TRAGÉDIA À BRASILEIRA

Crise econômica leva família a viver nas ruas pela segunda vez em menos de um ano, em São Paulo

Mateus Araújo (texto) e Tommaso Protti (fotos) Do TAB, em São Paulo

A Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo de São Francisco, forja, há quase 200 anos, a vida pública de dezenas de lideranças políticas brasileiras, de ministros a presidentes da República.

Na frente desse mesmo largo, na praça Ouvidor Pacheco e Silva, mora Kamila Gonçalves, 37. Ela passa todas as suas horas na calçada da rua, junto do marido Odair Antonio, 40, e seus dois filhos, Pedro, 15, e Luiza, 6.

Depois de Odair ficar desempregado e terem de vender quase tudo que cabia no cubículo onde viviam, na rua do Glicério, fizeram do concreto do Centro seu lar.

Forraram o espaço com tapetes para servir de chão e colchão, armaram a barraca de camping e cobriram tudo com uma lona azul. Carrinhos de supermercado guardam roupas e o que não foi vendido. Ao redor deles, outras pessoas também fazem da praça sua morada.

Homens entre 35 e 50 anos são a maioria, vivendo sozinhos debaixo de lonas estiradas uma ao lado da outra. Todos se reúnem em volta de uma torneira para lavar roupa e molhar o corpo em dias de mormaço.

Esta cena, cada vez mais comum no país, intensificou-se com a crise econômica. Segundo dados do Ministério da Cidadania, já são mais de 14 milhões de brasileiros vivendo em extrema pobreza.

"Nem sei se quero falar sobre isso. A gente já recebeu tanta promessa de ajuda, mas não conseguiu nada até agora", afirma Odair, espremido dentro do barraco. São 9h da manhã de uma quarta-feira. Ele, a mulher e a filha já tinham ido até a Sé para tomar banho no banheiro público instalado pela Prefeitura. Também conseguiram um café com sanduíche.

Súbito, ele põe o rosto para fora da lona, saindo da penumbra azulada e deixando mais visíveis os cabelos descoloridos. Observa a equipe de reportagem e explica: "Eu queria mesmo era conseguir um emprego para sair daqui".

Cerca de 66,2 mil pessoas vivem atualmente em situação de rua na capital, aponta uma estimativa do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo. É mais que o dobro do número registrado em 2020, quando, segundo a ONG, havia 32 mil.

A falta de trabalho empurrou a família de Odair para a rua. Até o início de 2021 ele se virava como eletricista, pedreiro, encanador e pintor de casas. Fazia bicos e trabalhava em uma pensão, também na região central.

"O dinheiro que eu recebia era muito pouco, às vezes ganhava R$ 100 por mês. Fiquei desempregado e falei pra Kamila que não dava mais", lembra. "Vendemos as coisas, pegamos os filhos e as roupas, compramos esses dois carrinhos de feira e viemos para rua."

A família recebia o Bolsa Família — benefício que, nos últimos meses, caiu para R$ 150.

É a segunda vez, em menos de um ano, que se encontram nessa situação. A primeira foi em 12 de janeiro. Quase dois meses depois, conseguiram escapar. Mas foi por pouco tempo.

Uma mulher passava pelo largo quando viu a família e se engraçou pela filha caçula. Aproximou-se, puxou assunto e ficou sabendo da história. Dias depois, voltou a visitá-los com novidade: havia criado uma campanha para arrecadar dinheiro e alugar uma casa para eles.

"Até onde a gente sabe ela juntou R$ 6 mil, mas nunca vimos o dinheiro", lembra Kamila. "Ela usou a nossa imagem, o meu nome, alugou um quarto em São Miguel Paulista [zona leste de São Paulo], onde ela quis e do jeito que ela quis. Disse até que a gente tava comendo muito. Quando a gente reclamava, nos ameaçou."

Ficaram no quartinho até maio, quando Odair voltou a trabalhar na pensão da rua do Glicério, onde conseguiram um pouso. "Dessa vez foi pior. Ganhava tão pouco que ainda precisava sair atrás de comida", lembra. Em 4 de setembro, ele perdeu novamente o emprego.

'Aqui não é nossa casa'

Família já sofreu golpe da vaquinha virtual e sonha com lar

Odair e Kamila se conheceram há 16 anos. Ela engravidou pouco tempo depois e teve Pedro. O casal vivia brigando e se acertando. A volta definitiva foi há três anos, já com a segunda filha, Luiza. "Agora não temos idade de brincar, é hora de crescer e ser adulto", relembra a mulher. "Se tivesse cabeça para voltar a estudar, faria um curso de papiloscopia. Gosto da parte criminal."

Na rua, de dia, Kamila ajuda Odair a catar latinhas. À noite, o casal se reveza na vigília. "Tenho medo de virem mexer nas coisas. Qualquer barulho, ficamos de orelha em pé. Lembra que colocaram fogo nos mendigos? Teve um rapaz que matou três pessoas com pedrada na cabeça. A gente fica de olho nisso e praticamente não dorme."

Outro fantasma também assusta a mulher, que tem os olhos marcados por lápis, dedos cheios de anéis e uma pulseira no braço — bijuterias que ela mesma encontrou na rua. "Eu bebia muito antigamente. A rua me lembra essa fase ruim", diz. "Caía, quebrei meus dentes. Estava muito magra, parecia doente", explica Kamila, ajustando a máscara no rosto e cobrindo o sorriso envergonhado.

Ela também raspou o cabelo quando foi morar na praça, porque assim dá menos trabalho para cuidar. "Não é porque a gente está na rua que vai ficar feito doido, né?"

"Olha o rabo de um aqui", interrompera um dos moradores da praça, apontando para os degraus do deque. Naquela semana, eles haviam jogado veneno embaixo do tablado para matar os ratos que corriam no subsolo. Dava para ver o rabo de um dos bichos enganchado numa das frestas. "Desculpem aí o cheiro ruim, é que morreram todos", explica Odair.

Em 2014, a prefeitura de São Paulo criou o projeto Centro Aberto, uma intervenção urbanística em espaços públicos na região da Sé. A ideia, já extinta, era movimentar lugares ermos com atividades culturais a céu aberto. Naquele tempo, a praça do Ouvidor recebia festas, tinha mesa para pingue-pongue, projeção de filmes em um paredão grafitado e um espaço para as pessoas se sentarem.

Sete anos depois, o cenário é de abandono. O que restou está praticamente destruído. A mesa de jogo virou varal de roupa, e no deque de madeira, uma das poucas estruturas ainda firmes, Odair, Kamila e os filhos se aninharam.

Latas cheias de água seguram as coisas para que nada voe. Mais adiante, um dos postes puxa energia quando precisam carregar o celular ou ligar o micro-ondas — único objeto de casa que ainda guardam.

"Meu filho e minha filha dormem ali atrás, na barraca, e a gente dorme aqui na frente — eu, minha mulher e a cachorrinha, Vampira" — Odair aponta o dedo para o interior da barraca. "O difícil aqui é quando chove. Não porque entra água, mas porque a gente fica preso, sem poder sair."

Os quatro já tentaram vaga em uma ocupação — destino frequente das famílias que ficam desalojadas —, mas até agora, nada. Ir para um abrigo da Prefeitura está fora de cogitação, diz o casal. "Eles dividem as famílias e não se pode nem fechar a porta dos quartos", afirma Kamila. "Já falaram do hotel social também, onde cabe nós quatro. Demos o nome, mas não chamaram."

Às 10h, homens de capacete azul e colete laranja subiam a rua São Bento. Vinham acompanhados pela Guarda Civil Metropolitana e uma caminhonete. "Lá vem o rapa", disse Kamila, parando a conversa.

A mulher levantou-se de sobressalto, puxou a filha pela mão, a encostou em suas pernas e se aproximou do marido. A vida na rua, disse ela, é imprevisível. Os agentes protegem os fiscais em ações de recolhimento — e eles não querem (nem podem) perder mais nada.

De acordo com a Subprefeitura da Sé, o serviço de zeladoria urbana segue regras de um decreto municipal de 2020 para recolher objetos "que caracterizem estabelecimento permanente em locais públicos, principalmente quando impedem a livre circulação de pedestres e veículos" — camas e sofás, por exemplo. De março de 2020 a novembro de 2021, foram realizadas 6.985 ações desse tipo naquela região.

A família de Odair faz parte de outra estatística, a da insegurança alimentar. Em 2020, 116,8 milhões de brasileiros não tiveram acesso permanente a alimentos, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Desse total, 43,4 milhões não se alimentaram o suficiente e 19,1 milhões passaram fome.

"Se eu disser a você que a gente não come é mentira", pondera Odair. O problema é a incerteza. Para comer, recorrem a grupos religiosos e ONGs que doam refeições pelas ruas da cidade. "Quando não tem doação, a gente arranja álcool, compra alguma coisa e cozinha por aqui."

Às 11h50, Kamila pegou a filha pela mão e desceu a ladeira da rua José Bonifácio para pegar marmita. O filho mais velho já estava lá desde as 11h30. O local é a sede do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, onde são distribuídas em média 1.400 marmitas na hora do almoço.

Ao meio-dia, sentada em torno do barraco, a família dividia o prato de feijoada. Comiam os quatro e a cadelinha.

Nos poucos momentos em que dormiu, Odair sonhou duas vezes que saía da rua. Numa delas, um homem jogou um pacote de dinheiro sobre a lona. Na outra, era chamado para trabalhar.

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