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Excesso de dúvidas e falta de confiança na ciência criam uma nova epidemia: a paranoia

O ex-beatle Ringo Starr tem sua mudança de hábito para os meses do ano que ele chama de “temporada de gripes e resfriados”. Ele deixa de cumprimentar as pessoas com um aperto de mão e passa a usar o seu cotovelo para saudações com contato. É o “jeitinho” do baterista. Mas faz sentido esse tipo de precaução? Ou não passa de paranoia? E quando um atleta desiste de disputar a Olimpíada no Rio de Janeiro por medo das consequências da chikungunya? Justifica? E as vacinas, são mesmo 100% seguras? Ninguém tem essas respostas. As doenças não respeitam fronteiras. Ao contrário, elas atravessam continentes com muita rapidez. A ciência não consegue acompanhar o ritmo com que se espalham. Pior: demora a encontrar meios de combatê-las. Veja o caso da dengue, cuja vacina demorou 20 anos para ficar pronta. Se a paranoia do vírus zika estava latente no Brasil e no mundo, ela acha os argumentos para existir em meio a tantas dúvidas e informações desencontradas.

Combater um inimigo invisível, que pode estar nos lugares mais comuns do nosso dia a dia, faz com que pessoas vulneráveis a um complexo de epidemia tenham mais dificuldade de viver em espaços compartilhados, segundo o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) Christian Dunker. Elas não usam banheiro público, têm receio de andar de ônibus e metrô, não usam roupas de outras pessoas e constantemente acreditam que estão infectadas, mesmo que os exames médicos indiquem o contrário.

“Trata-se de uma hiperindividualização. Em geral, são pessoas controladoras, metódicas, convictas”, explica Dunker. “A paranoia está ancorada no desconhecimento. Não sei o que é, então começo a fantasiar. A epidemia é a percepção de que existe um processo que a gente não domina. É um problema registrado desde a peste negra e a gripe espanhola. No Brasil, na Revolta da Vacina [1904], muita gente morreu [em combate] porque [o médico sanitarista] Oswaldo Cruz implementou um plano de vacinação contra a febre amarela. O processo de contaminação é perfeito para dar suporte a essas fantasias psíquicas, porque não vemos o vírus, nem a bactéria, mas ela nos invade. Por isso, agimos de forma tão irracional”, completa o psicanalista.

Impacto Real

Lucro x Saúde

As informações mudam com a mesma velocidade que uma pandemia se espalha. Até outro dia, o aedes aegypti era o único transmissor do zika. Agora, já há registros de pernilongos domésticos também infectados. Enquanto as dúvidas não são erradicadas, o orçamento para pesquisas de remédios contra calvície e impotência sexual supera o de 17 patologias consideradas negligenciadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que, reunidas, afetam 1 bilhão de pessoas em 149 países. Depois de lidar de forma paliativa com milhares desses casos, os Médicos Sem Fronteiras destinaram a verba que receberam do prêmio Nobel da Paz de 1999 para criar um grupo de pesquisa. Essas doenças empurradas para debaixo do tapete têm em comum a falta de pesquisa, inovação nula e o baixo interesse da indústria privada e do sistema de saúde.

"É a lógica mercadológica: pouco lucro, pouco recurso financeiro. São doenças ligadas à situação de pobreza, zonas rurais, migração forçada. O ideal é ter um modelo que pense nas necessidades dos pacientes mais do que no lucro", explica a epidemiologista Carolina Batista, diretora da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas da América Latina. "A difusão da epidemia é muito dinâmica atualmente. Há, por exemplo, 300 mil pessoas nos EUA que sofrem de doença de Chagas [predominante no México e na América do Sul]. O desafio de manejar epidemias é que elas exigem várias ações: informação, combate aos vetores, fator econômico, educação, prevenção. Ou vamos continuar perdendo essa luta", afirma.

Ainda segundo Carolina, apenas 10% das pesquisas globais são dedicadas às condições que respondem por 90% da carga global de doenças. Só no Brasil, entre 2000 e 2011, houve 12 milhões de mortes por doenças negligenciadas, de acordo com um artigo publicado pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. É como se a Bélgica, cuja população é de 11,2 milhões de habitantes, fosse dizimada por um grupo de doenças praticamente ignoradas.

Há uma série de epidemias, mas o mundo não está preparado. Elas se espalham com muita rapidez, e a ciência demora muito para combater. São cinco, dez anos para ter uma vacina.

Silvia Bardella, infectologista e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações Regional de São Paulo

O Brasil atualmente enfrenta uma grave epidemia provocada por um mosquito, o aedes aegypti. Por conta da dengue, zika e chikungunya, grávidas deixaram o país durante a gestação, a delegação da Coreia do Sul desenvolveu um uniforme com repelente para proteger seus atletas durante a Olimpíada e, entre as várias estrelas que decidiram não vir aos Jogos, a declaração do golfista Rory Mcllroy é a mais emblemática: "A possibilidade de pegar zika é um risco que não estou disposto a correr".

"Se um atleta contrair dengue ou chikungunya, dificilmente conseguirá seguir na competição, porque são doenças que trazem muita prostração, dor de cabeça, dor muscular. A chikungunya causa dores nas articulações, que podem ultrapassar seis meses. Esse estágio de dor crônica, para um atleta ou não, é bastante debilitante. Para esportes de alto rendimento, os mínimos aspectos podem influenciar de maneira importante a performance", afirma Izabel Souza, coordenadora do Núcleo de Vigilância Epidemiológica do Hospital das Clínicas da USP.

A boa notícia é que a atividade do mosquito vetor de transmissão reduz drasticamente no inverno. Agosto e setembro são historicamente meses de menor incidência. Apesar disso, os médicos seguem recomendando o uso de repelentes e o combate ao mosquito, já que a doença ainda não pode ser combatida até que haja uma vacina.

Não às vacinas?

Não é que as mães falem disso na porta das escolas, mas blogs e grupos no Facebook (geralmente fechados) têm aparecido para debater dúvidas e espalhar ideias contra a vacinação. Um dos principais ativistas é o ator Jim Carrey, que usa as redes sociais para declarar sua opinião e é presença garantida em manifestações nas ruas. Sua luta começou ao engatar um namoro de cinco anos com Jenny McCarthy, conhecida representante do movimento antivacina. Ela alega que seu filho desenvolveu autismo após ser vacinado contra o sarampo. Carrey chegou a comprar briga com o governador da Califórnia, Jerry Brown, em 2015, por causa do assunto.

"O governador da Califórnia disse sim ao envenenamento de mais crianças com mercúrio e alumínio em vacinas obrigatórias. Esse fascista do mundo corporativo precisa ser parado", publicou Carrey em seu Twitter na época.

Na mesma semana, vários artigos de médicos renomados começaram a pipocar em sites de veículos como CNN e "Time", explicando por que o ator está errado. No Brasil, há médicos que já ouvem de muitos pais esses argumentos de falta de confiança nas vacinas.

"Nossos avós conheceram várias pessoas que morreram de sarampo. Isso não acontece mais por causa da vacina”, comenta a infectologista Silvia Bardella. “As pessoas não veem a doença, perdem o medo dela e acham que o risco de ter um efeito colateral da vacina é mais perigoso do que ter a doença. No Brasil, nascem 3 milhões de crianças por ano. Se [a vacina] fosse um perigo, haveria muita notícia de mortes. Antes da vacina do rotavírus, morria uma criança por minuto. As pessoas que têm medo não estão raciocinando corretamente”, completa.

O principal argumento dos pais que lutam para não vacinar seus filhos nasceu de uma pesquisa fraudulenta. O britânico Andrew Wakefield tentou provar que a vacina tríplex, que combate sarampo, caxumba e rubéola, desencadeava o autismo. Seu artigo foi publicado na renomada revista científica “The Lancet”. Em função dessa publicação, outros cientistas fizeram novas pesquisas para confirmar essa correlação, o que nunca aconteceu. Quando descobriram que Wakefield usou um número pequeno de crianças como fonte e colheu sangue de maneira inadequada, ele perdeu o registro médico e o artigo foi tirado de circulação. Até hoje, grupos antivacina usam essa pesquisa como fonte.

Por causa desse movimento, aliás, o sarampo, que há muitos anos estava controlado, voltou a aparecer nos EUA. Segundo dados do CDC (sigla em inglês para Centro de Controle de Doenças), houve 667 casos no país em 2014. Desses, 383 doentes eram da mesma comunidade amish - grupo cristão conservador com restrições ao uso de tecnologia - que recebeu visita de uma estrangeira contaminada. Como os amish em questão nunca haviam sido vacinados, a doença rapidamente se alastrou.

Epidemia Blockbuster

Essa capacidade que um vírus invisível tem de dizimar populações ao longo da história constrói um roteiro sombrio, permeado de dúvida, desconfiança e paranoia. O tema provoca tamanho fascínio que o cinema, as séries de TV e a literatura retratam a epidemia tão frequentemente e muitas vezes de maneira inusitada.

As epidemias têm os lados do thriller [suspense] e do terror. Podem ser terríveis por se alastrar sem controle. Há um suspense em saber se serão controladas e até onde continuarão se espalhando.

Fernando Meirelles, cineasta

Com uma média de 14 milhões de espectadores por episódio só nos EUA, a série "The Walking Dead" traz personagens contaminados por um vírus que os transforma em zumbi no instante em que eles morrem, independentemente de serem ou não mordidos por um morto-vivo. A epidemia também aparece de maneira metafórica no livro "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago, que ganhou adaptação para o cinema em 2008, sob assinatura de Fernando Meirelles.

"'Ensaio Sobre a Cegueira' não é um filme sobre uma doença que se espalha, tanto é que não há cena onde haja médicos e busca de cura, mas uma epidemia metafórica sobre a cegueira da humanidade. Por exemplo, em relação ao aquecimento do planeta. O risco está na nossa cara, mas poucos parecem enxergar", analisa o cineasta brasileiro. "A ideia de epidemia acende uma luz vermelha e faz com que a busca por uma cura seja mais urgente, para evitar que se transforme numa pandemia", completa.

Existe uma explicação inconsciente sobre o que esse tipo de roteiro provoca nos milhões de fãs. Christian Dunker, psicanalista e professor da USP, analisa o movimento. "Filmes como 'Resident Evil' [2002] ou 'Os 12 macacos' [1995] e o game ‘Plague’ combinam elementos centrais: ser afetado pelo outro sem saber como, por meio de um vírus desconhecido, e perder a consciência. O vírus é criado e controlado pela ciência, assinalando seu papel ambíguo, de nos beneficiar e nos prejudicar", explica Dunker. "'Ensaio sobre a cegueira' aproxima nossa recusa em reconhecer o pior que há no humano com nosso desejo de não saber [não ver, neste caso]. Em 'A peste' [1947], de Camus, o complexo de epidemia liga-se à lógica do preconceito por termos medo do outro, que representa o que não podemos aceitar em nós. Por isso, é tão comum a fórmula de 'Epidemia' [1994], na qual a origem do vírus é a África", analisa.

Já "Contágio" (2011), de Steven Soderbergh, trata da história de uma gripe que se espalha rapidamente pelo mundo, separando famílias por conta da quarentena e promovendo o suspense da almejada cura que nunca vem. Soa familiar? Todo mundo assistiu a esse roteiro da vida real quando a H1N1 ou o ebola surgiram, provocando pânico para muitas pessoas. Embora não haja remédio para tudo, existem maneiras de minimizar os riscos.

“É sempre importante manter o sistema imunológico forte. Nosso organismo é muito capaz de nos ajudar a evitar a maioria das doenças”, afirma a infectologista Silvia Bardella. “Ter boa alimentação, dormir em horário regular, praticar esportes, tomar banho, lavar as mãos, beber água filtrada faz com que a imunidade seja a melhor possível. Tudo isso ajuda a não ficar paranoico achando que vai ser vítima de qualquer epidemia”. Tratamento para corpo e mente.

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