O VALE DOS HEREGES

Belmonte, a vila de Portugal onde os judeus passaram cinco séculos sem contato com o mundo

Lira Neto (texto e fotos) e Lucas Lima (fotos) Colaboração para o TAB, de Belmonte (Portugal) Lucas Lima/UOL

Durante cerca de cinco séculos, os moradores da pequena Belmonte, vila de atuais 6.000 habitantes na região da Beira Baixa, no centro de Portugal, guardaram um segredo. Rodeado pela cadeia montanhosa da Serra da Estrela — um dos únicos pontos geográficos onde cai neve no país —, o lugar por muito tempo permaneceu isolado, quase inacessível aos olhares dos curiosos, o que ajudou a preservar o mistério.

No interior das casinhas feitas de pedra, enfileiradas em ruas estreitas e tortuosas, as cerimônias secretas eram realizadas à luz furtiva de pequenas candeias abastecidas de azeite puro, com pavio tramado em fios de linho virgem. Para evitar que algum vizinho ou visitante inesperado flagrasse o lume sagrado, as candeias eram colocadas dentro de potes de barro ou no interior de pequenos armários de madeira.

Às sextas-feiras, pouco antes do pôr do sol, os detentores do segredo vestiam os melhores trajes, estendiam lençóis recém-lavados sobre as camas e, em torno da mesa coberta com toalha branca, também limpa, reuniam-se para preparar a chegada do sábado.

"Ao sábado nada farás / ocupar-te-ás / em servir e adorar o grande Adonai", oravam, mencionando a palavra de origem hebraica que significa "Meu Senhor", pela qual Deus, em sinal de respeito, é evocado pelos judeus, que não podem dizer-lhe o nome.

O belmontense João Diogo, 72, lembra dos tempos em que, ainda menino, foi ensinado pelos pais a recitar tais versos — e orientado a jamais contar aos amigos o que acontecia em casa, a portas fechadas. Ele nunca deveria falar sobre os ritos de sua gente. Sob nenhuma hipótese poderia comentar a respeito da forma como viviam e, em especial, revelar o mínimo que fosse sobre a religião que praticavam.

A mãe recebera tais ensinamentos da avó de João, que por sua vez tinha sido iniciada no segredo pela bisavó do menino, e esta, do mesmo modo, pela tetravó, assim por diante, de geração em geração. Transmitida oralmente pelas anciãs da comunidade, a memória do grupo sobreviveu séculos afora. Assim foram preservadas a fé e a cultura judaicas de Belmonte, tradição guardada por cerca de 500 anos.

Ao contrário do ocorrido no restante da Península Ibérica no século 15, quando judeus foram obrigados à expulsão ou à conversão forçada ao catolicismo — tornando-se a partir daí "cristãos novos", sob pena de, em caso contrário, arderem nas fogueiras da Inquisição —, os antepassados de João Diogo permaneceram fiéis à fé original. Em um ato de resistência, passaram a exercer o criptojudaísmo, ou seja, a prática clandestina da religião judaica. Crime passível de condenação à pena de morte, caso delatado aos inquisidores.

Cabelos grisalhos, barba branca e olhos claros por trás da armação de óculos prateados, João Diogo, ex-presidente da Comunidade Judaica de Belmonte, ainda não parece muito à vontade para falar sobre o assunto, mesmo tantos anos depois. Com um olhar evasivo, mede as palavras, responde às vezes de forma monossilábica quando indagado a respeito. "Desde criança aprendi a não alardear minha crença, para não provocar conflitos", justifica.

A hesitação se desfaz por alguns segundos quando deixa transparecer o orgulho pelo fato de o filho, Pedro Diogo, 40, tê-lo sucedido na presidência da comunidade. "Meu neto, Rafael, de apenas 14, está a seguir o mesmo caminho. Aquele miúdo tem demonstrado muito interesse e alegria na perpetuação da história da nossa família e de nosso povo."

O vestígio mais remoto da presença judaica em Belmonte é, por si só, um enigma: um bloco de granito de 40 centímetros de largura por 59 de comprimento, de datação estimada em 1297 d.C. Ninguém sabe exatamente a procedência do artefato, encontrado nas ruínas de um antigo templo católico que, presume-se, tenha sido erguido sob os resquícios de uma sinagoga.

Traços de fogo na face traseira da lápide sugerem que ela tenha sido resgatada de um possível incêndio. Também não há consenso sobre o significado da inscrição gravada na pedra, em baixo relevo. Uma provável transcrição, aceita pela comunidade, seria: "E Adonai está no seu templo sagrado; emudece perante Ele toda a terra".

Os inquisidores estiveram na pequenina Belmonte pela primeira vez em 1579, quatro décadas depois do estabelecimento da Inquisição em Portugal. Como de praxe, conclamaram os moradores a delatarem os que praticassem atos ofensivos à fé cristã: adultério, bigamia, blasfêmia, sodomia e, em particular, comportamentos heréticos — entre os quais, o principal deles, o criptojudaísmo.

De 1536 a 1821, um total de 57 processos foram abertos em Belmonte contra acusados de praticar a religião judaica. As denúncias partiam de vizinhos e conhecidos que flagravam, em seus respectivos comportamentos, sinais exteriores da fé judaica: a guarda do sábado, o uso de roupa limpa e candeias acesas no início das noites de sexta-feira, a recusa a comer carne de porco e peixes sem escamas — produtos vetados pelas leis alimentares dos judeus.

Para arrancar delações, os inquisidores usavam dos mais variados estratagemas, incluindo a pressão psicológica e a tortura física. Os processos inquisitoriais preservados na Torre do Tombo, o arquivo nacional português, em Lisboa, revelam que uma das prisioneiras belmontenses, Isabel Rodrigues, arrastada à cadeia em 1604, ficou atônita ao saber do motivo de sua detenção, a prática de judaísmo: "Por isso me prendem?", indagou. "Pois em Belmonte todos nós lá dissemos isso, diante de clérigos e de juízes, e não nos vão à mão, nem o estranham", comentou.

As palavras de Isabel Rodrigues dão a entender ter havido, desde aquela época, uma aparente convivência pacífica entre cristãos e judeus na vila. Contudo, quanto mais a Inquisição apertou o cerco, mais a comunidade passou a se fechar. Para evitar contatos exteriores, aprofundou-se o costume dos casamentos consanguíneos, de primos com primas, tios com sobrinhas. Era preciso, sob o risco de morrer queimado na fogueira, acobertar o segredo.

O automóvel cinza-escuro para em frente ao número 41 da rua Fonte da Rosa, em frente a um prédio pequeno e baixo, pintado de branco. Na grande porta vermelha, vê-se uma réplica estilizada da menorá — o candelabro de sete braços, um dos principais símbolos do judaísmo. No alto da fachada, abaixo de caracteres em hebraico, lê-se a inscrição: "Sinagoga Bet Eliahu" (Casa de Eliahu, profeta hebreu citado na Escrituras). Pai e filho, ambos de quipá à cabeça, descem do carro, abrem o porta-malas e retiram dele uma série de paramentos, transportando-os para dentro do imóvel.

É sexta-feira, 4h da tarde. Pedro Diogo, o atual presidente da Comunidade Judaica de Belmonte, pede desculpas pela pressa. Não há tempo para entrevistas. Precisa preparar a sinagoga para a cerimônia do Shabat. Tudo precisa estar pronto até o pôr do sol. O filho, Rafael, ajuda-o na tarefa. "É uma responsabilidade imensa, mas também uma grande honra, manter a tradição e a fé de meu povo", diz Pedro, enquanto continua a organizar o material. Rafael, em silêncio, prossegue no serviço. "Gosto muito de fazer isso", apenas diz, de relance.

A rua estreita e sinuosa onde está instalada a Sinagoga Bet Eliahu é pavimentada por paralelepípedos, assim como todas as demais da vila. Dois quarteirões irregulares, cheios de becos e ladeiras, compreendidos entre as ruas Fonte da Rosa e Direita, correspondem ao local da antiga judiaria de Belmonte. Para manterem laços de vizinhança e sociabilidade, desde a Idade Média os judeus costumavam morar próximos uns aos outros, mesmo quando não eram segregados no gueto, cercados por muros e portões de ferro.

Uma caminhada pelas redondezas atesta que os marcos hebraicos estão por toda parte. À entrada de muitas casas, vê-se afixado no umbral das portas o mezuzá, a caixinha que guarda o pergaminho com passagens da Torá, livro sagrado dos judeus (que corresponde aos cinco primeiros livros da Bíblia cristã). Nas fachadas das residências, pequenos azulejos coloridos também remetem a símbolos religiosos hebreus, como a menorá e a Estrela de Davi.

Os imóveis disponíveis para aluguel por temporada, anunciados na plataforma Airbnb, homenageiam personagens históricos do judaísmo lusitano. "Casa D. Gracia Mendes", lê-se em uma placa de acrílico, referência à protetora dos cristãos novos que, no século 16, precisou fugir para o Império Otomano a fim de não ser apanhada pela Inquisição. "Casa Dr. Sabá", informa outra, alude ao médico e místico espanhol que, tendo se refugiado de início em Portugal, rumou depois para o norte da África, onde morreu em 1508, após sofrer uma série de perseguições.

Próximo ao prédio da sinagoga, funciona a Rádio Judaico Portuguesa, emissora amadora que transmite pela internet uma programação inteiramente dedicada a músicas, orações e leituras hebraicas. "Vivemos do apoio de amigos para divulgar o espírito dos costumes, das tradições e da cultura judaica", diz ao microfone o diretor geral Joseph Morão.

A meio caminho do centro, depara-se em uma pracinha com um enorme Chanukiá dourado — outro candelabro característico do judaísmo, este com nove braços —, cujas lâmpadas são acesas, uma a cada dia, conforme a tradição, na chamada Festa das Luzes, no fim do ano. Os judeus de Belmonte se reúnem diante do Chanukiá de cinco metros de altura para celebrar o feriado judaico da libertação do Templo de Jerusalém das mãos do império sírio-grego, no século 2 a.C.

O principal hotel da vila, o BelMonte Sinai, fornece cardápio kosher — adequado aos preceitos sagrados —, promove eventos para a comunidade e faz questão de receber hóspedes judeus de todo o mundo.

"Os avós dos meus trisavós já eram judeus. Minha família vivia do comércio de lãs e se instalou em Belmonte há séculos", diz o proprietário Alípio Henriques, 63. "Nasci na rua Direita; quando montei o hotel, decidi fazer essa homenagem aos meus antepassados."

No entanto, todas essas menções explícitas são recentes. Há pouco mais de 30 anos, os judeus de Belmonte continuavam a fazer segredo da própria existência. Mesmo depois de terem sido descobertos, no início do século 20, por um forasteiro polonês, admirado por identificar, por acaso, traços do criptojudaísmo no pequeno vilarejo.

Quando o engenheiro Samuel Schwarz foi contratado, em 1915, para trabalhar na exploração de minas de estanho na região da Beira Baixa, ficou curioso ao ser admoestado a não comprar no concorrente, durante visita a uma loja de Belmonte. "É judeu", cochichou o vendeiro cristão, como se estivesse a fazer grave denúncia.

Schwarz, ele próprio também judeu, resolveu aprofundar o assunto. Depois de alguma insistência, conseguiu confirmar a informação com o homem apontado pelo comerciante, que lhe pediu absoluta reserva, antes de aceitar apresentá-lo a familiares e amigos. "É dos nossos!", disse o sujeito ao ouvido dos parentes, para que ficassem à vontade diante do estrangeiro.

Quando uma idosa, desconfiada, pediu-lhe uma prova de que era mesmo um deles, o polonês recitou, em hebraico, a oração "Shemá Israel". Nesse momento, ficou ainda mais surpreso ao constatar que os anfitriões, judeus, não entendiam nada do que ele dizia no idioma sagrado. Apenas reconheciam uma única palavra: "Adonai". Ao ouvi-la, tapavam os olhos com as mãos, em sinal de reverência e respeito.

Schwarz entendeu o que se passava: assim como os criptojudeus das Idades Média e Moderna, impossibilitados de terem acesso às Escrituras e de se reunirem em sinagogas, os remanescentes de Belmonte haviam perdido contato com a língua dos antepassados. Praticavam um judaísmo baseado na oralidade, transmitido de boca em boca, sem rabinos. Era como se as nevascas da Serra da Estrela tivessem congelado o vilarejo no tempo.

Os membros daquela comunidade secreta sequer imaginavam que existiam, pelos quatro cantos do planeta, outros adoradores de Adonai. Julgavam-se os últimos sobreviventes de uma crença extinta. A descoberta de Schwarz foi apregoada por ele em artigos de jornal e em um livro, "Os cristãos novos de Portugal no século 20", publicado em 1925.

O caso mereceu atenção mundial, mas os próprios judeus de Belmonte fizeram questão de voltar ao anonimato, principalmente depois da decretação do Estado Novo português, em 1933, na origem da ditadura de Antônio Salazar. Receavam serem entregues às tropas nazistas de Adolf Hitler, com quem o salazarismo tinha afinidades ideológicas.

Somente após 41 anos, quando a Revolução dos Cravos pôs fim ao arbítrio no país, eles começaram a romper, de novo, embora timidamente, o antigo segredo.

"Até o 25 de Abril, andávamos de olhos baixos, sem chamar a atenção", recorda Alípio Henriques, o dono do Hotel BelMonte Sinai. "Cumpríamos os rituais cristãos, em casamentos e funerais, mas sem nenhuma fé, pois depois fazíamos tudo de novo, de acordo com a lei judaica."

"Minha mãe contava do tempo em que os judeus daqui, quando ainda não havia sinagoga, reuniam-se em um terreno vazio, debaixo de umas oliveiras", relembra Moisés Morão, 60, proprietário da Casa da Judiaria, lojinha de souvenires e artigos hebraicos, instalada bem diante do grande Chanukiá dourado. "A comunidade já foi maior. Hoje, existem mais judeus belmontenses morando em Israel do que aqui na vila", diz ele, cujos filhos, por sinal, vivem em Jerusalém.

De acordo com os dados da própria sinagoga, só restaram cerca de 40 judeus em Belmonte. É uma população envelhecida. Desde 1989, quando a comunidade foi oficialmente reconhecida por Israel, muitos jovens optaram pela "Aliá", a imigração rumo à Terra Prometida. Vão em busca de trabalho, melhores salários e, também, de outras oportunidades para se casar com judeus e judias.

A vila vive hoje do culto à memória, da celebração de uma herança histórica preservada no bem cuidado Museu Judaico, mantido pela Empresa Municipal de Promoção e Desenvolvimento Social — entidade coletiva de direito privado, sujeita à superintendência da Câmara Municipal. Apesar disso, parte dos judeus que ficaram na vila ainda se mostram bastante arredios com os forasteiros.

Muitos negam-se a falar, recusam-se a serem fotografados, olham desconfiados para os jornalistas e pesquisadores que lhes dirigem questões. "Quem é mesmo você? Por que está me perguntando essas coisas?", indaga uma senhora idosa, à entrada de casa, antes de fechar a porta e encerrar a conversa. "Quem lhe disse que sou judia?", interroga outra, sem querer puxar assunto. No umbral da entrada de casa, existe um mezuzá.

Do mesmo modo, muitas famílias pediram para ter seus nomes e sobrenomes apagados do painel que, em uma das paredes do Museu Judaico, lista os membros da comunidade. Na antiga judiaria, as ruas estão desertas, com pouco movimento, embora se possa ouvir, do lado de fora, o som dos movimentos domésticos que vem de dentro das casas: tilintar de pratos e copos, barulhos de panelas, vozes de gente conversando.

"Sempre que acontece algo supostamente ameaçador, seja em qualquer lugar do mundo, é como se eles ligassem um sinal de alerta silencioso, tornando-se mais reservados, mais cautelosos", explica Joaquim da Costa, 59, presidente da empresa que gerencia o museu. "As notícias sobre a guerra na Ucrânia têm os deixado precavidos. Por mais distante que seja o conflito, eles guardam o trauma ancestral das grandes perseguições contra sua gente."

"Mas, aqui, estarão sempre protegidos. Os belmontenses são — e sempre foram — um povo aberto às diferenças", diz Costa, apontando para a inscrição à entrada do prédio, onde se lê, em letras grandes: "Belmonte, terra de tolerância". A poucas centenas de metros dali, no cemitério da vila, túmulos de cristãos e judeus, com crucifixos e estrelas de Davi, podem ser encontrados lado a lado, no mesmo campo santo. "Onde mais isso seria possível?", indaga Costa.

Topo