SOMBRA DE UM IMPÉRIO

Nas bordas da ex-URSS, colapso da superpotência ainda reverbera e fronteiras continuam a ser desenhadas

Jamil Chade (reportagem e fotos) Colunista do UOL Jamil Chade/Arquivo pessoal

A operação militar russa contra a Ucrânia não é um ato isolado, ainda que seja o mais grave em anos para a segurança internacional. A atual crise faz parte de uma ofensiva, tanto da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) como da Rússia, para lidar com um capítulo mal resolvido do final da Guerra Fria, há três décadas: os limites das esferas de influência e o papel de duas superpotências numa ampla região do planeta.

Como resultado, às sombras do que foi o império soviético no século 20 proliferam protetorados, países-fantasma, ficções jurídicas e sociedades que vivem no limbo.

Ao longo dos últimos 15 anos, em diversas viagens que realizei pelas bordas desse império, o que constatei é que a história do colapso da URSS não acabou e as fronteiras do que a substituiu ainda não estão desenhadas. Ao contrário das vozes vindas de um orgulhoso e prepotente Ocidente, a história está inconclusa.

No fundo, o que aquele evento gerou foi um terremoto que continua reverberando. Basta pisar em algumas dessas regiões para se dar conta de que a instabilidade é a rotina de milhões de pessoas, sequestradas pela disputa de poder, pela geopolítica e pela história.

Há alguns anos, aproveitei uma viagem que fiz até Sochi, na Rússia, para praticar uma das minhas atividades preferidas: cruzar fronteiras. Tentar entender como aquela linha imaginária foi colocada ali.

Naquele dia, fui até a borda da Rússia e da Abecásia. A região acabou se envolvendo em um conflito em 2008, quando a Geórgia invadiu a Ossétia do Sul (considerada uma província rebelde), causando uma violenta reação russa. O Kremlin expulsou as tropas georgianas e acusou Washington de ter patrocinado a intervenção. O conflito chegou à Abecásia, que já travou cinco guerras pela independência contra a Geórgia desde 1992.

Os dois países acabaram assinando um acordo de cessar-fogo mediado pela União Europeia, mas militares russos permanecem ali. A região vive em estado de ficção jurídica. Após a guerra, a independência das duas regiões foi reconhecida pela Rússia e por apenas outros três países, entre os mais de 190 que fazem parte da ONU (Organização das Nações Unidas).

Quando apresentei meu passaporte na fronteira, a reação do oficial na guarita foi de surpresa. Depois de examinar meus documentos, ele disse que o passaporte era falso. Questionei como ele havia chegado àquela conclusão, já que as páginas estavam repletas de vistos e carimbos. Sua resposta foi clara. "Nenhum brasileiro vem até aqui."

Depois de uma conversa, ele resolveu que faria algumas ligações. Desgastado pela idade e claramente insatisfeito do destino que a vida lhe tinha dado, o militar voltaria alguns minutos mais tarde com uma pergunta e um olhar desafiador:

- Se você é mesmo brasileiro, então me diga o nome de um escritor brasileiro.

Naquele momento, me lembrei da história de amor que os soviéticos, durante a existência da URSS, nutriam por um certo escritor comunista latino-americano. E tentei minha sorte:

- Jorge Amado.

Bingo. O sorriso do militar apareceu pela primeira vez e ele parecia convencido - e orgulhoso - de que estava tratando com um autêntico brasileiro. Ao me pedir uma vez mais para esperar, já parecia outra pessoa, inclusive assobiando um chá-chá-chá. Em sua imaginação, aquilo era certamente uma bossa nova ou um samba.

Mas a verdadeira surpresa foi quando ele retornou, me entregou um papel com um endereço e me informou em tom solene:

- Nosso ministro das Relações Exteriores quer falar com você. Quando chegar à capital, ele estará te esperando neste endereço.

De ser acusado de falsificar meu passaporte, eu agora seria recebido pelo chanceler da Abecásia, Maxim Gundjia.

Horas depois, já nas instalações oficiais de um país inexistente, o escritório vazio era a imagem de um Estado não reconhecido por quase ninguém. Como deve ser a vida de um chefe diplomático de um país que, para muitos, não existe?

Ao longo da conversa, tentava me convencer que, por meio dos EUA, a Geórgia ameaçava sua sobrevivência. A Guerra Fria, pelo menos ali, não tinha terminado. "O Cáucaso está à beira de uma guerra e o mundo precisa saber disso", disse Gundjia.

"O governo norte-americano está lançando uma política contra nossa independência, que inclui congelar nosso dinheiro no exterior", acusou o chanceler. "Estamos vendo um fortalecimento dos EUA no Cáucaso, criando uma espécie de cinturão para frear a Rússia. A Geórgia está sendo usada. Há bases norte-americanas que podem ser empregadas em um ataque ao Irã. Se isso ocorrer, significará uma guerra no Cáucaso", disse.

Beslam Baratelia, professor de economia da Universidade de Sucumi, capital da Abecásia, me contaria horas depois que US$ 100 milhões anuais chegavam de Moscou para manter os órgãos públicos, pagar salários de ministros e fazer o Estado funcionar.

No entanto, nem todo mundo estava satisfeito. "Há uma certa desilusão em relação aos russos", explicou Irakli Khintba, pesquisador do Centro para Programas Humanitários de Sucumi. "Todos achavam que, após o aval russo, as portas estariam abertas para um reconhecimento internacional. Não foi isso que aconteceu."

Até aquele momento, apenas quatro países reconheciam a Abecásia -- Rússia, Venezuela, Nicarágua e Nauru. Na prática, a região se tornou um protetorado russo, com 3 mil soldados do Kremlin no território.

Em 2018, fui a outra região em disputa, a Crimeia, já anexada pelos russos. Ensolarado e verde, o local disfarçava a tensão, com sua paisagem impactante. Se o objetivo era conhecer a região, um cartaz no meio da estrada me fez desviar. Ele anunciava uma visita guiada por túneis subterrâneos cavados em rochas à beira do Mar Negro onde, no século 20, ogivas nucleares russas estavam guardadas.

O que eu ouviria naquela visita guiada resumia a nova ofensiva russa, que não queria apenas reconquistar territórios perdidos, mas conquistar corações e mentes. "Nunca quisemos ter armas nucleares. Mas, como os EUA tinham, essa foi a forma que encontramos para nos defender", disse o guia.

Na pequena baía de Balaclava, na Crimeia, iates brancos e um aparente ar de normalidade escondiam um dos maiores segredos da Guerra Fria: a 14ª Divisão de Submarinos da antiga URSS. Todos projetados para lançar, se necessário, uma guerra nuclear.

Hoje, ele é uma espécie de museu destinado a mostrar aos russos o passado soviético heroico, numa tendência de rever a história que ganhou força durante o governo de Vladimir Putin e que faz parte de um esforço para garantir que a Crimeia não debata seus laços de identidade.

Nos últimos anos, livros de história foram reescritos, estátuas foram erguidas e museus adotaram um novo tom. Até a seleção de futebol entrou na estratégia de propaganda, com a imprensa oficial evocando feitos soviéticos para traçar paralelos. Na Copa de 2018, o porta-voz do Kremlin se apressou em declarar que as imagens das comemorações pelos resultados da seleção russa lembravam aquelas de 9 de maio de 1945, dia da vitória na Segunda Guerra Mundial.

Sob o governo Putin, o patriotismo passou a ser divulgado pelo Kremlin como o "valor comum" entre todas as regiões na Rússia. O dia 9 de maio voltou a ter uma posição central no calendário de eventos do país, enquanto uma lei aprovada em 2014 estabeleceu até mesmo prisão para quem "mentir sobre a história".

Pelos túneis de Balaclava, tudo estava pensado para sobreviver a um eventual primeiro ataque -- norte-americano, claro. De fato, um dos argumentos da anexação da península, em 2014, foi o de evitar que a região se transformasse numa base da Otan.

A anexação da Crimeia ocorreu por meio de um referendo popular. Nas semanas que antecederam à votação, entidades internacionais denunciaram o estabelecimento de um enorme dispositivo militar, com a campanha do "não" à anexação praticamente enterrada.

Nem a condenação internacional ou as sanções fizeram o Kremlin desistir. Hoje, porém, quem questionar publicamente a legalidade da anexação é detido e pode ser condenado a cinco anos de prisão.

Enquanto eu percorria a península, em 2018, todas as vezes que iniciava uma conversa sobre o impacto da anexação, os entrevistados pediam para não comentar ou abaixavam a voz para sussurrar.

Os mais hesitantes eram a população tatar, considerada a mais prejudicada com a anexação. "Eu não era a favor, mas a votação ocorreu de forma tão rápida que não houve tempo para uma resposta e mobilização", disse uma vendedora de legumes numa feira na cidade de Ialta. Ela insistia que não poderia dar seu nome, sob o risco de represálias.

O limbo que vive a Crimeia não é mera questão teórica. Durante a Copa, a península não contou com uma "fan zone" oficial, como ocorreu no resto do país. O Kremlin bem que tentou fazê-lo, para provar à população local que eles também faziam parte da festa. Mas o plano esbarrou num problema maior: as sanções internacionais.

Com cinco patrocinadores ocidentais, entre eles McDonald's, Coca-Cola e Visa, a Fifa se recusou a montar seu circo na Crimeia. A cidade de Sebastopol ignorou a decisão e montou sua própria festa, com cachorro-quente, algodão-doce, cerveja de outras marcas e uma loja improvisada da Fifa, com produtos contrabandeados.

O local era, no fundo, o espelho das dificuldades vividas pela região. Sem ser reconhecida no Ocidente e sob sanções, a Crimeia não aceitava naquele momento cartões de crédito estrangeiros e apenas o chip russo de telefone funcionava.

Graças a um novo aeroporto, a capital Simferopol está hoje conectada a mais de 50 cidades russas. Mas, se um morador quiser viajar para Kiev, precisa voar para Moscou. De lá, para Minsk, na Belarus, e só então chegaria a Kiev. Os turistas estrangeiros abandonaram o local, que passou a ser destino quase exclusivo dos russos. No aeroporto de Simferopol, a ala internacional estava fechada.

Marcas estrangeiras deixaram a região. Numa das avenidas centrais de Ialta, uma loja abandonada do McDonald's é sinal claro das sanções. Em seu lugar, novas lanchonetes apareceram, com uma publicidade que avisa ao cliente de que seus funcionários têm experiência de trabalhos anteriores em cadeias internacionais. A cafeteria Starbucks foi substituída por uma rede chamada Starducks, com seu símbolo redondo e verde. No lugar da Kentucky Fried Chicken, a população local agora come no "Crimean Fried Chicken".

Num esforço para convencer a população de que não estão isolados, Putin inaugurou uma ponte, em maio de 2018, ligando o continente à Crimeia.

Em Sebastopol, perto do telão para que a população pudesse assistir aos jogos da Copa, um serviço oferecia fotos dos torcedores diante de uma imensa bandeira russa e que dizia: "A Crimeia é nossa". Saí dali com um sentimento de ter já ouvido algo parecido vindo dos ecos das arquibancadas do Maracanã.

Não é preciso deixar a Rússia para entender que, na vastidão de um território que atravessa dois continentes, existem dúvidas sobre a identidade do país.

Percorri de carro a região do lago Baikal. Ali, a mais de 5,1 mil quilômetros da capital russa, em plena Sibéria Oriental, Moscou, o Kremlin e Putin são apenas miragens.

Na Rússia asiática, o que predomina é o sentimento de vazio. A cidade industrial de Baikalsk, com 14 mil habitantes, é 1 das 142 regiões na Rússia a ponto de desaparecer.

A fábrica, aberta em 1966 e comandada pelo sistema centralizado dos soviéticos, despeja resíduos no lago que concentra um quinto da água doce não congelada do mundo. Em seu auge, a BPPM empregava mais de 2 mil pessoas e produzia 100 mil toneladas de celulose por ano.

Mas o sistema faliu. Em 2013, o governo russo chegou a avaliar que precisaria de US$ 33 bilhões para modernizar parques industriais em mais de cem cidades, mas preferiu gastar US$ 50 bilhões em Sochi para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 e outros US$ 11 bilhões na Copa do Mundo.

Sem dinheiro, o resultado foi o colapso de dezenas de municípios como Baikalsk. Devastada com a falência da papeleira, a cidade perdeu sua razão de ser.

Moscou ainda causou a ira de muitos moradores da região quando tentou convencê-los a abandonarem suas casas. O governo também chegou a prometer US$ 1 bilhão para socorrer a região e a fábrica chamou a atenção de investidores chineses, mas nenhuma dessas promessas vingou.

Quando passei por ali, as ruas desertas e casas vazias eram o testamento de um sistema econômico de produção que não resistiu. A fábrica que poluiu por mais de meio século as águas de um dos maiores lagos do mundo faz sombra hoje a um povoado abandonado.

"O fim da fábrica mudou nossas vidas", contou Ludmilla, vendedora de legumes em uma feira local. Seu marido, que dependia da produção de celulose, passou a beber e a violentá-la. Os dois se separaram e, pouco tempo depois, ele morreu por consequências do alcoolismo.

Quando eu estava por encerrar a conversa, ela perguntou:

- Você já foi a Moscou?

Quando expliquei que era brasileiro e que sim, meu voo tinha tido como destino a capital russa, emendou:

- E como é Moscou?

Minha próxima parada seria a República da Buriácia, que conta com 25% de budistas entre sua população, um dos números mais elevados em toda a Rússia. Na fronteira com a Mongólia, a região de um milhão de habitantes tem visuais impressionantes.

Quem me esperava ali era o monge budista Anatoly Ayuvith. Eu havia sido informado que ele sabia prever o futuro, tinha poderes para curar e ainda conseguia prever chuva, habilidade fundamental numa região agrícola.

Também fui alertado que, se quisesse saber o futuro, teria de levar um litro de leite e uma garrafa de vodca ao monge. Achei justo.

De todas as perguntas que poderia fazer sobre meu destino, optei por algo menos específico. Afinal, ele não me conhecia. A Copa de 2018 ainda não tinha terminado na Rússia e pensei que seria interessante saber quem seria o campeão.

Num dos cantos mais remotos do imenso território, fui surpreendido por uma resposta reveladora da dimensão do ex-império. O monge nem sequer sabia que um campeonato mundial de futebol estava ocorrendo em seu país.

Ou não seria seu país?

Jamil Chade

Na foto de 2011, o correspondente do UOL na Europa Jamil Chade conversa com o último líder da União Soviética, Mikhail Gorbatchev, em Moscou. Chade vive na Suíça desde 2000. É autor de seis livros, três dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

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