CUSTO HUMANO

Na ponta mais precarizada das e-commerces, entregadores correm contra o relógio por São Paulo

Marie Declercq Do TAB, em São Paulo

O carro mal para de rodar e Elisangela Januário, 43, abre a porta e corre em direção a uma casa no bairro da Vila Maria, na zona norte de São Paulo. Em uma das mãos, segura um pequeno pacote amarelo. Da janela da casa, é possível observar um homem esguio cortando o cabelo de uma senhora. "Mercado Livre!", anuncia do portão.

Ao escutar, o cabeleireiro larga a tesoura e recebe a encomenda. Antes de esperar pelo agradecimento, a entregadora já está no banco do passageiro. Leonardo Bezerra, 44, seu marido, engata a primeira e sai correndo para a próxima entrega — a terceira do dia. Faltam 15 para terminar.

Apesar do dia fraco, o casal precisa driblar o trânsito e eventuais atrasos para conseguir entregar todos os pacotes no mesmo dia, e de preferência antes do fim do horário comercial. São de 8 a 12 horas dentro do carro, de segunda a sexta-feira. Em dupla é mais rápido, porque elimina a necessidade de estacionar e evita roubos.

Há um ano, desde que ficaram desempregados, o casal transporta pacotes vindos basicamente do Mercado Livre e do Magazine Luiza. Eles ganham por entrega de R$ 3,50 a R$ 8, não importa a quilometragem rodada.

"Nunca precisamos fazer xixi em garrafa", conta Bezerra. "Mas sei de colegas que levam uma garrafinha pra essas situações."

RAPIDEZ X ESTRESSE

Já parou para pensar por que sua compra online chega tão rápido? Você já estava pronto para dormir quando ouviu o interfone tocar, avisando que uma encomenda chegou? Nada disso é milagre. Essa eficiência tem um custo humano, parte de uma cadeia precarizada de serviços sem regulamentação e com muita procura devido à crise econômica. São motoristas autônomos que, todos os dias, levam consigo, cada um, de 18 a 50 encomendas.

Na categoria Mercado Flex, disponibilizada pelo Mercado Livre, as compras do dia se encerram às 13h e devem ser entregues no mesmo dia. "Às vezes não tem como entregar no horário comercial", explica Januário. "Saímos com as encomendas do galpão às 16h, às vezes 17h, e precisamos entregar um volume enorme. Por isso que tem vezes que toco a campainha às 22h."

O TAB acompanhou um dia de trabalho do casal, rodando pelas ruas na zona norte — são cerca de 60 km diários. No carro, que outrora era de passeio, o banco traseiro se mantém abaixado para receber a carga diária. Eles saem de casa pontualmente às 13h, fazem coletas e dirigem da ZN até a zona leste, onde fica a empresa de logística que atende gigantes do e-commerce e outras lojas virtuais.

O galpão amanhece vazio, mas vai enchendo até a capacidade máxima, atingida no meio da tarde. Próximo ao local, centenas de motoristas de carro e de moto se amontoam nas ruas estreitas. Todos esperam de duas a três horas (às vezes até quatro) para que os pacotes sejam organizados e distribuídos por zona, correspondente aos bairros onde moram.

A maioria das entregas só começam quando a maioria dos paulistanos está encerrando o expediente.

'NÃO ESTÃO NEM AÍ'

"O pessoal acha que tá prejudicando apenas uma pessoa, mas é uma família inteira." A voz de um dos entregadores se destaca na aglomeração, próximo ao balcão de retirada. O corredor acomoda centenas de entregadores e uma fila de motos. Naquela quarta-feira fria de setembro, dois toldos frouxos tentavam sem sucesso protegê-los do vento cortante.

A voz que se destaca pertence a Christopher Abes, 40, motoqueiro há mais de 20 anos. Naquele dia, nem sua experiência de décadas e o mapa mental das ruas em São Paulo fez diferença, porque a quantidade de entregas que chegou até ele era baixíssima. Não muitos dias atrás, a empresa resolveu arbitrariamente reduzir ainda mais o valor pago por entrega. Foi a gota d'água.

"Só recebi nove entregas, grande parte Magalu e é só quebrada, ainda por cima", resume. Ter pouca entrega significa menos dinheiro e mais gastos com gasolina. O motoqueiro ganha até R$ 6 por entrega, independentemente da quilometragem que precisa rodar. Quem faz de carro, recebe até R$ 8.

Enquanto Abes aguarda impaciente, um dos motoqueiros mostra um vídeo que fez da última entrega realizada, numa estrada de terra no meio do breu, iluminada só pelos faróis do carro. "Tive que ligar pro cara que ia receber, porque não tinha como achar a casa dele ali não. Aí o cara foi me guiando", conta.

Outro entregador, assistindo ao vídeo, comentou: "Sim, tio, já entreguei nesses lados aí. Depois do lixão né? Ultimamente é isso: pouco pacote e só quebrada."

O dia estava fraco não só por ser final do mês, mas também porque a oferta está cada vez mais esturricada. "Todos os dias vêm de 10 a 15 pessoas aqui na empresa se cadastrarem para começar a entregar", explica Abes. "Isso desvaloriza nosso trabalho e diminui o lucro, porque os caras da empresa não estão nem aí. Se você não quer entregar, vai ter sempre outro para fazer."



TODO MUNDO FAZ

Assistindo ao vaivém, uma coisa fica clara: todo mundo está fazendo. Jovens com coque hipster, idosos e até famílias inteiras (pai, mãe e filho pequeno) se amontoam na função.

"Tem gente aqui com diploma, você acredita?", disse Januário. Pela empresa já passaram advogados, engenheiros e professores licenciados. Isso sem contar quem trabalha com delivery de comida de manhã e corre para o galpão para o segundo round.

Nesse endereço, a maior parte das entregas é feita de carro, que sai abarrotado até o teto. Muita gente deixou de fazer Uber para trabalhar como entregador. "A Uber exige que seu carro seja novo. Nas entregas, não importa o carro que você tem", explicou um senhor que caminhava em direção a um carro prateado.

Vans escolares, algumas ainda adesivadas com a faixa amarela, também fazem fila nos arredores do galpão. Por serem o maior veículo liberado para circular na cidade sem necessidade de pedirem autorização especial de trânsito, são ideais para levar encomendas..

No galpão, são poucos os funcionários registrados dedicados à organização e distribuição dos pacotes. Para agilizar a vida de todo mundo, motoristas como Bezerra extrapolam a função de prestador e passam horas no estoque, organizando as encomendas nas prateleiras para apressar a saída.

Antigamente, a empresa oferecia quentinhas aos entregadores. Deixou de fazê-lo, sem motivo aparente. Para alguns, havia ainda uma ajuda de custo. Não tem mais. Recentemente, a empresa reduziu o repasse sem aviso prévio. Abes viu seu rendimento cair pela metade. Hoje, ele tira um pouco mais de R$ 3 mil por mês trabalhando de 12 a 14 horas por dia, de segunda a sábado.

"Olha, isso acontece em todas as empresas. O patrão tá nem aí pra importância do motoqueiro", desabafa Abes. "Quando o pessoal quer comida rápida, quem entrega? O motoqueiro. E quando querem que a gente entregue uma coisa urgente? É o motoqueiro. Ficar o dia todo trabalhando em uma moto não é trabalho fácil."

ARREBENTA DO LADO MAIS FRACO

Segundo o IBGE, 14,7 milhões de brasileiros estão desempregados. Cada vez que a economia do país piora, mais pessoas recorrem a funções que dependem de aplicativos para sustentar a família. É assim com o iFood, Rappi e agora com o delivery de lojas virtuais.

Bezerra e Januário não reclamam da rotina extenuante, mas também não romantizam. "Isso aqui é só uma coisa provisória para a gente se manter. Não é o ideal, e não é o que a gente quer", diz Bezerra. Nos mais de 20 anos de casados, os dois sempre trabalharam juntos como autônomos. Nunca pararam. Férias não é uma palavra presente no vocabulário deles.

Nos finais de semana, o trabalho continua, mas em um dos bares da escola de samba Unidos de Vila Maria. Falam com muito mais orgulho das noites viradas de atendimento no balcão. "Cresci na Unidos de Vila Maria. É minha vida", conta Januário.

Para Abes, trabalhar em cima da moto é tudo que ele conhece e sabe fazer. Houve uma época em que era possível ganhar bem e viver bem. "Antes da pandemia pagavam de R$ 15 a R$ 18 por pacote. Agora, é eu e você, junto com mais quatro pessoas, fazendo a mesma coisa e ganhando menos. E, lá fora, tem mais dez pessoas querendo o nosso lugar."



SEM DIREITOS

Desde 2020, uma das buscas mais frequentes no YouTube é "como ganhar dinheiro fazendo entregas para o Mercado Livre". Youtubers especializados em empreendedorismo gravam vídeos ensinando o caminho das pedras.

São pouquíssimas as chances de um entregador ser registrado. Em grande parte das vezes, eles assinam um contrato de prestação de serviços que exime a empresa de logística e, claro, as e-commerces, de qualquer relação trabalhista. Isso significa que gastos com carro, gasolina, problemas de saúde, extravio de encomendas e eventuais problemas são 100% ônus do prestador de serviço.

Com o aumento das vendas online, parece remota a chance de fortalecer o lado de quem está nas ruas todos os dias. O clima de "se não está bom, vai embora" impera nesse universo.

"Hoje você deu sorte", comenta o casal, comendo rapidamente dois salgados dentro do carro, enquanto conferem o endereço antes da última entrega. "Tivemos um dia menos agitado."

Pela localização, o casal já sabe que perdeu a janela comercial para fazer a entrega em uma empresa e terão de voltar no dia seguinte. Além do trânsito, do cansaço e da falta de pagamento por conta das entregas frustradas, têm de lidar constantemente com a falta de educação.

"Esquecem quem tá do outro lado, que a pessoa que te entregou um pacote à noite está o dia todo correndo pra lá e pra cá pra entregar mais 20 desses", lamenta Januário. "Isso quando não querem receber quando passa do horário."

Ao TAB, Abes pede que se ressalte uma coisa ao leitor que agora descobriu sua rotina. "Dá um bom dia, uma boa tarde, uma boa noite", pede. "Tem gente que nem olha pra nossa cara, do rico ao pobre. É só tratar com educação, ninguém tá pedindo um abraço."

Em resposta às condições de trabalho dos entregadores, Décio Yuiti Sonohata, diretor executivo de logística da Magazine Luiza, afirmou que a terceirização representa apenas 20% das entregas da loja. A rotina acompanhada pelo TAB, segundo o executivo, é exceção em São Paulo. O executivo diz que a plataforma tem mais de 8 mil entregadores no país. Os motoristas, esclarece, não são funcionários da Magazine Luiza, mas há orientação direta em caso de roubo de carga e problemas com o veículo. Os valores pagos por entrega, no entanto, não foram revelados.

O executivo diz que a empresa não incentiva entregas após as 20h. "Nunca vamos atém desse horário. É uma questão de respeito ao cliente."

TAB também entrou em contato com o Mercado Livre, mas a empresa não respondeu aos questionamentos até a publicação da reportagem. O espaço para resposta está aberto.

Eduardo Knapp/Folhapress

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