Garimpo do zapzap

Como um aplicativo virou central de boatos e negócios na corrida por minérios no sertão da Bahia

“Tu é doido? Celular é fuxiqueiro, mas não mente não, moço.” Luis Paulo de Jesus, o Bigode, desbarrancou de Brasília para Sento Sé, sertão da Bahia, depois de ver lotes de ametistas brotarem na tela de seu smartphone. Já Epaminondas Nascimento, o Vaca, deixou a cidade baiana e se bandeou para a fronteira com a Bolívia ao descobrir por um “grupo de whats” que seus amigos estavam tirando 30 gramas de ouro por semana em uma lavra interditada na cidade de Pontes e Lacerda, no Mato Grosso. Novamente iludido, Vaca trocou o martelo de quebrar pedra pela mangueira a jato para lavar barranco atrás do metal dourado.

Eixo de muito comércio (lícito e ilícito) nesse Brasilzão, o aplicativo WhatsApp garante atualmente uma febre de garimpo à beira do rio São Francisco. Tudo começou com a descoberta de jazida de ametistas em abril de 2017 em Sento Sé. As pedras roxas saídas da serra da Quixaba se multiplicaram nas telas, e, ligeirinho, mais de 10 mil pessoas de todo país se embrenharam naquela caatinga.  As placas dos carros estacionados no entorno denunciam as procedências: Diadema-SP, Maringá-PR, Mineiros-GO, Marabá-PA....

As fotos compartilhadas também alimentam sites e blogs locais com rumores de novas minas por todo canto. Vídeos postados provocaram uma busca ao tesouro, por exemplo, no aterro sanitário de Sento Sé em meio a carcaças de TV, cebolas podres e sacolas plásticas ondeando ao vento nos galhos secos. Cada vez que a escavadeira da prefeitura remove a terra para cobrir o entulho, as pessoas correm atrás de alguma pista. Na localidade de Piçarrão, cavocam perto dos ventiladores gigantes da usina eólica. No povoado da Quixaba, os buracos estão no meio da rua, atrapalhando a circulação. Até nas ilhas fluviais na barragem de Sobradinho imaginam que um golpe de picareta vire um golpe de sorte.

O aplicativo também centraliza as negociações de garimpeiros, atravessadores locais e os compradores chineses e indianos, que se escondem do sol para fechar negócio da esquina sombreada da praça central da cidade. A seca de seis anos e a crise econômica empurram ainda mais o povo em busca de uma faísca, um brilho sob o céu de um azul assustador - por onde as nuvens só fazem sombra, não fazem chuva.

Munhequeira de couro, barba desenhadinha e óculos Ray-Ban espelhado. Edvaldo dos Santos é conhecido por todos ali como “o rei do garimpo”. Ele mesmo prefere se apresentar como um messias mineral. “Eu pedi pra Deus me dar um garimpo. Mas obra do Pai não é só para um só, barão. É pra todos.”

A versão popular da história é menos divina: ele caçava no mato quando avistou uma toca de tatu-peba. Meteu a mão e tirou uma ametista. Chamou o pai e um amigo, e foram juntando pedra. Tudo estava em segredo até que um dia na bodega mais próxima o dono de lá se recusou servir mais uma dose, tamanha era a bebedeira e a fama de Edvaldo de pedir fiado. Pra que: o galego virou na mesa um saco cheio de cristais.

Foi a primeira visão daquelas pedras roxas. No dia seguinte, a vila da Quixaba ficou vazia. As cebolas, os melões e as cabras abandonados na roça. No outro dia, foi a vez da sede de Sento Sé virar cidade-fantasma. As lojas e as repartições às moscas, sem funcionários e clientes. Até vereador, ex-prefeito e pastor largaram os afazeres para abrir buraco na serra.  

A notícia correu pela internet e pela TV, atraindo curiosos de todo mapa. Muita gente chegou de moto, com pá e enxada na garupa. Outros ficaram atolados na areia macia da estrada vindo de caminhão pau-de-arara. E seguiram a pé.

Inventou-se outro caminho. E inventou-se uma cidade. Em dois meses, se ergueu com paus e lonas a Vila de São Lourenço. Apareceram as ruas de comércio - uma delas contando com o típico “bar das quengas”. Alguns quarteirões já foram batizados em placas de papelão como “condominhos”, projetando a fortuna futura dos moradores. Reparando bem parece mais um acampamento, com cuecas secando nos tocos, banho de caneca, fogão de pedra e lenha e gente dormindo em carros e barracas.

Além do valor em dinheiro, o mineral reúne significados místicos. Não por nada os garimpeiros também são cheios de intuições, premonições e pactos com Deus antes de tropeçar com a pedra. E com Marleide Maria de Jesus não é que foi assim mesmo? Ela rodeava um morro quando caiu e bateu a canela na pedra. Quando olhou o que era, viu uma erupção de cristais rosas e, mais embaixo, roxos. Acostumada a arrancar cebolas da terra, Marleide começou a puxar com a enxada sua lavoura de pedras. “Jesus sabe que eu tenho o coração bom, sabe que eu iria distribuir o que encontrasse, e me deu essa bênção enterrada.

Até o início do ano, a garimpeira trabalhava em fazendas em condições similares à escravidão, dormindo ao relento para colher cedo. Hoje está com a vida mais que remediada, negociando direto com os exportadores. Com o garimpo não legalizado, ela não paga imposto. Em compensação, distribui os “peões roxos” para quem não conseguiu nada e não tem como voltar para casa. “Já dei mais de R$ 150 mil em pedra presse povo. Aqui no meu barraco todo mundo tem comida e durmida garantida. As pessoas me abraçam um tanto que sinto que meus ossos vão quebrar.” E explica a lógica de tanta caridade: “Você tem que ajudar. Se não, a pedra se esconde.

Hoje no Brasil, há mais de 2.100 permissões de lavra, enquanto cerca de 17.500 outras estão buscando a legalização, como a de Sento Sé. Já os garimpos ilegais ficam fora dessa contabilidade do Ministério das Minas e Energia e surgem a todo momento em rios amazônicos, serras nordestinas e reservas indígenas.

Pensa num sujeito que resume a vida garimpeira. Jurandir Cerqueira, vulgo Solteiro, esteve aos 19 anos em Serra Pelada, o formigueiro humano no Pará que virou símbolo da atividade no Brasil e no mundo desde os anos 1980. Ele escapou do massacre em que os índios Cinta Larga vitimaram 29 garimpeiros em 2004 em Rondônia. Foi expulso da Bolívia e da Guiana Francesa por estar em jazidas ilegais. Estava na mina de ouro na cidade de Pontes e Lacerda, Mato Grosso, quando a polícia expulsou mais de 7.000 garimpeiros da área em 2015.

Essa febre vem de família. Aos sete anos, já ajudava os parentes nas minas da Cabeluda e do Mimoso, não muito longe de onde está tirando a sorte agora. “A pedra anda. Ela segue uma veia dentro da terra. E quem tem a malícia do garimpeiro conhece o caminho dela. Mas, como toda boa história de garimpo, a floração preciosa surgiu para ele em uma profecia. “Não foi puro impulso. Foi um sonho que me deram quando dormi embaixo desse mandacaru. A pessoa pediu preu arrancar um pé de grama que tinha ali. Fiz, e as pedras saíram junto com a raiz.”

Solteiro vendeu a moto e 22 hectares em que plantava abacaxi e que “a seca devorou” para investir R$ 25 mil em equipamento e estrutura para esburacar aquela serra. Boa parte dos roceiros de Sento Sé são retirantes que se instalaram lá depois que as minas anteriores fecharam. Mas a alma garimpeira nunca os abandonou, sempre descambando para o mato para caçar pedra. “Se as madames usam essas belezas na orelha e no pescoço é porque a gente foi buscar do meio da terra.” De noitinha, longe do calor do sol e dos olhos dos outros, Solteiro tira da cova fria as pedras boas. Pra não estragar suas “roxinhas”, diz ele. Cada quilo de ametista pode variar de R$ 60 a R$ 200, dependendo da coloração, limpidez e tamanho das pedras. Solteiro já tirou centenas delas e pode se considerar um homem rico, como seus sócios.

Um talco envolve os leitos de ametistas no subsolo. Quando o garimpeiro acha esse pó, é anunciação: a pedra já vem. No entorno dos buracos que estão produzindo, uma praia branca se espalha. Lá as pessoas se sentam ou deitam sob o sol alisando a superfície atrás de pedrinhas coloridas. São as faíscas. E quem remexe o pó de sílica (altamente tóxico para os pulmões) são conhecidos como os faiscadores. “Quem não deu sorte no seu corte vem faiscar no dos outros para conseguir fazer a feira. Tem dia que consigo R$ 20 ou R$ 30”, explica José Rodrigo, pedreiro de Brasília que tenta a vida de garimpeiro pela primeira vez na vida. “Eu achei que era dinheiro mole, mas aqui é a vida é dura.

Quem não viu futuro nas pedras ou toma o rumo de casa ou sobrevive faiscando, tomando garapa (água com açúcar) e caçando os mocós, roedores que são única fonte fácil de proteína naquela selva esturricada. A toca dos mocós fica entre as rochas do alto das serras, e os animais saem no início da noite, bem a hora que a fome bate nos garimpeiros. Uma vistoria do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) avisou que quem continuar a caça terá uma multa de R$ 5.000. A mesma pena será aplicada a quem mutilar a caatinga. As árvores amputadas viram lenha, cerca, viga e teto.

Algumas cascas vão parar nas garrafas de pinga, como as de angico, quebra-faca ou umburana, que foi muito usada quando houve um surto de diarreia por conta da montoeira de lixo e moscas no garimpo. “Toma uma branquinha, patrão. É pra subir mais ligeiro”, oferece o dono da vendinha “Shopping do Garimpo”, estrategicamente montada no meio da subida. Muitos, só de chinelo, escalam a serra levando motores, tanques com 20 litros de óleo diesel e tábuas de madeira para os buracos no topo.

As pessoas ali se mimetizam à paisagem retorcida e ressecada do sertão baiano e parecem tão esqueléticas como a vegetação. Tem militar aposentado, empresário falido, universitário que trancou a faculdade e até pastor que não se contentou com o dízimo. “Eu não quero enricar. Eu já sou rico porque tenho Deus. Só quero ampliar nosso templo”, diz o missionário Fernando Acioli, da igreja pentecostal Deus Que Liberta. “Esse Nordeste é 200 mil vezes mais rico que o Sul. Aqui tem diamante, tem ouuuro”, alonga a palavra para dar ênfase.

Durante a entrevista se escuta um estrondo por perto. A terra treme. Um poeirão se levanta de uma mina próxima. “Rapaz, sem pólvora não tem futuro não. Como faz para quebrar uma pedra de mais de um metro de fundura? Só no tiro”, sentencia o religioso. Depois de vários casos de ferimentos com as explosões, em agosto último dois trabalhadores morreram porque voltaram para um buraco onde parte da pólvora ainda não tinha sido detonada. A pedra educa e castiga.

“A gente está tentando deixar esse garimpo aberto, mas, se vocês usarem dinamite, a Polícia Federal fecha tudo, e nós não podemos fazer nada”, puxou a orelha dos garimpeiros em audiência o superintendente na Bahia do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), Raimundo Sobreira, pedindo padrões de segurança e bom senso.

Além das bombas, britadeiras e motores, o que garante a zuada no garimpo é o carro de som anunciando produtos e serviços para os novos endinheirados. Até uma “Ametista Fest” foi promovida em altíssimo volume, tendo como principal atração o cantor Júlio Nascimento, “o rei do brega”, com uma música que fala: “Quando eu cheguei do garimpo/Procurei a minha mulher/ Ela tinha saido com outro/E o cara eu não sei quem é/ Eu garimpei muito ouro/Mas o meu tesouro já tinha dado no pé.”

Bigode, que fala na abertura desta história, reaparece agora para dar um fecho de ouro (nada mais apropriado para um texto sobre garimpo). Bom, no fim das contas, ele viu mais ametistas no celular e na mão dos outros do que nas suas próprias, mas não se arrepende nadica das três décadas indo de um garimpo para o outro. “Garimpeiro é bicho solto, bicho curioso. Não tem patrão nem carteira assinada. Você busca uma coisa e acha outra.” Ele sabe que o garimpo é como a vida. Para uns, é uma miragem. Para outros, uma charada. A sorte fica em uma fresta no meio da fria resistência da pedra. E os homens são apenas animaizinhos arranhando a crosta terrestre.

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