Geração Freelancer

Como os jovens vão se virar em um mercado cujas mudanças irão muito além das reformas na legislação

É meio "doido". Não tem dia certo para o dinheiro cair na conta, mas também não tem “chefe escroto” para aturar. O trabalho não enriquece outra pessoa - ao menos não diretamente - e há uma suposta liberdade criativa. Essa é a avaliação de Pryscila Colasso, 22, sobre seu jeito favorito de trabalhar: como freelancer.

Fotógrafa e designer, Pryscila é microempreendedora há cinco anos. "Acredito muito no poder da mais-valia. Acho que a gente vale muito mais do que o serviço que pagam para a gente fazer. Muitas vezes temos que aturar pessoas mal educadas para algo maior, que é o capitalismo", opina. "Eu prefiro tentar o máximo que eu posso, [o que é] um pouco impossível no momento, não participar disso", completa.

O momento atual ao qual ela se refere é a crise econômica. Pryscila hoje é contratada em regime CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho - uma exceção entre os jovens da sua idade. Ainda assim, faz freelas esporádicos. O mercado instável afeta os índices de desemprego, cada vez mais altos, mas é especialmente cruel com quem tem até 24 anos. Não é hora de perder um job.

Só nos últimos dois anos, o número de desempregados entre 18 e 24 anos saltou de 17,6% para 28,8%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). É o dobro da média mundial, que se mantém estável em 13%. E é um cenário diferente, por exemplo, de outros países latino-americanos, que têm uma taxa semelhante entre jovens e adultos.

"Os jovens são um dos primeiros segmentos sociais a sofrer com o aumento do desemprego em qualquer parte do mundo, mas, especialmente, em países como o nosso”, afirma a economista Regina Camargos, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

O mercado de trabalho brasileiro é muito desestruturado, com uma alta informalidade e rotatividade. É neste cenário de instabilidade crônica que surge a "viração", característica que alguns sociólogos usam para descrever o trabalho no Brasil. O termo, cunhado por Ludmila Abílio, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), descreve a vida dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento. Esse conceito significa, literalmente, que as pessoas precisam se virar entre trabalho formal e bicos - no caso dos jovens, a viração fica ainda mais evidente.

A juventude tem feito o que os trabalhadores brasileiros historicamente sempre fizeram: estão se virando

Bárbara Castro, socióloga e professora da Unicamp

Mesmo trabalhando desde muito cedo e com nível recorde de graduação, fruto da expansão de programas de acesso ao ensino superior, os jovens hoje têm muito menos perspectiva de serem contratados em regime CLT. "Para ampliar as possibilidades de renda, a solução possível para uma parte dos trabalhadores tem sido abrir um MEI (empresa como microempreendedor individual) ou uma PJ (pessoa jurídica), dependendo das expectativas de ganho, e oferecer serviço a variadas empresas", explica Bárbara Castro, professora do departamento de Sociologia na Unicamp. 

Bicos, corres e jobs

Para muitos setores as mudanças nas relações trabalhistas são inevitáveis. O Fórum Econômico Mundial, por exemplo, fala em Quarta Revolução Industrial. Um relatório feito com entrevistas de acadêmicos, empresas e profissionais de Recursos Humanos apontou que a tecnologia e a automação serão responsáveis por eliminar mais de 7 milhões de empregos em todo o mundo entre 2015 e 2020 - a maior parte deles nas áreas administrativa e de produção.

Outro levantamento, feito em 2013 por Carl Frey, pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido, chegou a uma conclusão semelhante. Ele aponta que quase metade dos empregos nos Estados Unidos estão em risco. Sua previsão foi classificada como exagerada, mas ele, na época, relativizou: as mudanças levariam duas décadas para acontecer. E afetariam, principalmente, áreas como produção, serviços e administração - aquelas em que criatividade e experiência não são tão essenciais.

Por outro lado, posições gerenciais, que exigem experiência, e atividades ligadas à criatividade, tecnologia, vendas e educação têm potencial de crescimento. E há promessas de um futuro com possibilidade inéditas: segundo o Fórum Econômico Mundial, 65% das crianças que hoje estão na pré-escola terão trabalhos completamente novos, que ainda nem existem.

“Hoje, alguns tipos de empregos não são, necessariamente, empregos, ou são funções que antigamente não existiam", diz Eduardo Migliano, cofundador do 99jobs, consultoria em recursos humanos. “Há cinco anos, o serviço de administrar fanpages não existia. Há dez anos um desenvolvedor de apps não existia - e esta pessoa não faz um app só, ele faz vários apps, para várias empresas”, completa.

Para o Fórum Econômico Mundial, as inevitáveis mudanças precisarão ser acompanhadas de várias estratégias das empresas e dos governos para preparar a força de trabalho para essa nova realidade. As práticas adotadas hoje de empregar jovens em funções de aprendizes, executando tarefas administrativas que logo estarão obsoletas, são ineficazes. Seria melhor preparar os jovens para as posições que serão tendência.

Em curto prazo, modernização nas áreas de recursos humanos, investimento em políticas de inclusão e diversidade e adoção de jornadas mais flexíveis seriam uma maneira eficiente de as empresas se prepararem para as mudanças. Num futuro próximo, o Fórum Econômico Mundial diz que será preciso reinventar o sistema educacional, eliminando a dicotomia entre humanidades e ciências exatas e biomédicas e investindo em aprendizado contínuo ao longo da vida.

A vida como PJ

Mariana Godoi, 24, é formada em arquitetura há um ano, mesmo tempo em que entrou para o mercado profissional como pessoa jurídica. “Pra mim é uma alternativa até arrumar algo fixo”, conta.

Quando entrou na faculdade, em 2012, apostava num mercado de trabalho com mais vagas e possibilidades de atuação. Entretanto, percebeu que a maior demanda na área de arquitetura é pela contratação de prestadores de serviços que funcionam como empresas.

Mariana não é uma funcionária, mas se esforça para atender a todos com qualidade e fazer com que seus clientes voltem e tragam mais contratantes. Sem garantia de salário e sem estabilidade, o número de jobs é diretamente proporcional ao que entra de dinheiro.

“Me cobro bastante quanto aos prazos de entrega e qualidade, acho que é uma forma de criar essa fidelidade com o contratante e conseguir mais indicações”, diz.

A vida freelancer tem dessas: sem patrões e sem horários, a autocobrança, a disciplina e a organização são fundamentais para ver o dinheiro entrar ao longo do mês. É comum, no entanto, que freelancers sofram com excesso de trabalho. "Dizer não a um cliente é possivelmente fechar as portas para um novo trabalho", explica Bárbara Castro, da Unicamp.

O sociólogo Richard Sennett, professor da London School of Economics, é crítico do modelo. Para ele, a imprevisibilidade da vida freelancer leva à fragmentação dos vínculos sociais e à frustração dos indivíduos. A substituição de um status de consumo individual por uma economia compartilhada, para ele, "não será indolor".

Para muitos pesquisadores, o Uber é a tradução do novo modelo de relação trabalhista: uma tecnologia que permite que os indivíduos ajam como empresários autônomos, gerindo o próprio tempo e renda conforme a disponibilidade - e sem nenhuma garantia. Esse modelo de trabalho, que já foi definido como "uberização", é fortemente criticado por alguns setores da academia, que criticam a precarização das relações trabalhistas.

Rafael Blessa tem 24 anos e possui formação técnica em serviços jurídicos e licenciatura em história. Há 18 meses ele procura emprego em sua área. Desde que foi demitido, junto a outros 1.396 funcionários do Hospital Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, Rafael já foi revisor de textos acadêmicos e freelou para a Prefeitura de São Paulo segurando placas de sinalização de trânsito nas ciclofaixas. Há um mês, se tornou motorista - ou "parceiro", como prefere a empresa – do Uber.

Para garantir R$ 2 mil de salário, Blessa precisa trabalhar 60 horas semanais. A flexibilidade e o fato de não ter um patrão agradam o historiador. Depois de passar 11 horas por dia no volante, no entanto, ele busca emprego nos classificados quando chega em casa. "A maioria dos pontos é negativa. Os riscos são todos meus", diz.

Adeus CLT, olá MEI

Ser um freela no Brasil ficou mais fácil e barato desde de 2008, quando foi criada a figura do MEI, o microempreendedor individual. Nesse formato, o prestador de serviços não precisa, por exemplo, ter custos com um contador, o que contribui para adesão de muitos trabalhadores autônomos ao registro. Além disso, o MEI também garante alguns direitos, como auxílio maternidade, auxílio doença e aposentadoria.

As MEIs têm uma trajetória inversamente proporcional aos números de emprego no Brasil. Enquanto fica cada vez mais difícil ser contratado, o número de microeempreendedores individuais não para de crescer: em 2016 eram 6,64 milhões, praticamente o dobro do que era registrado em 2013. Mas isso não é necessariamente uma notícia boa.

"A alta adesão ao MEI não tem nada a ver com uma onda de empreendedorismo. Ela vem por necessidade. Não tem emprego, e se há, os empregos são instáveis e a conta racional é que se é pra viver na instabilidade, melhor pensar em como ter algum espaço para 'jogar' dentro dela", analisa Bárbara Castro.

Carolina Fonseca, 21, abriu sua MEI em dezembro de 2016, quando ela deixou o estágio para trabalhar como cadista, que é o profissional responsável por desenhar ou fazer o projeto arquitetônico num software CAD, conforme as especificações do projetista ou engenheiro. “Eu escolhi assim porque estagiário na minha área ganha muito pouco”, diz a jovem estudante de arquitetura e urbanismo, que só atua como cadista porque possui formação técnica em construção civil.

Para ela, ser MEI é vantajoso porque os impostos são mais baratos e é possível pegar mais de um freela. Mas a estabilidade da CLT faz falta. 

Eu tenho mais lucro, mas não tenho segurança nenhuma. Esse mês de abril, por exemplo, eu não recebi quase nada.

Carolina Fonseca, 21 anos, freela desde dezembro de 2016

Propagandeada como incursão no mundo do empreendedorismo, a figura do MEI pode ser vista também como uma maneira de garantir direitos básicos a uma enorme parcela da população que, até então, trabalhava na informalidade.

Ou, ainda, como uma maneira de rebaixar o conjunto de direitos da classe trabalhadora, já que a mão de obra autônoma, via MEI, é consideravelmente mais barata para as empresas do que a contratação formal. Diante da crise, empresas enxugam os gastos e passam a contratar pessoas jurídicas no lugar de funcionários - a chamada pejotização, numa estratégia que configura fraude.

“A pessoa jurídica é uma empresa”, explica o advogado trabalhista Alexandre Giancoli, sócio da GOC Advogados e especializado neste tipo de caso. Só que, muitas vezes, empresas são contratadas para agirem como verdadeiros funcionários, sob a dependência das decisões de chefes, com rotinas se estendendo por prazos maiores que os dos contratos e recebendo um salário no fim do mês.

Se as obrigações são as mesmas, as diferenças estão nos direitos. Não há garantia de vale-refeição, férias ou multa rescisória. O número de casos trabalhistas envolvendo a precarização do trabalho das pessoas jurídicas têm crescido na última década. Giancoli afirma ter defendido mais de mil casos nos últimos dois anos. "Eu penso na pejotização como um laboratório de precarização para um conjunto de atividades profissionais que antes estavam protegidas pela legislação", critica Bárbara Castro.

No front das reformas

Diante do cenário de mudanças profundas, agravado pela crise econômica, as empresas demandam arranjos de trabalho e contratos mais flexíveis. A ideia é que o mercado se ajuste e produza a partir da demanda - e não mais com um volume de entrega fixo -, com empresas se concentrando em sua atividade-fim e terceirizando as outras funções.

"A flexibilização sempre foi defendida a partir de um lustre de modernização das relações trabalhistas e aparece com força em momentos de crise econômica com a justificativa de que essa modernização amplia as ofertas de trabalho", diz Bárbara Castro.

Parece um cenário novo. Mas, na verdade, o conceito de "capitalismo flexível" foi descrito nos anos 1970 pelo antropólogo David Harvey no livro chamado "A Condição Pós-Moderna", que detalha a reestruturação da sociedade norte-americana depois da crise do choque do petróleo.

A reorganização da produção, dos modos de trabalho e a consequente pressão para que sejam aprovadas reformas para legalizar essas novas relações são, na visão do pesquisador marxista, alternativas para manter ou ampliar os lucros em meio a um cenário econômico desfavorável.

O pensamento de Harvey ajuda a explicar a movimentação pela aprovação da reforma trabalhista e a Lei da Terceirização, propostas pelo governo de Michel Temer (PMDB). Já aprovada, a Lei da Terceirização deu mais um passo na flexibilização ao permitir que as empresas terceirizem qualquer atividade.

Agora, o governo Temer alega que a CLT está defasada – mesmo após várias atualizações, vale lembrar que a lei é de 1943. O governo critica o excesso de detalhamento, que afirma sobrecarregar a Justiça do Trabalho, e sugere mudanças como aumento da jornada semanal de trabalho (de 44 para 48 horas) e regulamentação de práticas como home office, além de jornadas descontínuas.

A principal mudança, no entanto, seria a possibilidade de acordos entre funcionários e patrões se sobreporem à lei - o chamado "acordado sobre legislado". Assim, arranjos mais flexíveis ou independentes deixariam de ser ilegais perante a CLT. Seus defensores afirmam que o modelo favorece a autonomia dos trabalhadores. É esse, no entanto, o maior ponto crítico do texto: opositores, como centrais sindicais, dizem que isso pode abrir brecha para exploração - especialmente em épocas de crise, em que falta trabalho.

“[As reformas trabalhistas] acabarão gerando um modelo que não será nem a CLT e nem o PJ que temos hoje”, acredita Migliano. “Ninguém sabe quando será o ‘estágio final’ dessas mudanças, nem onde chegaremos", diz Regina Camargos, do Dieese. “Estamos apenas no começo de um novo ciclo de mudanças no mundo do trabalho e no capitalismo, no qual, certamente, os jovens enfrentarão enormes desafios em busca de trabalho decente”, completa a economista. Haja “viração”.

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