Ser humano dá cadeia

Os bastidores do julgamento que absolveu voluntários acusados de tráfico de pessoas

Imagine a seguinte situação: você é bombeiro especializado em resgates no mar. Assiste pela TV à maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. Vê imigrantes e refugiados em botes precários à deriva nos mares Egeu e Mediterrâneo. Então decide agir. Deixa a família de lado, abre mão das férias e parte para ajudar a salvar vidas, sem pedir ou esperar nada em troca.

Você chega a Lesbos, a ilha grega que é um dos epicentros da crise migratória. Durante a madrugada, recebe a chamada de outra ONG (organização não-governamental): um barco com refugiados vindo Turquia foi avistado perto da costa. A mensagem é um pedido de ajuda. A ideia é se juntar à embarcação que iria ao Egeu para fazer o resgate. Quantas vezes você pensaria antes de tomar uma decisão?

Pois Manuel Blanco, Julio Latorre e José Enrique Rodriguez não pensaram duas vezes. Os bombeiros de Sevilha, Espanha, membros da ONG Proem-Aid, referência em resgates marítimos, se uniram ao moldavo Salam Aldeen e ao dinamarquês Mohammad Abbassi, respectivamente líder e membro da ONG Team Humanity, rumo à escuridão do Egeu na madrugada de 14 de janeiro de 2016.

Não encontraram nada. Nenhum refugiado foi resgatado. Mas o que aparentemente foi um alarme falso tornaria-se o maior pesadelo da vida dos cinco voluntários. Ao retornarem à costa de Mytilene, capital de Lesbos, eles foram abordados pela Guarda Costeira grega. Mais que isso: foram presos e algemados. A acusação: tentativa de tráfico internacional de pessoas e porte de armas - estas, no caso, eram canivetes que qualquer bombeiro leva em seu jaleco profissional. Possível pena para cada um: dez anos de prisão.

“Foram dois anos de muita carga sobre os nossos ombros diante de uma condenação totalmente injusta”, disse Manuel Blanco, vice-presidente da Proem-Aid, pai de três filhos, sendo que a pequena Sofia, de menos de dois anos, ganhou esse nome de origem grega justamente pelo ocorrido. “Fomos condenados por salvar vidas. Sentimos muitas coisas, sobretudo incredulidade. Como explicar aos seus filhos que você foi para a prisão porque tentava resgatar vidas?”, questiona Blanco.

“É uma sensação que já sentíamos quando estávamos na prisão, um sentimento de impotência, porque nós viemos para cá para resgatar [vidas]”, disse José Enrique Rodríquez, mais conhecido como Quique, sobre os três dias que ficaram presos em Lesbos. Eles foram soltos após cada um pagar uma fiança de 5 mil euros e sob a condição de voltarem à ilha para o julgamento.

SOLIDARIEDADE VIRA CRIME

Por quatro dias, o TAB acompanhou na ilha de Lesbos os bastidores deste que foi um julgamento histórico sobre a crise de imigrantes e refugiados na Europa. O caso ganhou as manchetes de veículos do continente, sobretudo na Espanha, e fez dos cinco acusados os maiores exemplos do que, segunda ativistas, se trata de uma perseguição por parte das autoridades europeias - algumas instituições são acusadas por esses grupos de tentar conter o fluxo migratório por meio da criminalização de voluntários que querem apenas ajudar seres humanos.

Outros ativistas e voluntários já enfrentaram condenações em casos similares, seja por dar teto e comida ou por transportar imigrantes em seus carros particulares. O agricultor francês Cedric Herrou, por exemplo, já foi condenado a quatro meses de prisão por abrigar e ajudar refugiados africanos que atravessaram a fronteira entre Itália e França. Mas até o incidente em Lesbos nenhum voluntário havia sido acusado de tentativa de tráfico de pessoas.

A saga dos voluntários mobilizou na Espanha uma legião de políticos, ativistas e até atores que trabalham em Hollywood, como Javier Bardem, que se juntaram à campanha “Condenados a Salvar Vidas”, feita pela ONG Proem-Aid, que por dois anos não pôde contar com três dos seus membros de resgate por causa do processo na Grécia.

Uma comitiva espanhola, liderada por Rosa Aguilar, ministra de Justiça do Estado da Andaluzia, do qual a cidade de Sevilha faz parte, e pelo cônsul espanhol em Atenas, Juan Sáenz de Heredia, além de familiares, namoradas e mulher dos envolvidos, viajou a Lesbos para o julgamento que acabou, para vibração dos ativistas, com a absolvição dos acusados. Mas, antes do veredicto, todos assistiram a um evento que flertou com o bizarro em vários momentos.

O DIA D

Segunda-feira, 7 de maio, 9h, Tribunal 9 de Justiça de Mytilene. Câmeras espanholas e dinamarquesas, sobretudo, estão posicionadas para o julgamento. Entre fotos e declarações otimistas, seguiu-se o protocolo desse tipo de ocasião até as 10h15, quando os cinco foram chamados para a sala onde a decisão mais importante de suas vidas seria tomada.

A questão é que o julgamento tão aguardado por ativistas ao longo de dois anos mostrou-se, segundo vários presentes, algo tão extraordinário quanto a acusação.

O primeiro exemplo: não foi pedida nenhuma identificação aos acusados. Cédula de identidade, passaporte, nada. “Poderia ter vindo qualquer outra pessoa no meu lugar. Como pode isso?”, perguntava Quique Rodríguez, um dos sevilhanos acusados, numa das pausas das oitivas antes da sentença.

Quando os dois guardas-costeiros que estavam na noite do suposto resgate eram ouvidos pela juíza e promotora (a divulgação dos nomes desses profissionais é proibida na Grécia), dando início ao processo de oitiva, muitos familiares dos bombeiros seguiam do lado de fora. Uma confusão se instalou em frente ao júri de Mytilene.

Tudo porque os policiais que estavam na corte diziam que não havia mais cadeiras livres para eles. Como os julgamentos de outros oito casos de suposta imigração irregular também aconteciam no tribunal, os parentes preferiram ficar com os acusados do lado de fora. Sandra Blanco, mulher de Manuel, perdeu a primeira hora de julgamento. “Esperei e sofri por tanto tempo, e agora não consigo nem sequer estar próxima ao meu marido”, reclamou.

Único impedido de deixar o território grego - ficou no país entre janeiro de 2016 e agosto de 2017 -, Salam Aideen foi o primeiro dos acusados a ser interrogado. “Fiz três ligações para a Guarda Costeira, às 3h08, 3h27 e 3h28”, relatou o capitão, preocupado em frisar que seguiu o procedimento. O advogado dele apresentou as provas das chamadas telefônicas. “Fizemos tudo de acordo com o protocolo”, completou. Aideen mostrou algum nervosismo, ciente que era o principal foco da acusação.

Mohammad Abassi era o que aparentava maior tranquilidade. Ele optou em ter o seu próprio advogado, e disse em inglês, diante da juíza e da promotora, que já vinha trabalhando em Lesbos há meses. “Em todas as ocasiões cooperamos com as autoridades gregas, muitas vezes eles próprios pediam a nossa ajuda quando avistavam alguma embarcação”, afirmou.

“Nossa organização, quando ocorreu o terremoto em Lesbos (6,3 graus, em junho de 2017), esteve presente e ajudou as autoridades locais no resgate dos feridos”, lembrou Manuel Blanco, o primeiro espanhol a ser ouvido, e arrancando aplausos de alguns voluntários que assistiam ao julgamento. “Em nenhum momento deixamos de ter contato com as autoridades, foi tudo avisado, tudo claro”, reafirmou, sempre com os olhos fixos para a juíza.

“Muitas vezes fiquei sem entender nada”, disse Julio Latorre, o segundo da oitiva, reclamando que o tradutor “tirava suas próprias conclusões sobre o que estava sendo dito”. “Tinha a impressão que seria algo mais simples, mas foi muito duro, o clima de intimidação era muito pesado”, afirmou. Sem nervosismo e seguindo a mesma linha de seus companheiros, reafirmou: “vim aqui para salvar vidas e acabei sendo criminalizado”.

“Simplesmente atendemos ao pedido de outros voluntários que tinham a informação de que um barco de refugiados se aproximava de Mytilene”, repetiu Quique Rodríguez. No chamado “gun fire”, um dos pontos de observação de voluntários que se lançam ao mar para resgates, ele lembrou: “sou bombeiro, salvo vidas, esse é o meu dever e não pensei duas vezes antes de me juntar aos grupo”.

Por volta de 15h, a juíza suspendeu o julgamento para tomar a decisão. Foram duas horas de espera e muitos cigarros antes que a sessão fosse retomada. “Está escrito na constituição (grega) que quando o assunto é salvar vidas, outros artigos têm menor importância”, defendeu Haris Petsikos, o advogado dos três bombeiros.

“Vejam estas fotos”, disse ele, mostrando duas imagens, uma com o barco da Guarda Costeira e outra com a embarcação usada pelos ativistas. “Se eles quisessem fugir de verdade, não teriam sido presos já no porto (de Mytilene). O barco deles é muito mais rápido. Não houve qualquer tipo de tentativa nesse sentido”, afirmou.

Antes do veredicto, já quase sem argumentos, a promotora disse que eles deveriam ser julgados culpados “porque mesmo com chamadas telefônicas, eles permaneceram 40 minutos sem qualquer tipo de comunicação em alto mar, o que conflagra a tentativa de tráfico de pessoas”. A réplica de Petsikos encerrou o assunto: “Por que então as autoridades não estavam incluídas no grupo de WhatsApp (usado por voluntários para trocar informações sobre a chegada de botes) se a ideia de todos aqui é de cooperação?”.

Quando a palavra enfim chegou a juíza, ela levou cerca de 30 segundos para declarar que todos estavam absolvidos. Havia a expectativa geral de uma declaração longa e fundamentada, mas a brevidade do veredicto deixou todos atônitos. Esse clima só foi rompido quando a tradutora afirmou positivamente com a cabeça. Foi a deixa para todos vibrarem com o fim do pesadelo, desnecessário na vida de cinco pessoas que se dedicaram - e seguirão dedicando-se - a salvar vidas.

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