PADRE INFLUENCER

Júlio Lancellotti só foi ordenado na 3ª passagem pelo seminário. Hoje, mobiliza progressistas e conservadores

Felipe Pereira (texto) e Fernando Moraes (fotos) Do TAB, de São Paulo

Júlio Lancellotti virou assunto no fórum nacional de promoção e demolição de reputações, as redes sociais. Era 2 de fevereiro, uma terça-feira, quando ele postou em seus perfis uma foto em que marretava blocos de concreto embaixo de um viaduto em São Paulo. Muitos viram ali a defesa dos fracos e oprimidos. Outros enxergaram na ação um ato marqueteiro, que daria a usuários de drogas as condições para continuarem no vício.

Alheios ao falatório, funcionários da prefeitura cuspiam fogo. Diziam que a remoção começara na quinta-feira da semana anterior, após comunicação da Folha de S.Paulo. O jornal publicou matéria na segunda-feira e Lancellotti apareceu no dia seguinte.

Pedreiros estavam no final do serviço quando o padre pediu a marreta emprestada para tirar a foto. As referências dirigidas ao comportamento do sacerdote incluem termos como "explorar miséria" e "transformar o caso em palanque".

Ocupantes de cargos mais altos na administração municipal não estavam irritados. Eles consideram a colocação dos blocos de concreto um erro, e o post, uma resposta proporcional ao tamanho da bobagem.

Agitar as redes sociais e mobilizar apoiadores e opositores é aquilo que pode se chamar de "efeito padre Júlio", um cara que causa desde criança.

O começo de 1960 trouxe uma boa nova para os moradores do Tatuapé, em São Paulo: Júlio Lancellotti estava indo para o seminário. A vizinhança ficou tão feliz que ajudou a montar o enxoval. Não era orgulho, era alívio. As partidas de futebol e as guerras de pedra detonavam as vidraças das casas. Rojões explodiam nas caixas de correio. O menino de 12 anos era um selvagem.

Com calças, bermudas e cuecas bancadas pelos vizinhos, Júlio venceu as seis horas de trem até Araraquara. Foi em busca de Deus e encontrou rigidez e castigo físico. Conversou durante a aula? A vara de bambu estala três vezes nas mãos.

Certa vez, Júlio ria de um gracejo de Euclides, um colega de turma, quando sentiu o rosto arder. Recebeu um tabefe do padre professor de francês que achou estar sendo vítima de chacota. Na sequência, foi obrigado a buscar a vara e levantar as calças. Apanhou nas pernas. A última humilhação foi assistir à aula de joelhos.

Nas férias, ele não quis mais saber de estudar para padre. O alívio dos vizinhos durou meio ano.

O garoto se afastou do seminário, mas continuou a frequentar a paróquia, hábito que não encontrava paralelo na família. Bom de balbúrdia e ruim de nota nos primeiros anos de escola, Júlio gostava de irmã Inezita, uma senhora de óculos de lentes grossas e que, mesmo assim, enxergava pouco. O estudante aprendeu a responder à missa em latim só para lhe agradar. Virou coroinha contra a vontade do pai.

O convívio levou à experiência frustrada em Araraquara, mas o garoto voltou diferente. Passou a gostar de estudar, declamava poesia.

A mãe amava Érico Veríssimo e trabalhara como secretária bilíngue. Deixou o serviço quando casou porque, nos anos 1940, era tarefa do homem sustentar a casa. Júlio identifica aí o patriarcado, a ideia de que a mulher tinha de ser submissa ao marido.

Isso ele diz hoje. Naquela época, concentrava suas atenções nas vizinhas Sônia e Sueli.

"Brincávamos de médico, de casinha... Meu irmão era o marido da Sueli e eu era o marido da Sônia." O interesse era recíproco. "Elas tanto tinham curiosidade em relação a nós como nós tínhamos em relação a elas. E era um tempo em que não era tudo tão permissivo como é hoje."

As brincadeiras não terminaram em casamento. O que acabou foi o antigo colegial (atual ensino médio). Júlio ainda queria ser padre e entrou para o seminário dos agostinianos. Os três primeiros anos foram tranquilos e ele estudou grego, latim, francês, inglês e enfermagem.

Em 1968, um novo padre assumiu a turma. Ele soube que Júlio, já noviço, gostava de trabalhar na enfermaria. Afastou o seminarista da função. A pedagogia por trás da medida era aprender a educar a vontade e a renunciar ao desejo.

O novo mestre também impôs silêncio e isolamento. Os seminaristas só podiam conversar entre si e foi proibido o acesso a rádio, TV e jornais. Livros, apenas os devocionais. Érico Veríssimo estava censurado. Em junho, Júlio foi expulso por não se adequar à doutrina.

Ele diz que até hoje a Igreja Católica é o maior foco de resistência a sua atuação. "Os grupos que mais me atingem são de dentro da Igreja. Os bolsonaristas também estão dentro da Igreja."

Aos 19 anos, Júlio era um rapaz decidido a abandonar a carreira religiosa. Ele não acredita que ser padre seja questão de vocação ou que o destino de alguém esteja predeterminado. "Essas escolhas são existências, são momentos da vida. Possibilidades que se abrem, tendências que você tem."

Naquele momento, fez mais sentido estudar pedagogia, engatar uma especialização e dar aula. Júlio distribuía as cadeiras em círculo e o material ficava no centro. Tudo era de uso comum. Às vezes, a turma saía em expedição. Buscava materiais descartados que virariam brinquedos.

Júlio trocou de profissão, mas continuou trabalhando com jovens. Foi admitido no Serviço Social de Menores até se licenciar por causa de uma hepatite. Restabelecida a saúde, virou diretor do Reformatório Modelo de Menores.

Num padrão que se repetiria em toda sua trajetória, a convivência com o aparato de segurança pública foi problemática. Júlio reclamou de violência e corrupção. Estava desgostoso. O Brasil vivia sob ditadura, e ele engrossava as manifestações da oposição. O trabalho aborrecia e o plano era pedir demissão.

O caminho surgiu na própria igreja. Havia padres que compartilhavam a visão de mundo de Júlio, incluindo o Arcebispo de São Paulo. Dom Paulo Evaristo Arns encabeçava a luta contra o regime militar e focava a atuação paroquial nas periferias e nos grupos vulneráveis.

O arcebispo havia nomeado um bispo, Dom Luciano Mendes de Almeida, para a área onde Júlio trabalhava. A assistente social do reformatório do qual ele estava para se demitir integrava a Pastoral do Menor e sugeriu uma conversa entre os dois. Dom Luciano pediu sua transferência para a pastoral.

Júlio nunca se afastara da igreja, era inclusive catequista, e em 1978 encontrou refúgio na Teologia da Libertação. Criada na América Latina como uma resposta às diferenças sociais e econômicas da região, ela mudaria os caminhos do catolicismo no Brasil.

Faltava resolver a situação da batina. Em meados de 1980, Dom Luciano sugeriu que Julio voltasse ao seminário. O assunto ficou martelando e em dezembro ele decidiu se tornar padre pela terceira vez.

Teve quem ficasse pistola. Havia três anos que Júlio namorava Cecília, psicóloga e colega de trabalho.

Júlio também enfrentou resistência no seminário. Aderir ao grupo do arcebispo de São Paulo significou respaldo a sua visão de mundo e reservas de setores da igreja.

Em dezembro de 1983, setores da sociedade de São Paulo passaram a ter objeções às ações da pastoral.

Quando gritaram "pega ladrão" no Largo de São Francisco, no centro de São Paulo, Joílson de Jesus, 15, saiu correndo. Acabou interceptado por um procurador do Estado.

Jeferson Pires de Azevedo Figueira confirmou ter derrubado o garoto, mas disse que a morte ocorreu porque ele caiu de mau jeito. O laudo apontou que o adolescente morreu em consequência de uma luxação na coluna que comprimiu seu pescoço e bloqueou a respiração. Júlio trabalhava na Pastoral do Menor e afirmava que Joílson fora pisoteado até a morte.

No IML, Lancellotti experimentou um aperitivo do que estava por vir. Os funcionários se recusaram a limpar e vestir um "trombadinha". Ninguém aceitava receber o velório. De Brasília, Dom Paulo determinou que levassem o corpo do garoto para a sede da pastoral. O caso mobilizou quem comemorava a morte de Joílson e os defensores dos direitos humanos.

Radialista famoso na época, Afanásio Jazadji pediu para os ouvintes jogarem ovos e tomates na catedral. Lideranças de movimentos sociais compareceram ao velório de Joílson. O caso já tem quase 40 anos, os personagens mudam, mas a polarização entre essas visões de mundo se repete.

Júlio se ordenou padre em 1985. De lá para cá, sua presença nas discussões é frequente. A diferença é que hoje o rebuliço acontece nas redes sociais. Youtuber de sucesso e dono de meio milhão de votos na última eleição para prefeito de São Paulo, o deputado estadual Arthur do Val (Patriota) é um dos principais antagonistas de Lancellotti.

Do Val afirma que lideranças como o padre impedem que os prédios tombados da região central da cidade, onde fica a cracolândia, tenham a fachada restaurada e sejam usados como pontos de comércio. Ele acredita que isso levaria ao renascimento da área. Baseado nessa linha de raciocínio, chama Júlio de "cafetão da miséria".

"Não é à toa que nós temos cracolândia. Não é questão de mais assistencialismo, nem tiro, porrada e bomba, mas de zoneamento, de Plano Diretor", diz.

Integrantes da Guarda Civil Metropolitana que conversaram com o TAB em condição de anonimato reclamam que o assistencialismo mantém as condições para as pessoas continuarem vivendo no crack.

Os bolsonaristas compõem outro grupo que faz oposição ao padre. Cris Godoy candidatou-se à vereadora em 2020 reclamando que pessoas como Lancellotti ensinam a constranger policiais e guardas civis. Ela vê uso político no trabalho do "padre comunista" e diz que o correto seria sua excomunhão.

Júlio diz que respeita os pontos de vista, mas fala que não adianta gastar tempo e energia rebatendo. "Num mundo como o nosso você vai ser aceito e vai ser rejeitado."

Lancellotti tem opositores porque, há décadas, é uma voz influente. Todo dia ele reza missas às 7h para meia dúzia de pessoas, mas obtém muita repercussão com seus posicionamentos nas redes sociais e entrevistas.

Vereador em São Paulo e pastor, Carlos Bezerra Júnior (PSDB) conhece o padre Júlio há mais de 20 anos. "As formas de comunicação mudam, e padre Júlio corre atrás para se atualizar e manter a conexão de que necessita para ser a ponte entre a população de rua e os gabinetes com ar-condicionado."

O sacerdote também lê a realidade como poucos. Causou furor o ato de desagravo ao lavar os pés da trans Viviany Beledoni em 2015, ano em que ela foi ameaçada de morte por desfilar crucificada na parada LGBTQI+.

"Ele me abraçou, pediu desculpa em nome dos católicos e falou que essa [o preconceito] não era a opinião de todo mundo."

Hoje, a principal atuação de Lancellotti é junto aos moradores de rua. Outros grupos que fazem trabalho semelhante lhe fazem críticas. Reclamam da exposição exacerbada e argumentam que quem faz solidariedade não precisa publicizar.

O assunto foi o único que tirou Júlio do sério em três manhãs de entrevistas ao TAB. Tanto que ele retornou ao tema quando a conversa terminou. "Quem fala isso, em geral, não faz nada. Pergunta para essa pessoa o que ela faz pelos pobres."

Coordenador de um projeto social na cracolândia, o pastor Rica, da igreja Bola de Neve, tem total apreço por Júlio. Mas ele diz que a adoração da mídia por Lancellotti faz jornalistas atribuírem a ele ações inexistentes.

O pastor ressalta que não é iniciativa do padre essa hipertrofia nas realizações, mas obra da imprensa — já teve site elencando motivos para Lancellotti ganhar o prêmio Nobel da Paz. Rica diz que, avaliando os relatos dos jornais, sites e TVs, tem-se a impressão de que o sacerdote está todo dia na cracolândia, coisa que não ocorre.

Padre Júlio concorda com o pastor Rica e confirma que não está na cracolândia todos os dias. Sobre a imprensa, Lancellotti levanta as defesas imediatamente. Ele diz que nunca se sabe quando virá uma rasteira dos jornalistas.

A animosidade vem desde 2007, quando um ex-interno da Febem (atual Fundação Casa) disse que na adolescência recebia dinheiro de Lancellotti em troca de sexo. Citou um auxílio financeiro para comprar uma Mitsubishi Pajero com indício da intimidade entre ambos.

Na época, Lancellotti argumentou que estava sendo vítima de chantagem. Além de ter o nome jogado na lama, seu advogado afirmou existir medo de agressão. A Polícia Civil investigou o padre e o ex-interno da Febem.

Ao final da apuração, o ex-interno e a namorada dele foram acusados de extorsão. Ambos foram condenados. O padre foi absolvido das suspeitas. Falar da história faz Júlio quase chorar.

"Te cria um assombro porque é tão absurdo. E quando você percebe, tudo que você falar vai ser usado contra você."

Houve desconfiança mesmo com a absolvição, mas aos poucos o padre restabeleceu sua reputação. Seu nome ganhou ainda mais projeção na pandemia. A imagem de um senhor de 72 anos carregando comida todas as manhãs para dar a quem não tem nada atrai muita simpatia.

Mas engana-se quem pensa que a relação entre Lancellotti e moradores de rua é harmônica todo o tempo. Quando a pessoa pede doações por dias seguidos, ouve a resposta atravessada de que é hora de procurar trabalho.

Numa manhã, um homem insistia numa cesta básica. Ameaçava roubar se não fosse atendido. Escutou desaforos. "Procuro ver a necessidade, mas também dou umas cortadas. Mas você só tem liberdade de chamar a atenção e pôr limites se quer bem. Eles sabem que, quando precisarem, eu luto por eles."

Padres, pastores e demais líderes religiosos são influenciadores por natureza: o trabalho deles é orientar caminhos espirituais. Mas o envolvimento de Júlio nas causas que escolheu defender extrapola os limites religiosos. Com seu jeito de ser e suas bandeiras, querendo ou não, ele anima as claques de duas visões de mundo antagônicas e estridentes, nesses tempos de polarização.

Um padre que estampa a imagem de irmã Dulce nos moletons que distribui à população de rua dá ideia de como gostaria de ser lembrado. Ocorre que não depende dele: a opinião alheia sempre escapa ao controle. Mais inviável ainda é controlar a imagem que as próximas gerações terão.

Mas há pistas. Um Brasil mais progressista ou mais conservador responderá boa parte da questão de como ele será lembrado.

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