A VILA DO ESTIGMA

Os últimos dias do Hospital Colônia Itapuã, erguido para isolar hansenianos de seus familiares, em Viamão (RS)

Luciano Nagel (texto) e Tiago Coelho (fotos) Colaboração para o TAB, de Viamão (RS)

Aristides tinha virado na cama e sentiu algo úmido no braço. Era uma bolha e não era pequena. Sua mulher também espiou a ferida. Achou estranho, mas não cogitou nada grave. Mesmo com inchaço, vermelhidão e dor, o homem tomou uma xícara de café e saiu para trabalhar. Terezinha ficou em casa cuidando dos cinco filhos.

Na prefeitura de São Borja (RS), onde batia ponto, o rapaz de 31 anos chamou atenção do chefe, que o encaminhou ao posto de saúde. Diante da gravidade do quadro, Aristides Amaral viajou 300 km para ser atendido no hospital de Santa Maria. Passou por exames e foi diagnosticado com hanseníase — antes conhecida como lepra. A vida virou de ponta cabeça.

Amaral foi internado às pressas no HCI (Hospital Colônia Itapuã), em Viamão (RS), a 60 quilômetros de Porto Alegre, para onde eram levados os pacientes de hanseníase do estado. Ficaria isolado e em tratamento.

A internação compulsória de hansenianos vigorou na forma de lei entre 1949 e 1986. Quando Amaral foi diagnosticado, em 1974, ainda se isolavam os doentes por receio de contaminação. Entretanto, já se sabe que o contágio se dá por contato longo com gotículas de saliva e secreções nasais. A doença, causada por uma bactéria, é tratada com antibióticos e sem necessidade de isolamento.

Terezinha só soube da notícia por meio de um colega de trabalho do marido. Passou dois meses em completa angústia, sem receber notícias, até que certo dia ele mesmo apareceu para rever a família — de desespero, fugira do HCI. Foram poucos dias. Com medo de contaminar os filhos e a mulher, Aristides voltou a Viamão para retomar o tratamento. Chegou a ficar preso alguns dias por desobediência.

Quando os vizinhos descobriram a razão do sumiço e do reaparecimento do pai de família, foi um escândalo. "Não podia matricular meus filhos na escola porque todos diziam que eles eram 'filhos de leproso'. As pessoas tinham medo de se contagiar", afirma Terezinha.

Viver longe do marido foi tão doloroso, e o preconceito em São Borja era tão grande, que, no início dos anos 1980, a dona de casa pegou os filhos e foi morar clandestinamente no HCI, no meio dos doentes. Terezinha de Mattos Amaral ainda mora lá com dois filhos.

Isolado de tudo, o HCI foi inaugurado em maio de 1940 durante o governo Getúlio Vargas (1930-1945). Chamá-lo de hospital é pouco. Itapuã é uma minicidade de 1.253 hectares — dá quase o tamanho do bairro de Itaquera, em São Paulo. A autoridade máxima era exercida por um "prefeito", escolhido pelos hansenianos e aprovado pela diretoria do hospital. Ao longo de 82 anos, a instituição chegou a receber mais de 1.500 internos.

O HCI era dividido em três zonas. Na área externa, onde circulavam apenas os funcionários, ficava a casa do médico chefe, uma horta e o estábulo para as vacas leiteiras. Na intermediária havia a administração, uma padaria e a casa das irmãs franciscanas, onde hoje fica um memorial.

A zona interna, chamada de "área suja", era reservada ao hospital dos hansenianos. Contemplava ainda um internato para os meninos e outro para as meninas. Roupas eram lavadas, esterilizadas e passadas pelas freiras. Até hoje permanecem de pé duas igrejas, uma católica e outra luterana, além de 40 casas geminadas. No meio da mata, há um cemitério com dezenas de sepulturas. Cassino, praça e quadras esportivas também integravam a colônia.

Hoje, vivem no local 41 pacientes (seis ex-hansenianos e 35 pacientes de saúde mental). Entre os ex-hansenianos, somente um vive na ala residencial do HCI — uma senhora com mais de 70 anos que não quis dar entrevista. Os outros cinco, com idades entre 70 e 100 anos, estão acamados na ala da enfermaria. Pacientes psiquiátricos começaram a chegar a partir dos anos 1970, egressos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre.

A reportagem do TAB circulou pelas dependências do HCI. As casas estão deterioradas, marcadas pelo abandono, resultado da ação do tempo e da falta de manutenção. As ruas esburacadas foram cobertas por terra e vegetação rasteira.

As duas igrejas estão em ruínas, assim como o prédio onde funcionava o cassino. A única construção bem cuidada é o memorial, que reúne um acervo de objetos da época, como equipamentos cirúrgicos e de laboratório, documentos e registros.

A maioria dos pacientes saiu depois de curada, mas ninguém é obrigado a deixar a colônia. No entanto, o movimento pela desinstitucionalização ficou forte e deve mudar essa história. "Os ex-pacientes que vivem sozinhos ali dentro irão para moradias individuais. Os que ainda estão em tratamento devem ser levados a residências terapêuticas. A ideia é que o processo se encerre no final de 2022", explicou a secretária-adjunta da Saúde do estado, Ana Costa.

Igor Bernardes (PL), presidente da câmara dos vereadores de Viamão, afirmou que em setembro de 2021 foi aprovado um projeto de lei que autoriza o convênio entre município e governo estadual para transferir todos. "Não estamos falando de uma história bonita. Se seguirmos os exemplos de outros hospitais-colônia país afora, o caminho é, sim, o fechamento."

Artur Custódio, presidente nacional do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), contudo, afirma que será um erro desativar o HCI sem aproveitar a estrutura para o SUS ou mantê-lo como patrimônio histórico.

"Abracei e dormi com meu marido por décadas e nunca fui contaminada pela doença, tampouco meus filhos. Vim para cá por amor e quero ficar aqui até o fim", afirmou Terezinha de Mattos Amaral.

Ela lutou contra a rejeição social. A entrada de familiares saudáveis era proibida para evitar o contágio, mas ela e os filhos conseguiram driblar a segurança e se esconder no cassino por dois meses. Saíam de noite para encontrar Aristides e passear pelas ruas.

Aristides curou-se no HCI, mas quis ficar ali com a família. Faleceu em 2002, aos 60 anos, vítima de câncer.

O Hospital Colônia Itapuã não era o único lugar da dor. Enquanto hansenianos eram removidos à força de suas casas para serem internados, seus filhos eram levados para o Amparo Santa Cruz, no bairro Belém Velho, em Porto Alegre. A segregação ocorreu entre 1930 e 1986. Muitas dessas crianças foram levadas à adoção. Segundo o Morhan, mais de 40 mil recém-nascidos brasileiros foram parar nesses "educandários".

Os gaúchos Ernesto Barreto de Almeida, 55, e Cláudio Jacó Hanzel, 62, foram arrancados dos braços de seus pais logo após nascerem, dentro do HCI. Filhos de hansenianos, esses homens alegam sofrer preconceito até hoje.

Almeida guarda na memória a lembrança da primeira visita à colônia. "Eu tinha cinco anos. As crianças do Amparo embarcavam em um ônibus com as freiras. Ficávamos 15 minutos em frente ao pórtico que separava as famílias. Não podíamos ultrapassar a barreira, nem abraçá-los. Eu não entendia o que estava acontecendo. Só chorava", afirmou à reportagem, emocionado. O pai, Alfredo Camargo de Almeida, faleceu aos 53 anos, vítima de infarto. A mãe, Alzira Barreto da Cruz, diabética, morreu aos 74 anos.

Hanzel, por sua vez, foi adotado por uma família ainda bebê. "Não lembro quem eram, mas quando eu estava com quatro anos, eles desistiram de mim e fizeram meu registro de nascimento em Iraí, na divisa com Santa Catarina. Não me recordo como cheguei ao Amparo Santa Cruz, pois bloqueei esse período da memória'', contou.

Ele tentou fugir ao menos sete vezes da instituição e passou por outras casas de acolhimento. "Normal é um filho estar com seus pais. Eu não tive essa oportunidade. Me levavam do Amparo para Itapuã para vê-los, mas era uma multidão de gente do outro lado do muro, todos chorando, e eu não sabia quem era quem. Apenas abanava'', contou. Anos mais tarde é que conseguiu conhecê-los.

O HCI destruía laços familiares, mas construía outros. Eva Pereira Nunes, 77, foi diagnosticada com hanseníase aos 12 anos de idade. Apresentava dormência na pele e, se queimasse o braço, não sentia nada.

A análise dos exames foi feita no Hospital Santa Casa de Misericórdia em Porto Alegre e, após o resultado positivo de hanseníase, Eva ficou isolada na instituição. Dias depois, foi levada dentro de uma camionete ao HCI em Viamão.

"Fiquei assustada quando desci do veículo. A primeira pessoa que vi foi um senhor aleijado, sem as mãos. Pensei: 'para onde me trouxeram? Nunca vi essa gente'", exclamou a ex-paciente.

Após o desembarque, Nunes foi recebida por uma freira e encaminhada para o internato feminino. "Até então eu não sabia o que tinha, ninguém me falava nada, apenas me davam sulfona para engolir. Só depois de alguns anos é que fui saber e entender que estava com hanseníase", afirmou.

Foi nas dependências do HCI que Eva conheceu Darci Tomé Nunes. Aos 22 anos, o rapaz fora diagnosticado com hanseníase e conduzido às pressas à institutição. Ali, começaram a namorar e se casaram em julho de 1963.

Para evitar a contaminação intradoentes e entre pacientes e visitantes, o cuidado era rigoroso. Os objetos que chegavam eram esterilizados em uma estufa para depois serem entregues. Seguranças mantinham pacientes e familiares distantes entre si. Eva Nunes morou 40 anos no HCI e atualmente vive sob os cuidados de uma família de amigos. Seu lar, hoje, é um pequeno quarto na Vila Itapuã.

Um dos internos mais longevos do HCI é Sadi Roveda, 84, que viveu mais de seis décadas confinado. Os primeiros sintomas da hanseníase surgiram quando ele tinha 20 anos.

"Sair de casa não foi fácil, mas aos poucos fui me acostumando. No início morei no pavilhão e dividia quarto com mais três doentes. Era humilhante aquele muro que nos separava das outras pessoas", recordou-se, entristecido. Embora esteja curado, ele ainda carrega sequelas da doença: tem os dedos das mãos tortos e pisa com dificuldade.

Roveda foi testemunha das violências que as mulheres grávidas viveram dentro do hospital. Depois do parto, tinham seus bebês levados pelos médicos e enviados ao Amparo Santa Cruz. "Eu tinha um fusquinha e levava os pais para visitar os filhos no educandário em Porto Alegre", lembrou.

O ex-paciente contou que conheceu sua companheira, a catarinense Alda Roveda, 83, no refeitório da colônia. Para encantar a jovem de 17 anos, Sadi mandou colocar uma música para tocar nos alto-falantes do leprosário. O canto escolhido, um clássico de Anísio Silva ("Tu Somente Tu"), agradou a moça. Namoraram três anos e se casaram no Hospital Colônia.

Em junho de 2021, o casal sofreu um assalto dentro do HCI, na casa onde moram. Três homens armados invadiram a residência e roubaram R$ 20 mil dos idosos. Depois do desespero, decidiram deixar a Colônia. "Foi uma noite de terror", contou o idoso, ainda traumatizado. Sadi e Alda Roveda, ex-hansenianos, vivem hoje numa casa alugada na Vila Itapuã, em Viamão.

Sentem saudade agridoce do Hospital Colônia — síntese de angústia e da dor vividas ali por milhares de famílias. Até hoje, os "órfãos de pais vivos", crianças que na época foram separadas dos pais hansenianos, lutam por indenização.

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