SOLDADO DE MANICÔMIO

Os 27 anos de José da Conceição como testemunha do horror no Hospital Psiquiátrico do Juquery

Marie Declercq (texto) e Keiny Andrade (fotos) Do TAB Keiny Andrade/UOL

Um dos piores dias da vida de José da Conceição cheira mal. Foi no fim da década de 1980, quando andava pelo pátio de uma das Colônias do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (SP), onde trabalhava como auxiliar de enfermagem havia quase 20 anos.

Conceição tinha acabado de ser transferido do Manicômio Judiciário para uma das Colônias Masculinas — que ficava afastada das demais unidades do hospital — e testemunhava o começo do desmonte do Juquery, que entre os anos 1960 e 1970 chegou a ter mais de 15 mil internos.

Naquele mundaréu de gente, seus olhos miraram um homem nu em um canto imundo. O paciente o reconheceu e veio ao seu encontro, com as mãos cheias de fezes. O homem era Zé Carlos, ex-auxiliar de serviços gerais e cantineiro informal. Vendia quitutes para os funcionários e visitantes do Juquery em época de festa junina.

Não são poucos os funcionários do Juquery que viraram pacientes, mas a imagem ficou marcada à brasa na memória de Conceição. O ex-colega falava e agia como se ainda fosse cantineiro, e apontava para um montinho de fezes no canto. Eram os "doces" juninos que estava preparando, como nos velhos tempos.

De imediato, o capa-branca (apelido dos funcionários do Juquery, por causa do uniforme) se afastou de Zé Carlos e abandonou o plantão. Não queria mais voltar. Foi quando percebeu até que ponto o ambiente pode mexer com a cabeça de quem entra ali.

ENTRE A CASA E O HOSPÍCIO

Por pouco, Conceição não seguiu o mesmo caminho de Zé Carlos, mas teve ajuda para não deixar o manicômio tomar as rédeas da mente. Resistiu à depressão, voltou a trabalhar depois de um mês e ali permaneceu até sair de vez, em 1997. Já Zé Carlos morreu anos depois, em uma das colônias, nas mesmas condições deploráveis.

Essa e outras histórias catalogadas cuidadosamente em sua memória viraram o livro "Cinzas do Juquery - Os horrores no maior hospital psiquiátrico do Brasil", escrito com o jornalista Daniel Navarro Sonim, que será lançado dia 10 de março pela Editora Noir, sobre as quase três décadas de trabalho no Complexo Hospitalar do Juquery, primeira instituição brasileira dedicada ao tratamento dos chamados "alienados" da sociedade.

Conceição conta essa história em sua casa arejada, de paredes pintadas de azul-celeste, no Jardim Progresso, bairro de Franco da Rocha. O enfermeiro aposentado atendeu ao portão com pés descalços e a chave do carro na mão, pronto para um passeio pelo Juquery, que fica a menos de 15 minutos de carro dali. Recebeu a reportagem de TAB na companhia da esposa e dos três cachorros.

Detento encarcerado no Manicômio Judiciário do Juquery, em 1979

Arquivo/Estadão Conteúdo Arquivo/Estadão Conteúdo

LAR DOS INDESEJADOS

Inaugurado em 18 de maio de 1898, o Juquery nasceu como uma Colônia Agrícola de Alienados. Pouco depois, o médico Francisco Franco da Rocha fundou, no mesmo terreno, o Asilo de Alienados do Juquery, para onde eram enviados desde pessoas com doenças mentais a "improdutivos" — em resumo, a massa indesejada que ocupava as ruas de São Paulo e incomodava a elite paulistana.

Com a comunidade médica brasileira abraçando, na primeira metade do século 20, a política da exclusão, o Juquery cresceu. Em torno dele cresceu também Franco da Rocha. Até quase o final do século 20, a cidade era o dormitório dos trabalhadores do manicômio.

Conceição e sua esposa, a potiguar Ana Anita, 70, que também trabalhava ali como auxiliar de enfermagem, eram parte dessa população. Casados há mais de 40 anos, eles se conheceram nos jardins da instituição, frequentados pelos funcionários na hora do almoço. O resto é história de casamento. "Minha vida se resume ao Juquery", comentou Conceição, enquanto era observado pela esposa.

O casal viu a cidade mudar completamente ao longo das décadas. Do quintal da casa é possível ver, do outro lado da avenida, a construção de um condomínio fechado. Uma névoa terrosa deixa uma película de poeira nos móveis. "A paisagem mudou, mas terra sempre teve", relembra Anita.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

APENAS UM SOLDADO

Conceição trabalhou de 1970 a 1997 no Juquery. Formou-se em enfermagem quando saiu e trabalhou até 2008 no Hospital Geral de Taipas, onde se aposentou. Quando perguntado sobre os anos de capa-branca, diz que foi perda de tempo para sua formação. Mas deixa escapar, com ar de melancolia, que, se não fosse pelo Juquery, não teria formado sua família — Conceição e Anita tiveram três filhos e todos trabalham na área da saúde.

Há uma pintura de Santo Expedito feita por ele, logo na entrada da casa. Perguntado sobre por que escolheu como imagem o santo das causas impossíveis, limita-se a dizer: "ele era um soldado, e soldado cumpre as ordens do imperador".

Sua vida dentro do Juquery é descrita, na entrevista, como um combate. "Com o tempo, você vai se acostumando com a trincheira e, quando menos perceber, está falando como os outros de lá falam, fazendo o que os outros fazem. Eu recebia ordens, apenas. Era um soldado."

Soldados observam confusão durante rebelião de detentos, em 1983

Arquivo/Agência Estado Arquivo/Agência Estado

UM CARCEREIRO

Construído em 1933, o Manicômio Judiciário foi desenhado pelo arquiteto Ramos de Azevedo em formato de T, para que as disposições dos corredores fossem adequadas à vigilância dos guardas. Um deles era Conceição, que descobriu que o nome de sua função maquiava o que realmente teria de fazer.

Foi assim por 18 anos. Ele abria e fechava os portões, organizava as filas e conduzia os presos para a rotina: acordar, café da manhã, almoço, jantar, banho, dormir e tudo de novo no dia seguinte. Dos vários pacientes, recorda-se bem de João Acácio Pereira da Costa, o "Bandido da Luz Vermelha", preso por assaltos e homicídios, e de Benedito Moreira de Carvalho, o "Monstro de Guaianases", que matou sete meninas nos anos 1950 e trabalhava no refeitório.

Curioso, Conceição preferia os livros a engatar prosa hostil com os colegas que gostavam de brigar e de se corromper, fazendo contrabando de objetos. Percebendo as condições precárias e a mistura de presos violentos com outros nem tanto, não demorou para que concluísse o óbvio: era ilusão esperar que alguém saísse do Juquery minimamente são.

A amizade com Antônio Borges, um paciente do Manicômio, o poupou de presenciar uma tragédia em 1983. Dias antes, Borges o chamou de canto e o advertiu para não aparecer no plantão de domingo. O capa-branca foi jogar futebol no dia da rebelião, que teve um saldo sangrento: seis presos e um funcionário foram metralhados por policiais militares que vieram "contê-la". Dois dos PMs, inclusive, estiveram envolvidos no Massacre do Carandiru, em 1992.

Ciente de que cada dia ali dentro era um risco, Conceição pediu transferência e foi trabalhar nas Colônias, onde testemunhou seu ex-colega com as mãos sujas de fezes. A cena grotesca e o descaso ainda mais flagrante o levaram a concluir que a transferência foi a pior decisão que tomou no Juquery.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

FANTASMA GIGANTE

Descemos de carro pelas ruas estreitas do Jardim Progresso, em direção ao portão principal do complexo. Conceição apontava para os prédios e dizia qual era a função de cada um deles.

Havia abusos no Manicômio Judiciário, mas a disciplina mantinha a instituição mais ou menos de pé. Já nas Colônias e no Hospital Central, onde estavam boa parte dos pacientes, a situação era de total abandono.

Largados pelos corredores, alguns com vestes mínimas, os pacientes recebiam apenas um banho por semana. Segundo Conceição, havia três maneiras de entrar ali: a família trazia, a polícia recolhia da rua ou entravam os que tinham problemas políticos — o lugar foi usado, desde a Era Vargas, como prisão política.

Alguns pacientes eram largados no Hospital Central com nome incorreto para não serem rastreados de volta à família. "Não era raro encontrar ficha de paciente com a inscrição 'Ignorado'. Quando a pessoa se dizia chamar Maria, por exemplo, nós a chamávamos de 'Maria Ignorada'", conta.

Mesmo em funcionamento parcial (existem pouco mais de 100 pacientes vivendo no Juquery, mantidos pelo Estado, resquícios da era manicomial da instituição), o aspecto dantesco é difícil de ignorar. Com quase 122 anos, a "cidade dentro da cidade" que é o Juquery permanece uma caixa-preta de histórias.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO

O evento-gatilho para a ideia do livro foi o incêndio de 2005 no prédio central, a "cabeça" do complexo. As chamas destruíram um volume enorme de registros, incluindo a lista dos pacientes que foram enterrados no Cemitério do Juquery.

Aposentado, Conceição conheceu o jornalista Daniel Navarro Sonim por um primo de consideração, Walter Farias — que também trabalhou no Juquery e, anos depois, virou paciente do lugar. Sua história foi contada junto com Sonim em "O capa-branca: De funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil", livro de 2014 que assinam juntos.

"Esse tipo de trabalho, não só o meu, mas o de José e do Walter, existe para contar e resgatar essas histórias. A gente tem que conhecer a história dessas pessoas para não repetir os erros do passado", disse Sonim ao TAB.

Circulando pelo antigo pronto-socorro, a impressão é de anacronismo: o prédio é da década de 1930, mas os móveis abandonados são dos anos 1990. "Decadência é uma coisa que demora para se ver", disse Conceição. "Na natureza é assim. Me lembra a inscrição em latim que está na torre do relógio do prédio central." Traduzida, significa: "estes ponteiros, como a vida, fluem, ainda que pareçam parados".

Hoje, o que se sabe dos pacientes e dos mortos do Juquery é fruto de trabalho de pesquisa e de CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito). O número exato de internos, no entanto, assim como os nomes de muitos que viveram e morreram ali, viraram cinzas.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL
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