FAMINTOS E SEM RUMO

A crise na fronteira com a Venezuela caiu no esquecimento e a rotina de sofrimento é o novo normal

Felipe Pereira (reportagem) e Bruno Kelly (fotos) Do TAB, em Boa Vista e Pacaraima (RR) Felipe Pereira

A noite ainda é um projeto. Está uma hora e meia distante de acontecer quando os primeiros homens aparecem.

Carregam folhas de papelão e serão imitados por centenas de outros homens que se amontoarão na fila, à medida que escurece. As luzes dos postes acenderam faz tempo quando o esforço se paga. Militares do Exército autorizam a ocupação do espaço embaixo de uma tenda montada no meio do asfalto.

A crise migratória na fronteira com a Venezuela é isso: fila para dormir na rua.

Todo começo de noite é assim em Pacaraima (RR), cidade brasileira por onde os venezuelanos entram. Com condições tão precárias, algumas famílias ignoram o caminho oficial. Ana Idrogo, 36, pagou um coiote e seguiu direto para o abrigo católico Casa de Acolhida São José.

A família ganhou comida e o filho de 5 anos experimentou o gosto de uma maçã pela primeira vez. Juan Salazar Idrogo mastigava maravilhado enquanto Ana chorava. No café, o menino interrompeu a refeição para mostrar à mãe que no meio do pão havia mortadela. A família tem certeza de que tomou a decisão certa ao vir para o Brasil.

Ana e o marido decidiram deixar Caracas, na Venezuela, quando foram à escola reclamar que somente fazer brinquedos com produtos recicláveis e desenhar a bandeira venezuelana não eram atividades suficientes para a alfabetização. Descobriram que o diretor fugira para Colômbia. Ela estava grávida e não havia serviço de pré-natal.

O casal não sabe o que será do futuro, mas considera muito difícil ser pior que o passado recente.

As cordas das bandeiras da Venezuela e do Brasil chicoteiam os mastros, no marco que separa os países. A marcha da imigração termina sob som metálico, como um cortejo fúnebre saindo da igreja. Aqui, os sinos improvisados dobram avisando aos venezuelanos que deixaram de pisar sua terra. Seus descendentes crescerão envoltos em valores estrangeiros.

São acontecimentos complexos que ficam em segundo plano quando a travessia termina. Os imigrantes chegam a Pacaraima, cidade sem prédios, rede de esgoto e fora da rota das grandes varejistas. No lugar de Lojas Americanas, Magazine Luiza, Pão de Açúcar e Carrefour, o comércio tem cara de mercado de bairro. Até o posto de gasolina é sem bandeira.

Pois calhou de, em média, 544 venezuelanos a cada dia fazerem do município uma escala na reconstrução de suas vidas. O começo da crise migratória foi um caos que ameaçava evoluir para batalha campal entre brasileiros e estrangeiros. O governo brasileiro e a ONU se mexeram e criaram uma estrutura de recepção.

Mas a capacidade diária de atendimentos varia entre 300 e 400 pessoas, bem abaixo da demanda. Via de regra, os venezuelanos só obtêm apoio para sair de Pacaraima depois de ter em mãos a documentação brasileira, o que leva duas semanas. A primeira instituição nacional que eles conhecem é a burocracia.

Enquanto os documentos não ficam prontos, os venezuelanos perambulam por Pacaraima carregando tudo que têm: malas e fé no futuro. Para não dormirem nas ruas, foram criados alojamentos no espaço em frente ao quartel do Exército. O problema é que as cerca de 2,5 mil vagas são insuficientes.

Na hora de decidir quem está livre de dormir ao relento, mulheres e crianças recebem prioridade. Os homens solitários seguem para a fila de dormir na rua. Pais de família tomam outro caminho.

Mesmo sabendo que não haverá lugar para si, Victor Mayta, 32, acompanha a mulher e os três filhos até a porta do alojamento. Quer ficar ao máximo com a família. Mas não é tempo de qualidade, muito menos feliz. É como despedida de rodoviária — aqueles minutos são uma antecipação da saudade e da ausência.

As filas em Pacaraima são lugar de privação e sofrimento. Wilson Mayta, 2, está cansado, molhado e gripado. De tanto limpar o nariz com a camiseta, a pele frágil assou. Na falta de um doce, Victor abre o tubo de pasta de dente e coloca um teco no dedo do menino. A miséria desfigura até o consolo.

Esther Cyguera, 30, assiste a tudo anestesiada. Ela viajou de Caracas até Pacaraima pegando carona em carroceria de caminhão. Fez o caminho com três filhos a seu redor e outro no ventre.

"Queremos ir para Curitiba porque ouvimos que há muito trabalho na cidade", declara.

O casal se alimenta de esperança, o mesmo combustível dos outros 500 venezuelanos na fila. Os adultos têm consciência da situação deplorável e apostam na inocência infantil para ludibriar o sofrimento das crianças. Eles desenharam jogos de amarelinhas no barro onde fazem fila. Quem está sob a proteção da ingenuidade consegue refúgio na brincadeira.

Mulheres e filhos entram no abrigo e os homens não têm mais esperança de caber embaixo da tenda. A alternativa é procurar uma marquise.

O Exército concentra os venezuelanos na frente de seu quartel para evitar violência, porque a relação entre imigrantes e moradores de Pacaraima não é amistosa. Não há marquise para todos, mas os estrangeiros acatam a orientação. Antes se expor à chuva que a socos e pontapés.

Secretário de Segurança Pública da Prefeitura de Pacaraima, Sérgio Raiol de Queiroz temeu que a cidade entrasse em convulsão em 25 de novembro de 2021, quando um venezuelano matou um brasileiro dono de bar. Foi preciso a Polícia Militar enviar reforço de Boa Vista para manter a situação sob controle. O crime reacendeu a raiva.

"Os venezuelanos vêm para cá para não passar fome. Vem o bom e o malandro. O que acontece é que o governo venezuelano abriu as cadeias. É com esses que o povo se revolta", afirma a comerciante Regina Fontenele.

A permanência dos imigrantes em Pacaraima contraria a vontade de todos. Pesquisas mostram que 78% dos venezuelanos querem sair de Roraima para trabalhar em outros estados, revela Arturo de Nieves, oficial sênior de campo da Acnur, agência da ONU para refugiados.

Até agora 64 mil venezuelanos foram encaminhados para empregos no Brasil, número insignificante diante do tamanho da demanda: 650 mil imigrantes entraram no Brasil. Apenas 10% de taxa de sucesso.

Para tentar fazer a vontade dos venezuelanos e dos habitantes de Pacaraima, o Brasil montou a Operação Acolhida. Ela conta com instituições federais, agências da ONU, entidades civis e é comandada pelo Exército. A premissa é entregar documentos para os estrangeiros o mais rápido possível e enviar todos de Pacaraima para Boa Vista. Na capital de Roraima, eles buscam empregos em outros estados.

A cadeia da carne e a construção civil são os setores que mais recrutam estrangeiros. Mas, para cada final feliz, a imigração produz nove fracassos. Como as famílias venezuelanas fazendo rondas noturnas pelos restaurantes. Os filhos vendem bala, o pai vasculha o lixo atrás de latas e a mãe pede esmola com o bebê no colo.

Mas a face mais visível da crise migratória está na frente da rodoviária de Boa Vista. Mulheres passam o dia na sombra das árvores enquanto os maridos vão atrás de bicos. Elas vendem café, bolo e pão a passageiros e taxistas, mas na essência são donas de casa sem-teto, educando as crianças no meio da rua.

Javier Romero, 52, faz volume neste acampamento improvisado. Ele passa o dia catando reciclável enquanto a mulher vende comida e cigarro na rodoviária. À noite, mudam-se para uma maloca na calçada do anel viário. Será o endereço do casal até conseguirem emprego.

Em Pacaraima tem gente vivendo ainda pior. Christian Gonzalez, 19, chama o lixão da cidade de "lojão". O caminhão de lixo que o rapaz espera durante toda a semana é o "carro da colheita". O veículo surge às 10h52. O motorista posiciona a caçamba o mais perto possível da montanha de sacos e libera a imundice.

Os seis catadores estão tão perto que parece que o lixo cairá sobre eles. À medida que os sacos vão se esparramando para os lados, eles se afastam. A operação de descarte demora coisa de um minuto. Os venezuelanos avançam para a "colheita": Christian crava as unhas e rompe o primeiro saco preto. As mãos separam cascas de banana, restos de comida e marmitex. Nada de latinhas.

A abertura dos sacos revela restos de comida e os cachorros avançam correndo, fazendo os urubus voarem amedrontados. Ambiente insalubre, cuidado sanitário quase zero. As pessoas se enfronham no monte de lixo. Os sacos ficam pela altura das coxas.

Somente dois venezuelanos usam luvas e todos têm chorume na camiseta e escorrendo pelo antebraço. Há revolta e tristeza represada naquelas seis pessoas. Maior ainda é a resignação e o entendimento do que está acontecendo. O instinto de sobrevivência reprimiu a dignidade.

Eles são a prova de que a crise migratória não acabou, apenas deixou de ser assunto.

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