O Brasil Judiciário

O que a superexposição de juízes e cia. diz sobre a formação e os rumos da nossa sociedade

Qual foi a última notícia sobre o Judiciário que você tomou conhecimento? Essa é uma das perguntas feitas por uma pesquisa chamada Índice de Confiança na Justiça, da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo).

Hoje, responder a essa questão pode ser uma tarefa árdua. Escopo probatório, auxílio moradia, trânsito em julgado, súmulas vinculantes, embargos infringentes. Nunca termos específicos ou polêmicas do universo do direito estiveram tão presentes no dia a dia, fazendo as pessoas quebrarem a cabeça (ou não) para entender os principais acontecimentos do país. A conjuntura não é por acaso, e também não é exclusiva do Brasil, embora tenha adquirido aqui uma cara própria. Conflitos complexos, além do próprio arranjo constitucional, fizeram a Justiça ser mais chamada para entrar em campo.

Para estudiosos do assunto, o problema no entanto tem sido a forma como o Judiciário tem jogado. Entre discordâncias sobre a intensidade das atuações, é unânime que há um descompasso sobre como os atores desse sistema têm tomado suas decisões. "Hoje, nove em cada dez analistas vão dizer que o Judiciário passou da conta", diz Ernani Carvalho, pró-reitor e professor de ciência política na Universidade Federal de Pernambuco. "Essa lógica de empoderamento que foi se avolumando criou algo que, quando houve crise política, não se conseguiu gerenciar". Nesse cenário, debates sobre o poder tem ganhado corpo. Bem como memes satirizando imbróglios nos tribunais.

Antes mesmo de tomar as redes sociais, as particularidades das cortes já haviam chamado a atenção da indústria criativa. A cineasta Maria Augusta Ramos nunca tinha entrado em um tribunal até o momento em que decidiu filmar "Justiça" (2004). Ao ir a um fórum a convite de uma amiga, ficou impressionada ao notar que era possível falar sobre tantos aspectos do Brasil sem sair do interior de uma sala — "quatro paredes, uma mesa, luz branca", diz ela. De lá para cá, fez quatro documentários premiados sobre o assunto.

Um olhar sobre o tribunal

Essa dimensão do Judiciário como janela para outras questões — relações políticas, de poderes, direitos humanos e abismos sociais — talvez nunca tenha ficado tão evidente como agora quando, para estudiosos, o momento é de claro protagonismo.

"Faz parte do contexto democrático a existência de um poder contramajoritário [que permite revogar leis quando elas violam direitos], porque ele tem justamente o papel de garantia das regras do jogo. O que se discute hoje é um protagonismo maior na medida em que há uma dificuldade de administração dos conflitos entre governo e oposição dentro do sistema político", afirma Rodrigo de Azevedo, sociólogo e professor de direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).

O direito se tornou um espetáculo teatral. Viraram atores. Esse é que é o problema

Eros Grau, ex-ministro do STF

Para Eloísa Machado, coordenadora do projeto Supremo em Pauta e professora da FGV-SP, o problema é que "a recente crise extrapola esse debate sobre autocontenção judicial e ingressa na arena de decisões fora dos parâmetros normativos, decisões às quais o próprio STF chamou 'excepcionais'."

O advogado e ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Gilson Dipp acredita que temos "um Executivo desmoralizado, um Congresso que não tem a mínima confiança da população, e se leva muito as questões para o Judiciário, esperando que ele resolva o que os outros poderes não resolvem. Com isso, o Judiciário, em especial o Supremo, aproveita o vácuo e acaba por legislar [criar as leis]", afirma. "Além de tudo, o STF não tem dado exemplo de postura institucional, com bate-boca entre ministros. Isso vem ocorrendo e propiciou aquela confusão no TRF-4 [o habeas corpus de Lula]", completa Dipp, que já presidiu o tribunal em questão.

Já o jurista Joaquim Falcão crê ser necessária cautela na generalização. "Esses diagnósticos têm conteúdos políticos muito claros, mas não sei se correspondem à realidade global do Judiciário". Para ele, "o que se vê hoje é um individualismo ativista personalista e político partidário". Falcão enxerga a conjuntura como um "teste de estresse" que a democracia está vivendo no mundo inteiro.

Apesar das críticas, especialistas ressaltam que não há uma linha definida de separação de poderes. Algum grau de judicialização — como se chama, no jargão, a resolução de conflitos políticos no direito — faz parte do cenário pós-Constituição de 1988. "O sistema de Justiça vem, ao longo dos últimos 30 anos, descobrindo como usar seu conjunto de competências, experimentando seu espaço. E muitas vezes o faz de forma abusiva", afirma Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP.

Nesse processo, tanto decisões que ampliaram direitos quanto medidas punitivistas foram colocadas sob o guarda-chuva desse protagonismo judicial, das grandes decisões que influíram no dia a dia da população e na política.

Tem uma série de questões que fazem a judicialização da política acontecer, e se isso é dar abertura e acesso à Justiça para as pessoas reivindicarem seus direitos sociais, políticos e econômicos, eu acho bem positivo. O problema é como os juízes decidem a parte da política no cenário atual

Luciana Ramos, doutora em direito constitucional

Eloísa Machado faz leitura similar a de Mendes quando fala sobre os excessos da mais alta corte do país, que estuda no projeto Supremo em Pauta. Para ela, "o maior exemplo [de excesso] talvez seja o poder que o tribunal se deu para suspender exercício de mandato como medida cautelar de natureza penal”. Machado também destaca como abusos o veto judicial a nomeações presidenciais e a suspensão de tramitação de projetos legislativos, além de ressaltar que vê um STF mais tímido ao analisar medidas que visam garantias universais — ela é doutora em direitos humanos pela USP.

"Algumas decisões foram e são importantes para os direitos humanos, mas eu as classifico como tardias e pouco ambiciosas”, afirma. “A pesquisa com células-tronco foi autorizada por uma lei aprovada no Congresso, enquanto o combate ao trabalho escravo se trata de uma política pública do Executivo, assim como as ações afirmativas em universidades, ou seja, sequer foram avanços promovidos pelo tribunal. A decisão sobre a união entre pessoas do mesmo sexo — sem mencionar casamento e adoção, por exemplo —, apenas corroborou um movimento que vinha muito forte em tribunais inferiores e juízes de primeira instância, e a decisão sobre a interrupção de gestação de feto anencéfalo não chegou nem perto de discutir direitos sexuais e reprodutivos", analisa Machado.

Além da noção de que não existe um algoritmo de separação de poderes, também é sabido que os sujeitos — sejam juízes, músicos ou cozinheiros — são seres políticos. E é nessa esfera que entra o conceito de ativismo judicial. Se também não tem uma definição clara, essa ideia se faz presente a ponto de aparecer na fala do ministro Alexandre de Moraes quando este foi indicado ao STF, em 2017: “Não são poucos, no Brasil e no exterior, os doutrinadores que aplicam perigo a democracia com a utilização exagerada no ativismo judicial”.

Em resposta à fala do magistrado, juristas declararam ser importante ele explicar de que ativismo falava. A indagação faz sentido, já que o termo aparece nas mais diversas situações. Na semana passada, por exemplo, foi usado por religiosos para criticar a pauta da descriminalização do aborto no Supremo.

Fato é que, por muito tempo, o ativismo judicial era um território de agentes da lei empenhados em ampliar a garantia de direitos. Serve de exemplo um caso em 2001 no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando pela primeira vez no país foi reconhecida a união de dois homens. "A falta de lei gerava coisas absurdas, pessoas vivendo há anos com filhos sem direito a nada", afirma a juíza Maria Berenice Dias, responsável pela decisão. Celebrado por muitos, esse ato por vezes é lido como ativismo judicial.

Já há toda uma dificuldade hoje no Brasil de falar de direitos humanos, tem gente que acha que eles são pra defender bandido, e parte do Judiciário cedeu a essa mentalidade, inclusive na cúpula

Rodrigo de Azevedo, sociólogo, especialista em segurança pública

A reviravolta se dá pelo fato de que, nos últimos anos, alguns pesquisadores têm visto o conceito se desviar para um sentido mais penalizador — punitivista, como também se diz no jargão. "Percebe-se uma virada conservadora onde os fins justificam os meios, onde há um juiz ativista que acredita que o combate ao crime é prioritário e não mais a garantia dos direitos no processo. Justifica-se dizendo que é para [punir a] elite, mas o efeito que isso produz na criminalização da pobreza é imenso, porque se faz isso para os de cima, para os de baixo isso aumenta", afirma Rodrigo de Azevedo, especialista em criminologia e sociologia jurídica.  

"Minha impressão é de que o ativismo do punitivista não é um ativismo, porque essa é a lógica do sistema", afirma o cientista político e professor Frederico Almeida, numa referência à justiça penal do Brasil, um dos países com maior índice de encarceramento do mundo. Ele integra o Grupo de Pesquisa em Direito e Política do Centro de Estudos Internacionais e de Política Contemporânea da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e vê uma tendência de juízes de perfil penalizador em se assumirem como ativistas. "As decisões do Supremo no caso da Lava-Jato, do TRF-4, do Moro e todo o discurso público dele são um ativismo nesse sentido: 'vamos dar satisfação para a sociedade', 'é preciso acabar com isso', 'restabelecer a ordem'", exemplifica. 

Entre os fatores que colaboraram para esse discurso ganhar popularidade, Almeida situa a atmosfera de crise política e descrença por parte da população. "O sistema político estava muito acuado e subestimado desde 2013, e acho que eles [juízes] aproveitaram uma brecha na qual não se tinha como resistir ou controlar esse protagonismo. Se havia naquela época alguma tentativa das cúpulas da Justiça [como o STF] de conter esse movimento, justamente pelo clamor popular elas não conseguiram fazer isso", reflete.

A questão do foro privilegiado, medida que dá ao STF a competência de julgar, por exemplo, todo o Congresso Nacional, é vista pelo ex-ministro Gilson Dipp como agravante desse cenário de desequilíbrio. "Hoje, o Supremo é uma corte penal tanto quanto é a vara de Curitiba. A destinação do STF é de ser guardião da Constituição, mas com o aspecto do foro privilegiado e o furacão propiciado pela Lava Jato, ele se viu assoberbado e começou a se destacar não pelas suas decisões constitucionais, e sim como uma corte penal, para a qual ele não tem vocação", acredita.

O ponto de vista é parecido ao do atual ministro do Supremo Luís Roberto Barroso. Em evento em São Paulo no início de agosto de 2018, Barroso concordou que há "uma visível judicialização da vida no Brasil". "O problema é que o Supremo tem o papel penal, não há como isso não ser um fator de desestabilização. Seja pelo foro privilegiado, seja pela sucursal, chega muita coisa ao STF. O que acontece hoje no Brasil é um mau desenho institucional", opinou. No entanto, mesmo em meio ao que ele chamou de tempestade, Barroso disse enxergar as instituições no país sendo "resilientes" e o STF desempenhando "relativamente bem" seus papéis.

O cientista político Conrado Mendes situa nessa conjuntura de intensa atividade o Supremo como um poder mais tensionador do que moderador. "Nos casos delicados politicamente, nada é previsível no STF: em geral, permanece em aberto o que vai decidir e também quando vai decidir. É a imprevisibilidade do mérito e a imprevisibilidade do tempo. Joga querosene no fogo", afirma.

A imprevisibilidade não é vista apenas por Conrado, e nem é nova. O professor da PUC-RS Rodrigo de Azevedo conta que toda discussão feita na área das ciências sociais indica que o Judiciário brasileiro sempre foi muito opinativo. "Isso acaba gerando a ideia de que não há segurança jurídica, que é o que esse poder deveria oferecer para que as pessoas pudessem saber que, qualquer que seja o conflito, haverá um mecanismo para administração democrática, baseado em regras publicamente instituídas que valem para todos da mesma forma", afirma. "No Brasil, claramente isso não acontece", completa.

Diante de uma eleição judicializada, esse aspecto é potencializado. "As decisões sobre cláusulas de barreira, fidelidade partidária e financiamento de campanhas tiveram enorme impacto no processo eleitoral e na dinâmica do Congresso. O caso sobre a execução provisória da pena afeta também esse tema, já que o trânsito em julgado era um parâmetro", explica a pesquisadora Eloísa Machado. "Não se trata apenas de Lula. Bolsonaro se tornou réu no Supremo com uma interpretação restritiva de imunidades parlamentares e, se condenado antes das eleições, pode ser impedido de competir. Juntando ambos os casos, o Supremo está interferindo nos dois principais presidenciáveis, porque não é apenas o que o Judiciário julga que importa, o que ele não julga também. Nesse caso, Lula foi julgado, Bolsonaro não", ressalta ela.

A negação da política

Em 2010, Frederico Almeida apresentou tese na USP na qual discutia justamente a existência de um campo político na Justiça. Em seu estudo "A Nobreza Togada", ele queria entender a trajetória de quem ocupa os lugares mais altos do Judiciário — e como isso influi na política. "O que estamos vendo reforça a capacidade do campo jurídico de se posicionar em relação à política de maneira muito poderosa. Agora, é mais complexo, porque o que vemos com a Lava Jato, por exemplo, não é necessariamente um processo de cúpula", afirma.

A contradição para ele é que esse posicionamento político passa, por vezes, pela negação da própria política. Um dos resultados da pesquisa mostra que, conforme o direito se profissionaliza, ele se distancia do cenário político. No entanto, para o professor é justamente essa autonomia que, tempos depois, recoloca os juristas — com vantagens — nesse campo.

"Tem essa ideia de uma corporação jurídica que, negando a política tradicional, acaba agindo politicamente com base na sua técnica. Fiz análise dos discursos e os membros da Lava Jato deixam isso claro, porque além de fazerem o trabalho deles, declaram que essa tarefa é uma forma de depurar a política. Acham que os partidos são corruptos, que está tudo errado. Não são políticos, mas a partir dessa distância da política buscam mais legitimidade para agir na política", analisa.

O Supremo se tornou ator muito mais pelos seus erros, e agora o tempo todo ele é cobrado pela inconsistência de suas decisões. Decide agora diferente do que decidiu há dois meses, um ministro decide diferente do outro. Tentando coordenar o protagonismo [de instâncias inferiores], ele aumentou a crise

Frederico Almeida, professor de ciência política na Unicamp

Na leitura de Almeida, discursos "indignados" de magistrados já estão fora da esfera jurídica quando vêm a público — ele cita como exemplo a [ministra do STF] Carmen Lúcia, que disse 'o escárnio venceu o cinismo' no caso da prisão do senador Delcídio do Amaral (PT-MS). "É um discurso que na sociologia a gente chama de 'lei e ordem', e que é político", afirma.

Para além dos discursos, essa aproximação com a política pode ser explicitada por meio de diversos casos. Até maio de 2018 especulava-se que Joaquim Barbosa, relator do processo do Mensalão, seria candidato à Presidência. Já o ex-ministro Nelson Jobim era apontado como possível candidato até junho.

E o quanto essa atuação central tem influenciado na confiança das pessoas em relação ao Judiciário? O mais recente estudo do ICJ (Índice de Confiança na Justiça) mostra queda de dez pontos percentuais entre 2013 e 2017, embora esse poder ainda esteja bem à frente de partidos políticos. Já em relação a juízes populares, como Sergio Moro e Barbosa, a confiança permanece alta, a despeito de que no caso de Moro ela venha caindo — o índice Barômetro Político Estadão-Ipsos de junho de 2018 mostra o juiz com 55% de desaprovação. 

O cientista político Conrado Mendes vê a aceitação social dos juízes como uma combinação da descrença na classe política com "uma habilidade e ousadia judicial" em ocupar esses espaços. "A causa anti-corrupção e a imagem de heroísmo ventilada pelos juízes e procuradores é parte disso", diz ele. No entanto, não acha que isso seja algo tão sólido. "Essa legitimidade está sob teste e juízes não têm sido muito hábeis em administrá-la. E como não são dotados do 'lastro eleitoral', sua legitimidade é bastante mais frágil", coloca.

O ex-ministro do STJ Gilson Dipp acredita que essa queda de popularidade era esperada diante do que ele considera um ciclo natural, e vê o cenário com certo otimismo. "A Lava Jato tem importantíssimo papel nas instituições brasileiras, mas muitos excessos foram produzidos. Esse descrédito é consequência natural dos fatos. Agora, tem vários aspectos que estão sendo contestados perante o próprio Supremo — ele mesmo reagindo aos excessos, a procuradoria recuando — e não vai haver mais deuses nem justiceiros, tanto da procuradoria como da polícia quanto do Judiciário. Ou seja, estamos voltando ao leito natural das coisas", diz.

Analisando os números do ICJ, a pesquisadora Luciana Ramos, que integra equipe responsável pelo estudo, afirma que "o que surpreende é que, mesmo com a atuação do Moro — que as pessoas o vangloriam —, não teve um ‘efeito Moro’ na avaliação do poder Judiciário". Outra surpresa dos pesquisadores é que, embora a confiança no Judiciário tenha caído, as pessoas ainda digam que recorreriam a ele para resolver um problema. Para Luciana, isso pode ter a ver com a falta de alternativas.

Quem entra no clube

Nesse debate, o quanto é relevante a posição social de membros do Judiciário? O professor Frederico de Almeida identificou nas altas cúpulas um processo de formação de seleção de elites, com afinidades sociológicas e, em grande medida, homogêneo. No entanto, ele adverte que "é simplismo dizer que o Judiciário brasileiro é formado por herdeiros da Casa Grande, porque na base não são".

Almeida explica que a expansão do ensino jurídico e os concursos públicos trouxeram uma relativa acessibilidade que acompanha o surgimento de uma classe média escolarizada no país, a partir de 1950. Ele crê que essa mudança não implica, entretanto, em uma mudança de paradigma. Em primeiro, porque ela ainda não chegou nas cúpulas. "Quando você olha para as elites, elas têm a mesma cara do começo da República. E isso não é pouca coisa, porque quem manda não sofreu essa mudança", afirma.

Se o surgimento de concursos acompanha uma lógica democratizadora, hoje é necessário aperfeiçoá-los, bem como discutir o ensino jurídico a fim de se pensar nas raízes desse cenário. Essa é a posição de diversos analistas com quem o TAB falou. "O ensino para os concursos e o modo como eles são feitos são um desenho do fracasso. E é o país com mais faculdades de direito no mundo", ressalta Luciana Ramos, doutora em direito constitucional pela USP e pesquisadora da FGV-SP.

O recrutamento por meio de concursos incentiva uma indústria que fabrica robôs recitadores de normas jurídicas. E essa indústria, por si só, é também muito elitista, pois é pouca gente que pode parar sua vida para se dedicar a estudar por longos anos

Conrado Mendes, cientista político e professor de direito constitucional da USP

O Brasil é recordista em cursos de direito: são hoje cerca de 1300. Para se ter uma ideia, em 2010, a soma era superior ao número de faculdades de direito do restante do mundo. "Com uma má formação na base, isso gera um processo em cadeia que acaba contaminando os tribunais superiores. Você tem juízes que não têm condição de estar lá", acredita Ernani Carvalho, pró-reitor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

“Há também uma porta de entrada sem concurso, que é o quinto constitucional", diz Conrado Mendes, referindo-se aos tribunais superiores. "Por essa porta, o fator dinástico pode influir bastante. Os dois exemplos recentes remetem às filhas dos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio Mello, do STF, nomeadas desembargadoras no Rio por pressão dos seus pais. É um escândalo que escandalizou pouco gente", completa.

Entre questões polêmicas, talvez uma que tenha escandalizado um pouco mais seja a recente aprovação dos ministros do aumento de 16% de seus próprios salários — que poderão chegar ao valor de R$ 39 mil, se votados pelo Congresso. A medida foi criticada pela ministra Carmen Lúcia, que teve seu voto vencido no tribunal. Vale lembrar que, além do aumento de salário, os juízes e procuradores contam com o auxílio-moradia, uma despesa que gasta R$ 1 bilhão do dinheiro público.

REforma no tribunal

Frente a essa crise, presidenciáveis de lados opostos pedem mudanças no Judiciário, algumas em consonância com análises de estudiosos, outras com acenos para o autoritarismo. Vice na chapa do ex-presidente Lula (PT), o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad falou em instituir mandatos para os tribunais superiores — hoje os cargos são vitalícios, com aposentadoria compulsória para quem completa 75 anos. O programa de governo de Guilherme Boulos (PSOL) também fala em mandatos para ministros dos tribunais superiores, além de indicação de pessoas da sociedade civil para o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) — órgão responsável por inspecionar o Judiciário — e o fim dos benefícios extras a juízes.

Já o candidato do PSL à Presidência, o deputado federal Jair Bolsonaro, afirmou que pretende propor o aumento dos atuais 11 para 21 ministros do Supremo caso vença as eleições — medida que analistas consideram digna de regimes ditatoriais. João Amoêdo (Novo) quer reduzir o número de ministros, além do fim do auxílio-moradia. Alvaro Dias (Podemos) defende mudanças no modelo de indicação dos ministros por meio de um "sistema de meritocracia", nas palavras dele. Entre comentários, Marina Silva (Rede) já falou sobre um "controle social" do Judiciário. Em declaração que rendeu polêmica, Ciro Gomes (PDT) disse que o poder "não deve se meter em tudo".

O único aspecto que acho que pode ser modificado é que deveria haver um mandato - 12 anos, por exemplo - para que não tenha pessoas que entram bem jovens e vão ser juízes do Supremo até daqui a 40, 35 anos. Acho que esse é um aspecto positivo

Gilson Dipp, ex-ministro do STJ

A ideia de um "filtro" para os processos no STF, citada anteriormente pelo ministro Luís Barroso, é defendida também pelo ex-ministro Eros Grau e pelo jurista Joaquim Falcão como forma de equilíbrio. "A incapacidade de ser eficiente é que destrói o sistema, porque em vez de olhar para o constitucionalismo de realidade, que é o que eu falo, ela traz um inconstitucionalismo de ideias fora do lugar", diz Falcão.

Entre questões estruturais, Conrado Mendes acredita que deva ser rompido o vínculo entre a educação e o corporativismo. "Isso sufoca a possibilidade de um ensino mais inovador e emancipatório, uma pesquisa mais sofisticada e uma crítica independente das instituições", afirma.

Faculdades de direito em geral ensinam a reproduzir autoridade e hierarquia, incutem o temor reverencial que governa essas profissões. E é mínima a perspectiva de mudança quando os próprios professores são os mesmos que ocupam o poder nas instituições. Enquanto não tivermos intelectuais independentes, não teremos condições de modernizar muita coisa

Conrado Mendes, cientista político e professor de direito constitucional da USP

Para o professor e pesquisador Frederico Almeida, um ponto importante da atual turbulência é que, ao menos, questões grandes demais para ficarem restritas aos tribunais têm tido amplitude.

"Um dos problemas do Judiciário é que ninguém nunca deu muita bola para ele. Todo mundo que estuda direitos humanos lida com uma perplexidade que é ver como a nossa sociedade é autoritária. A frase 'bandido bom é bandido morto' não está só na boca do Bolsonaro, mas na de um jovem que tem o perfil social para ser alvo da polícia. Então quando você vê esses temas do Judiciário no debate público, acho que já tem um ponto positivo", afirma.

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