo corpo sem identificação é tratado da mesma forma: o médico legista faz uma necropsia para descobrir a causa da morte, outros profissionais coletam impressões digitais e procuram o registro odontológico da pessoa.

A busca é feita manualmente, caso a caso, nos institutos de identificação de todos os estados. E pode levar mais do que 72 horas, que é o prazo que a vigilância sanitária determina para o enterro.

Segundo Enrico Martins de Andrade, diretor do Centro de Perícias do IML, há casos em que a identificação só acontece depois que a pessoa já foi enterrada como desconhecida.

Sempre que o IML não consegue identificar a pessoa, os peritos colhem uma amostra de sangue, que fica armazenada para o caso de um dia a família bater à porta da instituição.

Além disso, são feitas fotografias do corpo para consulta da família no DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa).

Mas as informações tendem a se desencontrar. Muitos familiares precisam fazer uma peregrinação entre os cinco IMLs da cidade para tentar identificar quem procuram.

Esse desencontro e a falta de um banco de dados centralizado são algumas das principais razões para a quantidade de enterros não reclamados na cidade.

Desconhecidos e não reclamados são elegíveis para sepultamento gratuito no estado de São Paulo.

Desde 2022, com a concessão à iniciativa privada, essa responsabilidade foi distribuída entre as quatro empresas que assumiram os 22 cemitérios municipais:

  • Grupo Cortel (Cemitério Dom Bosco)
  • Velar (Cemitério São Luiz)
  • Consolare (Cemitério Vila Formosa)
  • Grupo Maya (Cemitério da Saudade)

Segundo o UOL apurou, 70% desses enterros são realizados no Dom Bosco.

Lá, as covas dos desconhecidos não têm placas, mas não faltam vestígios ao redor delas.

A terra é cheia de fragmentos de ossos, pedaços de caixões, panos rasgados e fios de plástico vermelho usados para lacrar os sacos onde os corpos foram transportados.

CAMADAS DE MORTOS

Desde a sua inauguração, em 1971, o Dom Bosco já recebeu milhares de corpos não identificados. Eles são sepultados em uma quadra especial e precisam ser exumados depois de três anos para dar lugar a novos corpos de desconhecidos.

As ossadas são guardadas em um saco não biodegradável com uma etiqueta de identificação e colocadas no ossário geral - todo cemitério possui um.

Acontece que o ossário geral do Dom Bosco ficou sem espaço, acumulando sacos e mais sacos de ossadas de forma desorganizada.

O cemitério precisou recorrer à "refunda" ou "refundação", prática em que os ossos ensacados são deixados no canto da mesma cova onde estavam enterrados e cobertos por uma camada de terra, para receber mais um caixão.

A refunda é uma solução improvisada, embora permitida por lei. A prática foi confirmada pelo órgão fiscalizador SP Regula e pelo Grupo Cortel, empresa que assumiu a administração do local em março de 2023.

A refunda até conseguiu resolver a falta de espaço dos ossários gerais, mas dificulta a identificação futura caso um familiar esteja procurando alguém que foi sepultado como desconhecido.

Nós sabemos a cova onde está uma determinada ossada, mas não podemos indicar exatamente qual delas é. Aí a família precisa solicitar um exame de DNA

Ricardo Pólito, diretor-executivo do Grupo Cortel, durante visita do UOL à administração do Dom Bosco

'TROCENTOS MIL SACOS DE OSSOS'

A busca pela identificação de quem foi enterrado na área dos desconhecidos do Dom Bosco pode ser uma tarefa inglória.

De tanto enterrar e desenterrar desconhecidos e não reclamados, um em cima do outro, as covas foram ficando tão rasas que às vezes dá para ver o contorno dos caixões na terra.

Em 2016, funcionários do cemitério já apontavam a falta de espaço nos ossários gerais e a prática constante da refunda como solução.

"Família vem procurar e já tá lá [no ossário geral]. A gente às vezes ainda consegue resgatar, mas os que estão muito no fundo, é 'trocentos' mil sacos de ossos", disse um sepultador, em depoimento de um relatório de junho de 2016, pedido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para avaliar a política de busca de desaparecidos em São Paulo.

"Atualmente, a quadra [onde são enterrados os considerados desconhecidos] deve ter de seis a oito camadas de refunda", estima Pólito, do Grupo Cortel.

'UMA GRANDE BAGUNÇA'

Quando o UOL esteve no Dom Bosco pela primeira vez, em 2021, e o enterro gratuito de desconhecidos era responsabilidade do Estado, a situação era alarmante. Em 2023, sob a iniciativa privada, não melhorou.

De acordo com a SP Regula, um grupo de trabalho foi nomeado para lidar com a questão da falta de espaço, mas o ossário geral do Dom Bosco continua trancado desde que o município parou de administrar o serviço funerário.

"Virou uma grande bagunça", diz a promotora de justiça Eliana Vendramini, coordenadora do PLID (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos), que cobra, desde 2014, melhores condições de sepultamentos e exumações de desconhecidos e não reclamados.

É um espaço em que a gente questiona até a altura das covas, a falta de identificação, e [que] historicamente não é cuidado pelo Estado. Fica difícil acreditar que essas empresas privadas vão gastar dinheiro para isso
Eliana Vendramini, promotora de justiça

DESAPARECER DUAS VEZES

A sofisticação dos métodos de identificação reduziu o número de enterros de desconhecidos em São Paulo.

Mas quem não tem a sorte de morrer com um nome corre o risco de nunca ser identificado, caso termine na quadra geral.

"Uma pessoa desaparecida certamente tem um boletim de ocorrência de desaparecimento lá na outra ponta e, por falta de comunicação básica entre o IML, o SVOC e a delegacia de desaparecidos, essa pessoa é enterrada como não reclamada ou desconhecida, sendo que a família estava procurando por ela", explica Vendramini.

Em outras palavras, a pessoa desaparece duas vezes. Primeiro, literalmente, quando ela some. Segundo, quando o desaparecimento é comunicado pela família às autoridades, mas a informação não alcança o banco de dados de hospitais, IMLs e SVOCs.

Vendramini chama esse fenômeno de "redesaparecimento".

As pessoas lidam com desaparecimento todos os dias, mas elas não se tocam que no cemitério está a resposta para muitos deles

Eliana Vendramini, coordenadora do PLID (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos)

Quem entende os meandros do serviço funerário diz que sempre houve muito pouco interesse em identificar quem foi enterrado como não reclamado.

O estigma cercando o Dom Bosco também é forte. "Aqui só vinha 'tranqueira'. Só bandido", diz o diretor-executivo do Grupo Cortel, Ricardo Pólito.

"Era o que diziam", corrige-se ele, quando perguntado qual seria a diferença entre o que se considerava indesejado na época da Vala de Perus e, hoje, na quadra geral.

O perfil da lista de óbitos de desconhecidos e não reclamados é marcado pelo gênero (masculino) e pela cor (parda). O local da morte é outro padrão: muitos são recolhidos em via pública e em hospitais públicos.

Robson Mendonça, do Movimento Estadual da População em Situação de Rua, vê de perto como a vulnerabilidade social pesa na hora de morrer.

Em um dos grupos de WhatsApp em que ele se comunica com assistentes sociais e ativistas, uma das perguntas mais constantes feitas por ele é: "Alguém sabe de um irmão morto na rua?"

Quando há algum caso, vai até o local e chama a polícia para recolher o corpo - ele conta que já precisou esperar 12 horas uma vez.

Em muitos casos, ele e outros ativistas não conseguem identificar pessoas mortas em situação de rua, pois são conhecidas apenas pelo apelido.

Mesmo com o perfil de desconhecidos coincidindo com o da população mais vulnerável de São Paulo, nenhum órgão arrisca dizer quem são as pessoas que terminam a vida sem nome e sem família para cuidar do velório.

Eles, que eram invisibilizados em vida, continuam invisíveis na hora da morte.

*Colaborou Luiz Fernando Toledo

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