NÃO É SÓ UMA ROUPA

O fenômeno das 'farmetes' e 'antiquetes', mulheres adultas que colecionam vestidos

Lívia Inácio Colaboração para o TAB, de Curitiba

Quando Schandra Julia Zmijeski, 40, aceitou apresentar seu closet à reportagem do TAB, adiantou que aquela era uma mina de ouro. "Deve ter o valor de um carro aqui dentro", garantiu. Apaixonada pela Farm, marca carioca conhecida pelas estampas vivas e pelo preço salgado de suas peças, a artesã mostrou um guarda-roupa 90% composto pela grife.

Ela não se lembra exatamente de quantas já comprou, mas, por guardar as etiquetas, supõe que tenham sido mais de 400. O valor de uma roupa nova pode variar de R$ 150 a R$ 800. Para Zmijeski, colecionar itens da marca é mais que um capricho: é sua forma de ser e estar no mundo.

Na varanda fresca de sua casa, com plantas por toda parte, a artesã fala da Farm como uma paixão de longa data. O cenário ao redor confirma o fascínio. Sobre a mesa, um crochê ainda na agulha remete ao artesanal, um dos alardeados conceitos da grife. Na parede, um jardim vertical imenso ecoa certa brasilidade, que tanto atrai as farmetes. Mesmo vivendo em Curitiba, a capital mais fria do país, ela veste cores fortes e tecidos leves.

A fã, que veste Farm há sete anos, dedica horas do seu dia selecionando peças, provando looks e gerindo comunidades de vendas. Em um dos grupos de WhatsApp que coordena, com mais de 200 mulheres curitibanas, elas indicam cupons, fazem negociações e trocam figurinhas, como a que leva a foto de um dos donos da marca. "Vocês querem 50%, né?", diz o meme. No mercado online de desapegos, é possível encontrar itens mais baratos, mas algumas se tornam raras, viram objeto de desejo e o produto fica ainda mais valorizado.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

CAÇA-GOLPISTA

Os desapegos acontecem em grupos locais e nacionais. A maior parte das trocas é feita com base na confiança. Mulheres que nunca se viram depositam o valor da roupa e aguardam o envio da peça pelo correio. Golpes acontecem — nesses casos, elas se unem.

"Uma vez, comprei um vestido de uma menina e ela me enviou uma caixa vazia, com um post-it de carinha feliz. Outras farmetes também foram vítimas. Todo mundo se reuniu, fizemos uma força-tarefa para encontrá-la e as advogadas do grupo ofereceram suporte. No fim, achamos a moça e a obrigamos a devolver tudo", lembra.

É para evitar esse tipo de problema que elas têm um esquema de recomendação. Assim que a compradora recebe um produto, diz no grupo que a vendedora é confiável. O mesmo acontece nos grupos de fãs da paulistana Antix, outra marca de roupas caras com milhares de fãs no Facebook.

Suas peças chamam a atenção pela estética romântica e vintage. Itens de novas coleções podem a chegar a R$ 500, mas seu mercado de desapegos também é movimentado. Um vestido que, na etiqueta, custaria R$ 400, pode ser encontrado em grupos do Facebook por R$ 100. Isso ajuda a explicar por que mulheres de diferentes classes sociais vêm aderindo à grife.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

FEMININO FLORAL

Por causa das estampas, as peças da Antix são muito associadas ao universo teen, mas seu público é majoritariamente adulto. Isso leva a marca a apostar em modelos menos "menininha" e tamanhos maiores. "Adolescentes, em geral, não consomem um produto com o preço da Antix. Nossas consumidoras são mulheres 'empoderadas' que não abrem mão da feminilidade", argumenta a fundadora, Patrícia Ju Hee Ha, 45.

Iara Taborda, 36, por exemplo, tinha 30 anos quando comprou seu primeiro vestido. A terapeuta ocupacional, que na época trabalhava com massoterapia, estava em transição de carreira. A Antix foi uma espécie de "divisor de águas" em sua trajetória. "Na faculdade, a marca virou meu símbolo. Todo mundo dizia: olha a menina dos vestidos fofos chegando. Hoje tenho 70 peças", conta.

Apesar de se identificar com a grife, a podóloga e estudante Lucimara da Silva Maia, 51, não conseguia usar as roupas. "Ia à loja com minha filha e ficava olhando a vitrine como um cachorrinho em frente a um forno de frango assado. Achava tudo lindo, mas não tinha meu número", lembra. Foi só quando a marca lançou novos tamanhos que ela conseguiu entrar para o rol das antiquetes.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

IDENTIFICAÇÃO COLETIVA

Nos grupos de desapego, as antiquetes fazem mais do que negociar peças: contam seu dia, mostram looks e criam brincadeiras, como a "Te vi de Antix". Funciona assim: quando uma mulher vê outra na rua vestindo algo da grife, tira uma foto e a publica no Facebook. A autora do flagra às vezes brinca: "você está entre nós?".

Em Curitiba, encontros presenciais eram comuns até a pandemia chegar. Mas a união não se perdeu. As quatro antiquetes entrevistadas pelo TAB fizeram questão de falar com a reportagem juntas. "Estaremos em poucas, mas será uma boa troca", argumentou Lucimara. Elas escolheram o Jardim Botânico para o encontro e vieram com seus vestidos preferidos. Iara, que é moderadora do grupo Antix Curitiba, com mais de 3 mil membros, usava até uma máscara do Passarix, mascote da marca.

Para a pedagoga Flávia Nicolau da Silva, 38, foi difícil escolher sua melhor peça. Ela tem mais de 140 no guarda-roupa, categorizadas por ocasião, como frisou seu filho João Pedro Trevisan, 11. "Só não gosto de usar em horas tristes", diz. Em compensação, nos momentos felizes, a marca é onipresente. A professora Vanessa Freitas Silveira, 33, usou o vestido A Bailarina em seu casamento civil. "Ele é maravilhoso!", lembra enquanto as amigas suspiram.

Mas tão importante quanto qualquer ocasião especial é o momento em que as antiquetes conseguem seu vestido dos sonhos. Certa vez, Flávia encontrou um modelo que queria muito, mas ele ficou pequeno porque a antiga dona havia encurtado a peça. Resolveu então perguntar no grupo se alguém, por acaso, teria a barra da roupa. Uma menina se ofereceu para mandar o tecido pelo correio e contou que sempre guarda os retalhos para o caso de outra precisar. Resolvido o problema.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

CONSUMO E MORAL DA HISTÓRIA

A paixão por Antix e Farm tem efeitos bem concretos. No Libélula Brechó de Janaina Monteiro, um dos maiores de Curitiba, só as duas marcas têm uma arara especial.

Para Manita Menezes, doutoranda em Sociologia e professora dos cursos de Design da Universidade Positivo, a moda, muito associada ao efêmero, também é capaz de criar uma identificação coletiva. Não é incomum encontrar quem paute seus valores nos da Farm. Ou brincadeiras e piadas internas que só as antiquetes entendem.

Mas é tênue a linha entre o hobby e o consumo exagerado. A professora Cristina Pastore, do bacharelado em Marketing da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), observa que pode haver uma relação entre a baixa autoestima e a compulsão por compras. Nesse sentido, o que seria um elemento saudável de identificação coletiva se torna só mais um vício nocivo.

Por outro lado, há um preconceito que ainda paira sobre esse fenômeno e merece ser questionado: por que mulheres gastando com roupas é algo lido como futilidade? E por que um homem aficionado por carros é um colecionador, e uma mulher que coleciona vestidos é vista como consumista e fútil?

Para Manita, isso ocorre quando só se consegue enxergar a moda em seu caráter descartável. Mas um segundo ponto tem a ver com o machismo estrutural, que reduz o valor de tudo que parece relacionado ao universo feminino. Ser farmete ou antiquete não é (e nem deveria ser) nenhum pecado.

Topo