O Exército ignorou alertas do Ibama sobre a caça ao javali ser usada para fraudar a compra e a movimentação de armas de fogo no Brasil. Isso acontece mesmo em regiões onde o animal, o único que pode ser caçado no país, nem sequer existe em vida livre.

O UOL apurou que a fraude foi possível graças a brechas nos protocolos de licenças do Ibama, encarregado de autorizar e monitorar a caça, e do Exército, responsável pela concessão e controle de armas dos chamados CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores).

A reportagem conversou com servidores do Ibama que também integram o grupo de trabalho da nova edição do Plano Javali, que consolida a estratégia do governo federal sobre o tema.

O relatório será publicado em março e deve citar as fraudes processuais. A caça ao javali e ao javaporco — um híbrido que surgiu do cruzamento com porcos nativos —, autorizada em 2013, será mantida.

Além do depoimento desses agentes, cujas identidades serão preservadas, dados obtidos pelo UOL mostram que, em alguns estados, entre 2019 e 2023, a emissão do número de certificados para caça foi muito maior do que a quantidade de caçadas.

Em 2022, por exemplo, o Ibama detectou que 111.454 supostos caçadores — 58% dos cadastros ativos no país na época — puderam comprar armas e obter a Guia de Tráfego, mas nunca registraram participação em nenhuma caçada.

Sem o registro, é impossível saber ao certo por que os acessos foram solicitados.

OS ALERTAS DO IBAMA

Essa inconsistência começou a ser identificada pelo órgão em 2019. Por duas vezes, a autarquia acionou formalmente o Exército para explicar o procedimento da caça legal, mas afirma nunca ter tido retorno ou ter visto mudanças no protocolo.

O terceiro alerta foi feito pelo ofício 02010.000213/2023-42, ao qual o UOL teve acesso. Enviado em 20 de abril de 2023, o Ibama classifica como "fraudulento" o uso do cadastro e pede providências para "mitigar as fraudes já identificadas".

Os dois ofícios anteriores foram enviados ainda em 2020, nos dias 7 e 20 de agosto. Ambos foram assinados pelo então superintendente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, e endereçados ao general de brigada Alexandre de Almeida Porto, diretor de fiscalização de produtos controlados do Exército.

Procurado pelo UOL por telefone, em 19 de fevereiro, o general pediu que os documentos fossem enviados por WhatsApp. A reportagem, então, enviou os ofícios. Porto respondeu, por mensagem, que as "informações institucionais serão prestadas de melhor forma" pela própria assessoria de imprensa do Exército.

DOCUMENTOS 'NÃO IDENTIFICADOS'

Questionado pelo UOL, o Exército respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que os "supostos documentos provenientes do Ibama, e que teriam sido encaminhados para o Exército, não foram identificados" em seus arquivos.

A reportagem, então, enviou uma cópia do ofício — cujo registro consta nos sistemas do Ibama.

Em tréplica, a corporação ratifica não ter recebido "um documento formal", mas que aperfeiçoou procedimentos para o cadastro de caçadores de acordo em dezembro de 2023, com o decreto nº 11.615, no qual passou a pedir autorizações do Ibama para validar o transporte de armas de fogo.

O decreto em questão reviu o Estatuto do Desarmamento, que restringiu o acesso a armas e munições dos CACs e aumentou exigências para a prática da caça legal.

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'CARTEIRINHA DE CAÇADOR'

Servidores do Ibama ouvidos pelo UOL contam que o registro digital concedido pelo órgão passou a ser chamado de "carteirinha de caçador" e foi usado como salvo-conduto para transporte de armas.

Esses agentes afirmam ter havido pedidos de registro para caça de javalis em estados onde nem sequer há presença confirmada da espécie em vida livre, particularmente na região Norte.

No Amazonas, por exemplo, 20 cadastros foram feitos junto ao Ibama para a aquisição de armas, mas houve apenas um registro de abate de javali, no início de 2023.

No Amapá, 16 certificados de caça foram emitidos, mas só uma caçada foi registrada em 2022, sem nenhum animal abatido. No mesmo estado, um único abate teria sido registrado em março de 2023.

Os servidores dizem que tais registros não são confiáveis e que não há certeza da presença de javalis livres nos dois estados. Como já ocorreu em outros estados, os avistamentos podem ter acontecido por soltura artificial de animais ou nunca terem ocorrido, já que as informações são repassadas pelos próprios caçadores de forma autodeclarada e online.

NINGUÉM SABE, TODO MUNDO VIU

Dentro da política pró-armas do governo Jair Bolsonaro (2019-2022), cresceu o protagonismo da terceira letra da sigla CAC — a de "caçador".

Um decreto de 2019 permitiu que um caçador pudesse adquirir até 30 armas, sendo 15 de uso restrito. E ter acesso, por ano, a 75 mil munições para armas permitidas e 15 mil de uso restrito.

Armas como as pistolas 9 milímetros, .40 e .45 foram liberadas para cidadãos comuns.

Naquele mesmo ano, o processo foi desburocratizado com a introdução do Simaf, plataforma online de registros e licenças, que agilizou o processo para a caça legal.

O sistema foi anunciado na gestão do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles — que, quando candidato a deputado federal por São Paulo, tinha como um de seus slogans ser "contra a praga do javali".

Os decretos de Bolsonaro também permitiram que caçadores fossem autorizados a transportar armas com menos burocracia, bastando apresentar o registro, a Guia de Tráfego e um certificado de regularidade do Ibama, com validade de 90 dias.

Na prática, o procedimento não obrigava a seguir a etapa em que o Ibama, de fato, era informado e autorizava a caça, o que criou a brecha para facilitação do acesso às armas. Foi dessa forma que o número de Guias de Tráfego explodiu no país.

Amapá e Amazonas também são exemplos desse cenário. Segundo o Exército, 8.016 registros de CACs foram emitidos nesses estados em 2022. Em 2019, eram só 303. Os dados não distinguem caçadores e atiradores esportivos, mas indicam o aumento da circulação de armas na região.

"O javali nada tem a ver com isso, mas ele foi incluído em uma política armamentista", diz um servidor do Ibama que esteve à frente do tema por cinco anos.

Em 2022, uma unidade do Ibama fez um pente fino presencial em um estado da região Centro-Oeste e bloqueou 42 municípios onde não foi encontrado nenhum javali. Nos cadastros do estado, uma funcionária disse haver 6.000 inscritos para caçar que nunca registraram uma caça.

"O que encontramos foi gente passando o endereço da própria fazenda para um amigo ou familiar tirar uma arma", diz a servidora da instituição.

No grupo de trabalho formado pelo governo Lula para rever a política de armas, um analista da autarquia afirmou que "o mapa de dispersão do javali no território nacional possui características de dispersão intencional, promovida pelo ser humano para garantir a caça".

Para ele, a "caça se tornou um subterfúgio para a aquisição de armas de fogo".

Reprodução Reprodução

O número real de javalis à solta no país é incerto. O Ibama contabiliza somente abates e avistamentos feitos pela população.

Um estudo publicado em 2023 por pesquisadores da UFPR (Universidade Federal do Paraná), com amostra de estômagos de animais abatidos em São Paulo, revelou que 41% dos javalis preferem milho, 28,5%, cana-de-açúcar e 27% vegetais como soja, trigo e cevada.

Esse apetite deixa os fazendeiros irritados com os prejuízos. Segundo o Ibama, 61,3% dos abates entre 2019 e 2022 são justificados pelos caçadores por danos causados às lavouras. Há também um risco adicional de saúde pública que envolve os cachorros usados na caça.

Desde 2019, o Ibama permite o uso de cães para busca de javali. Durante o dia, eles farejam, acuam e podem até dar o bote em filhotes com presas menores.

A proximidade entre o homem e esses animais, entretanto, alertou pesquisadores, que encontraram carrapatos transmissores de febre maculosa em 72,5% dos javalis analisados, em 14% dos cachorros e em 14% dos caçadores.

O começo dessa história toda, contudo, não tinha a ver com armas e doenças, mas sim com talheres e pratos. Nos anos 1990, o javali foi lançado no Brasil como promessa gourmet, uma espécie de "porco de sangue azul", mais requintado que o porco convencional.

Nos criadouros da região Sul, surgiu também uma ideia peculiar: cruzar o javali, que pesa em média 70 quilos, com porcos comuns. O resultado foi o javaporco, um animal de até 200 quilos e temperamento pouco convidativo.

Javalis e javaporcos então fugiram — ou foram soltos — de seus criadouros, começando assim sua caminhada pelo mapa brasileiro.

Em 2013, o Ibama seguiu países como os Estados Unidos e Canadá e liberou a caça ao animal — até hoje a única autorizada legalmente no Brasil.

Caçá-los, no entanto, é uma tarefa complexa: as armas usadas são a calibre .12 para perfurar o couro reforçado da espécie, que também é ágil e se desloca para áreas mais seguras quando se sente ameaçada.

Rafael Salerno, engenheiro agrônomo e presidente da Associação Brasileira de Caçadores, estima que a população de javalis pode crescer até 150% ao ano. Ele calcula em 3 milhões o número de javalis à solta no país.

Para tentar interromper o aumento, a venda e criação de javalis também foram proibidas. Em 2006, havia cerca de 50 criadouros no Rio Grande do Sul, estado com maior número de caçadores no país. O último criadouro legalizado foi encerrado em 2017, quando venceu sua licença.

Adriano Delgado/UOL Adriano Delgado/UOL

DISPUTA POLÍTICA

Desde a liberação da caça, o javali entrou na arena política de Brasília.

De um lado, parlamentares ligados à bancada ruralista defendem a ampliação da caça, com a justificativa de resolver os ataques às lavouras. De outro, pesquisadores e servidores passaram a questionar a eficácia da liberação de armas para que a própria população abata a espécie.

Pesquisadores da UFPR elaboraram um documento no qual afirmam que a caça tem sido ineficaz: machos são mais abatidos do que fêmeas, o que mantém a reprodução da espécie e não resolve o problema.

"Pela literatura científica, para haver controle pela caça, 70% dos abates devem ser feitos com preferência para fêmeas [para impedir a reprodução]", diz Alexander Welker Biondo, professor do departamento de veterinária da UFPR e um dos autores do estudo, que causou celeuma.

"Falar que a culpa é do caçador é negar a própria biologia do animal", rebate Salerno. Ele afirma que os dados oficiais são insuficientes para explicar a realidade.

Entre 2019 e 2022, 58% dos javalis abatidos eram machos, e 65%, adultos — quando atingem de 1,27m a até dois metros, medidos da ponta do focinho até o rabo — e ultrapassam os 90 kg.

"Ninguém escolhe bicho na hora da caça e os registros são voluntários. O Ibama não faz pesquisa de campo", critica Salerno. "Além disso, a carne da fêmea é muito melhor que a do macho, que é intragável. Então, não faz sentido", completa.

Charles Caleb/Folhapress Charles Caleb/Folhapress

NOVAS ESPÉCIES NO ALVO

Após um breve período em 2023 de suspensão de novas autorizações, o Ibama retomou a emissão de novas licenças de caça, mas com mudanças para reduzir fraudes.

A presidência do Ibama foi procurada pela reportagem, bem como a assessoria de imprensa do órgão, por telefone e e-mail, mas não enviou uma resposta oficial sobre o assunto até a publicação deste texto.

Segundo o Exército, além do cadastro com informações pessoais, agora é preciso uma declaração do proprietário da fazenda, firmada em cartório, com os documentos dos caçadores habilitados: o CAR (Cadastro Ambiental Rural), a data quando a caça será realizada e filiação a um grupo de caça.

Para a emissão da Guia de Tráfego, também se exigirá a autorização do Ibama, com o estado e município da caça, e o documento só será válido para os caçadores quando acompanhado das demais autorizações do órgão ambiental, afirma o Exército.

O limite de armas para caçadores também caiu para seis armas por pessoa e 3 mil munições anuais.

Um servidor do setor de fiscalização do Ibama alerta que a vontade de caçar já tem outro animal na mira: a próxima espécie é o cervo asiático axis. O animal exótico, caçado em países como a Argentina, já teria sido avistado em cidades da região Sul.

"É a repetição do equívoco do javali", conclui.

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