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Gilberto Gil é manso, mas fala sobre o que o tira do sério: 'combato qualquer tentativa de retorno à ditadura'

Tiago Dias Do TAB Arte UOL

A existência humana é um mistério inesgotável na obra do compositor Gilberto Gil. Talvez por isso ele diz não ter sido tomado por pânico ou surpresa com a chegada da pandemia de Covid-19. Em quarentena, sua atenção está focada em acompanhar os processos de resistência da sociedade e em desaguar canções e visões no mundo digital -- algo natural para o velho baiano, que desde os anos 1960 se diz um apologista da tecnologia.

Após uma série de lives, ele toca com o trio Gilsons, formado por filho e netos, na edição online do Coala Festival, no próximo sábado (12). Mas nem por isso acredita no "novo normal". "A gente sabe que muita coisa vai escapar a essa normalidade", diz. "É o tempo-rei no seu reinado absoluto permanente, mas ao mesmo tempo abrindo diálogos variados com todos."

Entre reflexões sobre pandemia, cultura e Brasil, ele diz ser um sujeito de aura mansa -- as coisas que o tiram do sério é que continuam as mesmas, como o flerte de algumas pessoas com o período ditatorial brasileiro, regime que o levou à prisão. "Me dediquei a combater a ditadura naquele instante, e me dedico a combater qualquer tentativa de retorno à excepcionalidade brutalista da ditadura", diz, com veemência.

Mas Gil lembra que o Brasil da desigualdade, nas versões Carnaval e fome total, foi erguido antes do golpe de 1964. "Tem muito entulho autoritário que não é daquele período ditatorial, vem de outros momentos da vida brasileira -- essa coisa das elites se associando sempre aos detentores do poder violento. Eu sou atento a tudo isso."

Aos 78 anos, porém, diz continuar andar com fé. "Acredito na vocação extraordinária do Brasil, pelo modo como a nação é formada", observa. "Tudo isso faz do Brasil um laboratório território de experiências auspiciosas para a humanidade." Gilberto Gil conversou com TAB em vídeo. Veja e leia a seguir:

Arte UOL

TAB: Durante a quarentena você fez lives e, pelas redes, a gente vê você gravando, lendo, próximo da família, filhos e netos -- que inclusive vão tocar com você no Coala Festival.
Gilberto Gil
: Alguns da família estarão comigo no Coala. São chamados de "Os Gilsons".

TAB: Mas, no geral, o que esse breque te permitiu fazer?
GG: O que mais fiz foi ler e ver televisão, noticiários, jornais televisivos. Li uns dez livros, variados, livros científicos sobre física, sobre química, sobre vários campos da ciência, filosóficos, livros sobre momentos históricos importantes relevantes, como a época do fascismo e do nazismo na Alemanha. Um livro sobre biocentrismo, teoria de um grande cientista norte-americano [Robert Lanza].

TAB: Assuntos que sempre estiveram na sua música.
GG: Sim, sempre me interessaram muito. Um livro interessantíssimo é o de um grande físico, Richard Faynman, um dos pais da bomba atômica, Prêmio Nobel de de física pelas pesquisas com relação à física quântica. O disco "Quanta" [de 1995] era relativo a isso. A leitura tem esse aspecto, de lhe conectar com fatias importantes do pensamento da humanidade e também permitir a introspecção profunda. Exige que você se volte para as suas próprias fontes fornecedoras de cognição. E vi notícias, notícias para saber da pandemia, de como andávamos nós, sociedade humana, reagindo a tudo isso, os processos de resistência.

TAB: Isso te preocupou mais?
GG: Me preocupou muito no início, porque o vírus era muito novo. Não se sabia a medida das ameaças, até quanto ele era intensa e extensamente ameaçador. Tínhamos de acompanhar a questão da mortalidade, os óbitos no mundo inteiro. Primeiro, aquela situação dramática na Itália, na França, depois nos Estados Unidos, depois aqui no Brasil, e a dificuldade de encontrar medicamentos adequados, a busca acelerada da vacina. Tudo isso eram preocupações maiores que eu tive, e evidentemente, os cuidados comigo, os cuidados com os mais próximos, com a família. Enfim, os protocolos. E o isolamento, que exigia também uma condição emocional e psicológica muito atípica, não é? Em relação ao nosso cotidiano até ali.

TAB: Seu cancioneiro é muito cheio de reflexões sobre a existência, sobre a finitude, a vida com o ministério, a fé como o mistério. A pandemia te balançou? O que te trouxe de reflexões?
GG: Nesse sentido de me entender e nos entender a nós todos como finitos e sujeitos ao sofrimento e à extinção -- talvez, o dado mais preocupante para nós, viventes --, eu já tinha, como você mesmo disse, uma experiência, um elenco de narrativas vindas do meu campo poético e da minha música. Não fui tomado de grande pânico e grande surpresa com relação a isso. A ameaça não era bem essa. O que me comovia mais era o sofrimento humano geral, generalizado. O fato de a coisa ter atingido principalmente os mais velhos. Os idosos fragilizados já pela vida, pelo desaparecimento do fluxo energético mais intenso na vida. O início da pandemia foi um pandemônio existencial muito forte para nós todos.

TAB: Lembrei de "Feliz por um Triz".
GG: É, "Sou feliz por um triz, mal escapo à fome, mal escapo aos tiros, mal escapo aos homens, mal escapo ao vírus"...

TAB: Já está tudo aí.
GG: Já estava tudo aí. É o centro da reflexão do disco "Raça Humana". A raça humana é uma semana do trabalho de Deus (risos).

TAB: Falam muito do novo normal. Isso existe?
GG: É um elemento compensatório utilizado pelas pessoas para afirmarem seu desejo profundo de que as coisas voltem a ser minimamente como eram antes. É um desejo de normalidade, mas a gente sabe que muita coisa vai escapar, vai sair do plano da normalidade para exigências novas. A pandemia vai contratando uma série de outras coisas, possibilidades no sentido mais benigno do termo, mas também exigências no sentido mais negativo.

TAB: Grandes eventos da humanidade como a pandemia escancaram desigualdades. Que pensamento é necessário para guiar o Brasil pós-pandemia?
GG: Prestar atenção na nossa agenda histórica de questões, na desigualdade profunda, nas assimetrias sociais e econômicas. Que a gente preste mais atenção nisso tudo no plano individual, no plano das pequenas coletividades, no plano das grandes coletividades, no plano de relações do Estado. A desigualdade foi a questão que mais apareceu, né? Os muito pobres que não tinham condições mínimas de atender aos protocolos de lavar as mãos, não tinham água, nem esgoto.

TAB: A tecnologia, que sempre esteve presente em seus trabalhos, já atropela com uma rapidez maluca as dinâmicas próprias das redes sociais. Você continua acompanhando isso?
GG: Sou um leitor atento a todo esse campo das novas tecnologias, ainda que não seja um utilizador intensivo. Mas eu faço uma leitura atenta e até certo ponto faço uma apologia dessas novas tecnologias. Coloco-as como se elas fossem realmente muito bem-vindas, trato-as de uma forma inclusiva. Evito uma rejeição a elas, ainda que tenha também críticas, porque toda solução é um novo problema (risos). Mas sou entusiasta da possibilidade de convívio com esses novos modos instigantes de ver os números e as palavras. Às vezes sou nostálgico, como em "Lunik 9" [de 1967], eu era um pouco ressentido da possibilidade de que as noites de luar desaparecessem (risos).

TAB: As redes trazem novas dinâmicas. Você já ouviu falar sobre cancelamento? O que acha?
GG: São os jogos infantis da internet, as pessoas na internet descobrindo formas de brincar, de ressuscitar os pequenos esportes da infância. Não é? É isso. A internet também dá isso, restaura um campo infanto-juvenil na vida humana de uma forma muito intensa, então é regressivo nesse sentido também. A internet também é regressiva.

TAB: Quando houve a polêmica com o vídeo gravado pelo ex-secretário especial de Cultura Roberto Alvim, pronunciamento que trazia referências nazistas, um vídeo seu, na ONU, voltou a circular, de quando você foi ministro da Cultura, tocando "Toda Menina Baiana"...
GG: Sim, no plenário. Não vi que estava circulando.

TAB: Que experiência o ministério te trouxe?
GG: Era importante uma atualização na discussão sobre cultura, do ponto de vista institucional, [entender a] responsabilidade dos estados, dos governos em relação a isso. Esse foi um dos aspectos importantes que a gente trouxe, entender a economia criativa, do que ela era composta. Procuramos fomentar essa discussão no campo do próprio ministério e na extensão do ministério com a sociedade. Também houve a reflexão sobre o que é patrimônio cultural, a noção de patrimônio material, vis-a-vis o patrimônio imaterial. Entender livro como patrimônio, literatura como patrimônio, a língua, as linguagens populares como patrimônio, o cordel, o candomblé como patrimônio. Isso tudo foi um um trabalho a que a gente se dedicou com muita energia, porque sabíamos a importância de a sociedade toda se apropriar dessas formas, dessas leituras variadas sobre cultura.

TAB: Você tem uma aura pacífica e isso está muito enraizado também na sua música. Mas há momentos que parecem que te tiram do sério, como em "É", em que você diz que "a violência, a injustiça, a traição, ainda podem para perturbar meu coração?"
GG: "Mas já não podem abalar a minha fé, porque eu sou e Deus é".

TAB: Você já contou que "Expresso 2222" foi feita depois de uma viagem de ácido, mas estamos em 2020, o "pra depois do ano 2000" já passou. Foi um pouco como você imaginava?
GG: Os expansores de consciência, como o ácido, ainda que pudessem ameaçar, eram expansores muito importantes para esse levar da consciência para o momento mais adiante da vida, essa "estação final do percurso vida" (risos), essa estação final que não chega nunca, esse final que, nas nossas expectativas, vai ser sempre adiado. É isso. Eu continuo o mesmo. A verdade é essa. Não mudei nada (risos).

TAB: Caetano está em um documentário recém-lançado sobre prisão durante a ditadura, "Narciso em Férias". Vocês foram presos juntos, embora tenham ficado em celas separadas. Ele disse que isso teve um impacto muito forte na vida dele. E vários relatos seus dão conta de algo que só poderia acontecer no Brasil: um dia rasparam seu cabelo; no outro, gentilmente, um general te emprestou um violão pra tocar.
GG: Foi um sargento. Mas com permissão dada por um capitão.

TAB: Há grupos flertando com essa ideia novamente. Como vê isso hoje?
GG: Minha posição é muito simples. Sou radicalmente contra a ideia de retorno a uma situação daquele tipo. Me dediquei a combater a ditadura naquele naquele instante, e me dedico a combater qualquer tentativa de retorno à excepcionalidade brutalista da ditadura. Minha aura é uma aura de mansidão. Sou contra equipar o Estado brasileiro com arma, tanque, instrumento de tortura. Ao mesmo tempo, faço uma leitura benigna daquilo que restou da ditadura. Tem muito entulho autoritário que não é daquele período, vem de outros períodos -- essa coisa de as elites se associarem sempre, em momentos variados da história, aos detentores desse poder violento. Sou atento a tudo isso e continuo chamando a atenção da sociedade brasileira para todos esses vieses, mas, ao mesmo tempo, sou manso. Acredito na responsabilidade de cada um de nós de amenizar as dificuldades da vida. Eu sou assim.

TAB: Você continua sendo positivo sobre o Brasil? Como continuar andando com fé?
GG: Sim. Acredito na vocação extraordinária do Brasil, pelo modo como a nação é formada, por tudo isso, pela língua portuguesa, pelas matrizes africanas, pela particularidade do aspecto americano do Brasil, no aspecto da inserção do Brasil nas Américas. Por tudo isso, pela mistura de raças. Temos a importante herança indígena. O futuro que é reservado ao país é um futuro auspicioso para a humanidade, no sentido geral da humanidade. A humanidade pode contar com o Brasil como um território de experiências novas, no sentido sociológico, antropológico.

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