CARRINHO, BARRACA E VASO

Em São Paulo, crise econômica fez aumentar o número de desabrigados que levam o que podem para as ruas

Leonardo Martins e Mateus Araújo (Texto) e Tommaso Protti (fotos) Do TAB, em São Paulo Tommaso Protti/UOL

Numa tarde, Ana* guardava tampas de garrafas PET em um balde quando um de seus cachorros latiu para duas mulheres que saíam da Paróquia Santa Teresa de Jesus, no Itaim Bibi, zona oeste de São Paulo.

"Ai, meu, Deus, que susto!", reclamou uma delas, estupefata, na esquina das ruas Clodomiro Amazonas e Tabapuã, um dos caminhos que ligam a avenida Brigadeiro Faria Lima ao parque do Ibirapuera.

As janelas dos prédios de alto padrão observavam a cena. Irritadas com a situação, as duas olharam brabas para Ana sentada embaixo de uma árvore. Sussurraram algum xingamento inaudível e seguiram, apressadas.

A vizinhança ainda estranha a presença de Ana, que tem pouco mais de 30 anos. Há quatro meses ela mora em frente à igreja com quatro cachorros e um gato. Vivem todos sob um barraco de plástico e papelão, num dos bairros mais ricos da capital paulista, a menos de 500 metros dos escritórios dos principais bancos e empresas de tecnologia do país. "Vim pra rua, não tinha onde morar", explicava, sem querer prolongar a conversa com a reportagem. Também não quis ser fotografada.

A mulher negra, magra e baixa recolhe material reciclável no lixo da região e o dinheiro que consegue -- quando consegue -- só dá para comer. "Queriam me expulsar daqui, mas eu sei dos meus direitos, eu sei denunciar que é racismo. A rua é pública."

Uma das facetas da crise econômica no país, a presença de pessoas morando nas ruas de São Paulo está cada vez mais perceptível.

"Nunca tinha visto pessoal de rua por aqui", dizia Luiz Gustavo, motorista de Uber que levava a reportagem até o Itaim Bibi. Há um ano, ele deixou o trabalho de segurança particular e passou a dirigir em serviços de transporte por aplicativo. "Agora a gente vê muito [morador de rua]. À noite, principalmente, se você passar por aqui, vai encontrar."

Durante os últimos dois meses, TAB percorreu regiões da capital paulista conversando com homens e mulheres que procuravam em praças, calçadas, viadutos e largos um lugar onde se abrigar. Muitos deles são "recém-chegados" às ruas, nunca tinham dormido ao relento antes. A maioria se esquivou da conversa ou preferiu não se identificar. Fotos eram rechaçadas. Alguns estavam com a família; outros, sozinhos.

"Sou barbeiro. Quando começou a pandemia, fiquei sem trabalho. Tenho uma filha pequena, precisava arranjar um jeito de dar algum dinheiro à mãe dela", lamentava Fabrício*, 27, rapaz franzino, cabelos loiros e encaracolados, que guarda carros na praça Sílvio Romero, no Tatuapé, zona leste.

Desde julho, ele vive sozinho num barraco que montou no local, onde outras seis pessoas também moram. Sobrevive com os trocados que recebe e com a venda de bilhetes de Zona Azul. "Eu não vou mentir não, viu? Comecei a beber. Tem que beber. Mas tô trabalhando", contava. "Talvez outro dia conte minha história, mas hoje não quero. Não estou bem", disse ele, com olhos vermelhos e inchados, apoiado numa mureta.

NÚMEROS QUE DIZEM POUCO

Dados de monitoramento da população em situação de rua são escassos. Mas, mesmo obtidos em levantamentos diferentes, os números desenham um cenário idêntico: a cada ano, mais pessoas buscam as calçadas da capital mais rica do Brasil para dormir.

A Prefeitura de São Paulo elabora o estudo mais detalhado (dividido por região, sexo, idade, permanência na rua), ainda que os números não espelhem a realidade de hoje. Em 2019, ano do levantamento mais recente (divulgado em fevereiro de 2020), a prefeitura registrava 24.344 pessoas em situação de rua -- aumento de 53% em relação ao estudo anterior, de 2015 (15.905).

A própria frequência do estudo é irregular. O primeiro foi feito em 2000. Um novo levantamento foi realizado em 2009. Os estudos subsequentes são de 2011, 2015 e 2019.

A secretaria municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, pasta que coordena o projeto, diz usar contagem simples na pesquisa: pesquisadores vão às ruas em dias e horários preestabelecidos para identificar e contar, um a um, os moradores de rua. Na descrição da metodologia, a prefeitura explica que são abordadas "todas as pessoas em situação de rua em condições de responder à pesquisa".

Segundo o Movimento Estadual da População em Situação de Rua, o número com que a Prefeitura trabalha está longe da realidade.

A entidade realizou sua própria contagem no começo de 2020 e registrou uma estimativa de 32 mil pessoas vivendo nas ruas. Em 2021, o movimento estima que esse número duplicou -- calculam 66.300 pessoas nessa situação. A título de comparação, é quase a população de bairros como Lapa, Pinheiros e Mooca. Para o cálculo, o movimento considerou os atendimentos da entidade às pessoas em situação de rua em sua sede.

Numa viagem de metrô partindo da estação Portuguesa-Tietê em direção à Luz, é possível ter uma visão apressada e potente desse quadro difícil. Da janela, no alto, veem-se praças tomadas por barracas, redes, lonas e papelão. Numa delas, à margem da avenida Cruzeiro do Sul, Nathalia*, 33, está vivendo com o marido, Pedro*, 31, desde agosto. Eles moravam no Jardim Marilena, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Ela era diarista, e ele, pedreiro.

"Perdi o emprego em maio de 2020 e ele perdeu o dele em janeiro deste ano. A gente morava de aluguel, não deu pra pagar. Em maio, a gente foi morar na Sé, e agora conseguimos montar o barraco aqui", contou Nathalia, em frente à lona amarela que esticaram como cabana, amarrada no tronco de um árvore e presa no chão com tijolos e pedra. Ao lado da casa improvisada, ela colocou um jarro com uma pequena palmeira.

A covid-19 chegou ao Brasil superlotando hospitais, causando mortes e, de quebra, aprofundando as desigualdades. O PIB (Produto Interno Bruto) de 2020 caiu 4,3%, com desemprego atingindo 14 milhões de brasileiros e recorde de famílias em situação de extrema pobreza.

Pressionada, a Prefeitura antecipou um novo Censo. O levantamento já começou a ser feito e deve ser divulgado em maio de 2022 — seu lançamento estava previsto, antes da pandemia, só para 2023.

Robson Mendonça, fundador do Movimento Estadual da População em Situação de Rua, afirma que o cenário piorou. "É um problema que salta aos olhos de todos. Notamos, hoje, que a população em situação de rua aumentou não só na quantidade, mas houve uma mudança de perfil. Famílias inteiras com crianças passaram a conviver nas ruas", disse.

O próprio fato de ter de estimar quantas e como são as pessoas que moram nas ruas reflete um problema grave, explica a pesquisadora Juliana Reimberg. "Nós não temos dados, e sem dados é difícil pensar em políticas públicas. Temos uma população que é invisível." Talvez não tão invisível assim: até o pátio de uma igreja do Itaim Bibi virou Praça da Sé.

*nomes trocados a pedido dos entrevistados

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