PAREDE DA MEMÓRIA

O que resta hoje da técnica da fotopintura, arte que já foi símbolo da cultura popular

Alice de Souza e Rafael Martins Colaboração para o TAB, de Recife

Penduradas no fundo caiado de uma parede, as fotopinturas parecem um naco de passado em lares do interior do país — homenagem aos que se foram, revividos agora pelo colorido das tintas. Mas, a despeito da estética que remete ao antigo, elas permanecem vivas. São mais do que relíquias, e ai de quem ouse dizer o contrário na frente de Júlio Santos, 76.

"Se houve uma morte da fotopintura, foi em espírito. Ela ressuscitou com muito mais força, pois tenho feito produção para todo canto. Tenho trabalho suficiente para não parar."

Júlio Santos é conhecido como Mestre Júlio, o único fotopintor renomado vivo no país. Se a fotopintura permanece pulsante, boa parte dessa responsabilidade está nas suas costas. Júlio guarda a sabedoria do passo a passo original da técnica.

De Fortaleza, onde trabalha e fez carreira, Júlio produz de 250 a 300 peças por mês. Ao lado dele, vendedores ambulantes das imagens e compradores fiéis garantem efervescência a esse comércio.

RELÍQUIAS DA CASA VELHA

A fotopintura surgiu na França, no fim do século 19. Era feita a partir de uma base fotográfica em baixo contraste, onde se aplicavam tintas. Chegou ao Brasil ainda no século 19 e, ao contrário do que muitos pensam, não tem origem no Nordeste.

Mestre Júlio conta que o maior estúdio de fotopintura ficava em São Paulo. Era o Uniarte. Só que a técnica deles era baseada na escola espanhola: ampliavam a imagem e pintavam com pincel por cima. "Na nossa região, a fotopintura era feita à base de pigmentos líquidos e com o pastel seco sobre ela."

A técnica pegou carona na popularização do retrato, a partir da década de 1930, e com a instituição da foto no título de eleitor, quando várias pessoas passaram a dispor de um registro em 3x4. Ampliadas em preto e branco, retocadas e coloridas à mão, ganhavam expressão facial bem marcada e uma roupa inventada, ao gosto do cliente.

MONGE DA COR

Quando saiu do mosteiro beneditino em que morava, aos 12 anos, Júlio Santos descobriu a fotopintura. Na época, seu pai tinha como sócio Medeiros, habilidoso na produção de imagens. Juntos eles criaram o Áureo Studio.

"Eu queria correr, pecar, fazer tudo o que todo mundo tem direito. Pedi a meu pai para ficar, ele relutou, mas depois deixou. Então, quis retribuir de alguma forma e calculei comigo: não vou ser beneditino, mas vou ser o monge da fotopintura."

Júlio garante que não sabia nem desenhar. O processo de colorir era uma linha de produção de 11 fases, com equipe própria para cada um dos passos. No total eram 40 trabalhadores unidos para criar 2,4 mil telas por mês.

O estúdio surfou o auge da fotopintura, e Júlio levou vantagem por ser filho do dono. Aos 16, já dominava todas as etapas. Quando o papel em fibra — único que consegue "pegar" as tintas a óleo, pastel seco ou à base de água — sumiu do Brasil, entre 1990 e início dos anos 2000, ele precisou demitir os homens que haviam chegado ainda meninos, fechou o estúdio e ficou à mercê do digital.

Achava um absurdo ser rendido por uma máquina, pensava que podia mandá-la às favas. No fim, trocou o cavalete pelo Photoshop, mas continua fazendo fotopintura do mesmo jeito. Agora as imagens levam de três a quatro horas para ficarem prontas.

VENDEDOR DE SONHOS

Para Mestre Júlio, a pessoa mais importante da cadeia da fotopintura é o vendedor, responsável por bater de porta em porta oferecendo os retratos. Eles percorrem as cidades convencendo moradores a ampliar, pintar e emoldurar imagens.

Filho de fotopintor, Valmir Souza, 53, o "Presença", trocou ainda adolescente o trabalho de lavador de imagens no estúdio do pai, o Foto Brasil, pelo ofício de vendedor. Na época, a tarefa consistia em viajar dez dias por mês pela Zona da Mata de Pernambuco e interiores de Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba, captando clientes. A meta era recolher cinco fotos por dia para fechar a chamada "produção", um bloco de envelopes com a descrição de como deveria ser cada fotopintura.

A agenda do vendedor acompanhava a safra de produtos agrícolas de cada região. "O meu recorde foram 28 fotos em um mesmo dia", lembra Presença. Cada produção era organizada para ser entregue no mês seguinte, a tempo de colocar moldura.

O esquema de recolhimento e entrega é vigente até hoje, mas Presença vai pouco ao interior. "O pessoal dos engenhos é o mais necessitado. Meu sonho é poder contratar duas pessoas para ir ali para a região de Pitimbu (PB), Condado (PE)... Lá tem muita foto ainda para ser feita."

LÁBIA E JEITINHO

"E hoje, amadas, tem trabalhozinho?", pergunta Presença a duas mulheres sentadas na calçada, clientes antigas. De segunda a sexta-feira, ele sai de sua casa na cidade de Igarassu, na região metropolitana do Recife, deixa a moto no meio do caminho e anda de quatro a cinco horas oferecendo retrato. Está no loteamento Agamenon Magalhães, redondezas da própria residência, depois de ter vindo da cidade de Paulista. No braço leva duas imagens, além de uma pasta preta, o docset, com sugestões de cenários de fundo.

Presença não vende mais fotopintura feita em papel fibra, aquela desenhada à mão com as tintas. Agora os serviços são restauro dessas fotopinturas — em computador — e de fotografias antigas, ampliações de imagens digitais, montagens e fotografias em porcelana. As primeiras custam R$ 100; a última, R$ 250. Em dia bom, Presença consegue recolher quatro fotos, que junta em envelopes de caixa eletrônico de banco.

O sucesso depende da confiança — o que para ele, homem negro, nem sempre é fácil. Para evitar o racismo, chega a abrir mão do que chama de melhores clientes, pessoas da "alta sociedade, que têm muita foto antiga para restaurar", e aposta nos bairros "de gente como a gente".

A estratégia de convencimento tem lá suas artimanhas. O cliente sempre tem uma foto, mas quer ser conquistado. Se a pessoa abrir a porta, Presença engata. "Opa, bença! Olha como fica, bem bonito. Dá pra botar vários cenários, dê uma olhadinha sem compromisso..." É quando apresenta o docset. Se a pessoa tocar a pasta, as chances de venda são de 50%. Se perguntar o preço, aumentam para 70%, calcula.

Para o caso de a pessoa querer imagem na hora, Presença carrega uma máquina fotográfica profissional. "Com celular é complicado, a foto não sai boa", diz aos interessados. Presença tem mês regrado: dez dias na rua, dez nos estúdios do Recife e buscando molduras, dez entregando as fotos e tentando o que ele chama de "bis", quando o cliente faz um segundo pedido no ato da entrega.

FOGUINHO ACESO

A fotopintura fez sucesso no passado porque permitia algum tipo de aspiração às classes mais baixas. Tirar foto era ficar bonito: vestir paletó, gravata ou vestido para ocasiões especiais. Mestre Júlio explica, entretanto, que esse não era um desejo inato dos clientes, mas um sentimento provocado pelos próprios vendedores.

"Dizem que a fotopintura veio para dar dignidade às pessoas, mas a realidade é que os vendedores induziam você a fazer o trabalho colocando adereços. As pessoas ficavam encantadas com isso." A indução do mestre Júlio é o que Presença chama de "acender o foguinho".

O empregado doméstico aposentado João Pedro Pessoa, 64, é um dos alvos preferidos dos vendedores. Todo ano, faz pelo menos uma fotografia nova. Tem uma parede inteira da sala tomada por elas. No imóvel de quatro cômodos na Vila 27 de Abril, bairro do Ibura, no Recife, são 15 fotos na parede, além de oito 3x4 espalhadas pelas estantes.

As duas primeiras são fotopinturas, ampliadas a partir da imagem do título de eleitor e da foto do certificado de reservista. Para elas, Pessoa escolheu vestir um elemento que sempre sonhou em ter, mas que nunca pode comprar: uma gravata. "Os vendedores devolveram com um mês e, a partir dali, vinham pegar mais. Às vezes, eu até dizia que estava sem dinheiro, mas eles traziam um álbum cheio de desenhos. Eu escolhia a cor da roupa, da moldura...", lembra, embevecido.

CENÁRIO DE CACHOEIRA

O álbum é o que Presença chama de docset. Há imagens de parques, times de futebol, personagens de desenhos infantis. A mais querida é a de número 52, uma imagem de cachoeira. O autônomo Marcone Nascimento, 45, vizinho de bairro de Presença, em Igarassu, escolheu justamente o fundo 52 para resgatar as fotopinturas do sogro e da sogra. "Eles já faleceram, nem acreditei quando ele trouxe, as fotos estavam muito danificadas. Ficou lindo!"

Mas nem todo mundo fica feliz com a cachoeira. Pessoa detestou quando colocaram uma na fotopintura ampliada em Afogados da Ingazeira (PE). "Eu não pedi, né!" Sua preferida é uma foto na qual aparece de paletó branco. Por cada tela, no passado, pagava R$ 70. Ultimamente, está receoso em comprar novas. "A última veio horrível, toda manchada. Mandei devolver, disse que não ia aceitar", reclama.

O doméstico ainda aguarda uma encomenda, a ampliação da foto de um amigo. Por ela, pagou R$ 150. Faz questão de continuar a coleção física, apesar das mais de 800 fotos mantidas na galeria do celular. Seu sonho é comprar uma gravata para tirar uma selfie com o status que até hoje só alcançou via fotopintura. "Uma vez o vendedor tirou uma foto minha, dizendo que eu era o melhor cliente."

ENTRE A VIDA E A MORTE

A fotopintura funciona como uma máquina do tempo. Era costume mandar colorir imagens de filhos natimortos ou de pessoas falecidas, também por convencimento do vendedor. "Era um documento, serviu para deixar o ente encarnado junto à família. Você morre, mas a fotografia permanece junto", lembra Mestre Júlio.

"Como o principal papel da fotopintura é melhorar a aparência do retratado, a maior motivação era a busca dessa melhoria, a imortalização do retratado como ele gostaria de ser", explicam os pesquisadores Ana Rita Vidica e Rafael Delfino Alves, da UFG (Universidade Federal de Goiás).

A morte segue capitalizando o mercado da fotopintura. Os principais pedidos feitos a Júlio são restauros de fotos antigas carcomidas pelo tempo. "Para mim só chegam os mais difíceis, os retratos que não prestam mais para nada, gente morta para fazer viva", conta.

Presença também recebe muitos pedidos de imagens amareladas, destruídas, de pessoas já falecidas. Apesar de ter sofrido durante os quatro meses em que ficou em casa por causa da pandemia, nunca vendeu tanta porcelana quanto em 2020. "É caro. Só vendia umas duas por ano, na época de Finados. Mas agora, com essa mortandade toda, vendi umas 20."

Mestre Júlio mantém uma sala de trabalhos no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. Ele sabe que a fotopintura segue encantando, vide os elogios que recebe toda semana. É por isso que se recusa em associar morte e fotografia. "Só consigo relacionar fotopintura à vida, talvez pela minha paixão, porque ela vai estar sempre emocionando as pessoas, se refazendo. Trabalhamos na UTI da fotografia. As pessoas que aprenderem a recuperar terão 200 anos de trabalho pela frente."

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