O TOMBO E A SUBIDA DE KAROL

Após paredões e cancelamentos, Karol Conká se levanta com terapia, composições e faz as pazes com o deboche

Tiago Dias (Texto) e Mariana Pekin (Foto) Mariana Pekin/UOL

Diante do espelho do camarim, Karol Conká, 35, coloca as mãos na cintura e sorri. "Estou me sentindo a She-ra." O penteado com tranças lembra mesmo o capacete de uma guerreira adornada por acessórios dourados e um collant com estampa jamaicana. É assim que ela almoça uma feijoada num marmitex antes de começar a gravar o novo clipe. "Nossa, isso vai dar uma moleza", diz, na última garfada.

Numa tarde fria de agosto, em um estúdio na zona oeste de São Paulo, ela repassa a coreografia criada há poucas horas com a amiga Aisha Mbikila — que é modelo, DJ e diretora — num ensaio regado a gargalhadas, copão de uísque com água de coco e versões paródicas de hits que as duas criam compulsivamente. Há motivos para comemorar.

Escolhido para integrar a trilha do game "Fifa 2022", o novo single "Subida" ganharia naquele dia um vídeo colorido e cheio de efeitos na pós-produção. Com a levada do pagodão baiano, a letra parece falar sobre a intensa experiência vivida após o BBB:

Eu vejo muitos se contradizendo enquanto se perdem por likes
Colecionadores de dislikes, fábrica de gerar incapaz

A música, porém, é uma das poucas do novo disco feitas antes do reality. "Não parece que eu estou falando de agora?", pergunta. "É como se eu tivesse me mandado um sinal."

No estúdio com paredes pintadas de azul em chroma-key, Karol está com a energia redobrada. Faz piada, imita um jogador de futebol, finge subir a pequena escada cenográfica com dificuldade, como se satirizasse o clima otimista da música. Mas é só o diretor dizer "roda" que a postura muda. Apalpa rapidamente os seios, mexe lentamente os ombros, passa a mão com a luva nas pernas e sobe os degraus enquanto dubla, compenetrada, a própria voz que sai de uma caixa de som: "Tô na subida / E ainda vou subir mais".

Há alguns meses, quando reapareceu publicamente após a saída do BBB, o papo nas redes sociais era de que a cantora queria suavizar sua imagem. "Só porque eu estava com roupas claras", relembra. Ela então finge desfilar, entorta levemente a boca e carrega um tom de deboche, marca registrada na vida, nos palcos e em hits como "Tombei": "Agora estou mamacita. É assim que vocês querem?"

Quando deixou o confinamento dos Estúdios Globo, na noite de 23 de fevereiro, Karol Conká encontrou o país polarizado unido à força do ódio. Uma reação nunca imaginada por ela (nem por ninguém de sua equipe) ao receber o convite para o reality show. Topou por sentir um desânimo em relação à carreira, sentimento agravado na pandemia. Havia também uma unanimidade entre os amigos consultados: o Brasil descobriria a energia e o humor que eles conheciam de perto — e não tinha como isso dar errado.

Empresária de Karol como marca pessoal desde 2017, Fabiana Bruno foi uma delas. A expectativa para a cliente, bem-quista entre os anunciantes, era de colheita abundante após a exposição em rede nacional. A realidade chocou: era como se sua cliente e amiga emanasse alta radioatividade. "Recebi milhares de mensagens. Todos pediam para que eu e a agência largássemos a Karol. 'Isso vai espirrar em vocês', diziam."

Na primeira brecha, os amigos levaram Karol para um retiro pessoal no meio do mato. Nas redes sociais, a notícia era interpretada como uma "internação" após a cantora perder mais de R$ 1 milhão em contratos publicitários. Fabiana diz que apenas um foi cancelado. "O valor não chega nem perto disso", diz.

Longe da capital e das redes sociais, a artista parecia ansiosa, queria se explicar diante daqueles que continuavam a seu lado. "Saí achando que nem minha mãe queria olhar pra minha cara. Eu perguntava para todo mundo: por que você está aqui? Eu sou um monstro", diz Karol. Aisha se lembra do momento. "Foi bem difícil. Eu não queria ouvir aquilo, estava exausta do racismo. Eu queria mudar a frequência. Perguntava: 'tá, e a música?'"

O trabalho com o produtor baiano Rafa Dias, integrante do ÀTTØØXXÁ e mais conhecido como RDD, voltou na sequência. O tombo, desta vez mais literal, fez o projeto iniciado ainda em 2020 ganhar novos sons, gravados entre crises de choro. Parceiro desde o início da carreira, DJ Hadji aparecia nas sessões com a missão de levantar o astral. Pedia mais animação de uma Karol cabisbaixa do outro lado do vidro: "Vai, você é foda! Cadê minha poderosa? Cadê minha bandida?". Lembrava incessantemente que Beyoncé havia sido traída e que 50 Cent sobreviveu a centenas de tiros. Karol ria. "Se não fosse por isso, não haveria disco", reconhece.

No primeiro encontro com o TAB, em junho, Karol parecia retraída. Pediu desculpas por aparecer na frente da câmera — achou que se tratava de um vídeo. "Aquelas achando que era um 'doc' pro UOL, 'A vida depois do tombo do tombo'", disse, quebrando o gelo.

Com salto plataforma, vestido claro e cabelo arrumado em pequenos cachos, Karol fez questão de mostrar cada canto do sobrado que mantém desde 2018 como estúdio, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Começou pelos lustres multicoloridos, que a lembram os do "Castelo Rá-Tim-Bum" (TV Cultura). "Meu sonho era ser uma das fadas do lustre."

No segundo andar, um corredor separa o estúdio do closet. Entre roupas, maquiagem e sapatos, muitos looks eternizados no BBB estavam nos cabides. Nunca mais usou nada. "Dá um ruim", lamenta. O sentimento a fez desaparecer das caminhadas que fazia de vez em quando com a cachorra Chantilly e o filho Jorge. "Não queria lembrar as pessoas de coisas ruins. Por isso mudei as roupas."

Na porta do estúdio, onde a fotografia das mãos de uma velha baiana negra, ladeada por anéis, parece dar as boas-vindas, o clima é outro. Na mesa de som, RDD lapidava as faixas novas, aumentava o som de uma canção mais R&B, com um vocal diferente que em nada lembra o que já ouvimos de Karol. "Quando eu trabalhava com outros produtores, alguns tesouravam essa parte: 'você está cantando, não está rimando'", ela lembra. E brada, enquanto se ouve: "Cantora! E com uma carreira bem bonita lá fora", diz, como se emprestasse um novo significado às frases marcantes ditas no BBB e que, àquela altura, alimentava memes — a favorita da mãe é o "limpa, limpa tudo".

Dizia que estava voltando a ter contato com "aquela" Karol do BBB — e logo faz piada. "O novo álbum deveria se chamar 'Lá Fora'. Ou 'Discão'. Qualquer coisa bota meu discão, que eu tenho uma carreira bem bonita lá fora."

O ar parece que vibra diferente quando Karol Conká adentra o espaço. Cercada de amigos — que a descrevem como uma pessoa radiante, pilhada, engraçada —, ela logo fica à vontade para fazer imitações de outros brothers do programa e pontuar suas falas com alguma tirada. Quando Hadji passa na frente da câmera, ela ralha: "Você está com seu furico na câmera aí ó". O DJ responde no mesmo tom: "Vou te cancelar!"

Sempre foi assim, desde a escola em Curitiba. "Tinha professor que adorava, achava um barato. Tinha uns que não, eles olhavam com cara de 'vou te botar no paredão'", relembra. Na época, sua mãe, Ana Maria, dizia que a filha precisava dosar a espontaneidade. "Mas ela faz igual. É a coisa do 'vou dar na sua cara'. Minha família é assim, a gente fala desse jeito, mas é mais brincando do que falando sério."

Um mês após sair do reality, a cantora acordou de sobressalto com dor. Choramingou com a mãe, que respondeu, sem massagem: "Karoline, já faz um mês que você saiu do BBB, tem gente morrendo no Brasil."

"E ela tem razão, sabe? Ela não é rapper, então ela não é ácida. Eu já vou assim: pá pá pá, na bazucada. Minha língua é uma bazuca, porque viver machuca, já dizia o Djonga", diz.

Envergonhada com os momentos de explosão no programa, Karol começou a fazer terapia — embora acreditasse que nenhum profissional aceitaria atendê-la depois do reality. "Eu chorava, achava que era louca. Podia ser uma crise de abstinência, eu podia ter bipolaridade, mas não foi. Estava num desequilíbrio emocional. Sempre tive TOC. Se a coisa não está do meu jeito, eu vou ficar muito nervosa, ainda mais num reality, sob pressão, sem meu vinho", explica.

Hoje, ela diz ter diminuído o consumo de álcool e maconha, itens antes essenciais nos camarins e shows. "Agora eu passo o dia inteiro tomando um litro de chá", diz, mostrando uma garrafa térmica com um aroma de canela e gengibre. "Nem parece o quentão que eu tomava lá em Curitiba."

A partir do momento que a preta fica nervosa ou tem a boca de bazuca, como é o meu caso, ela vira a pirada, a psycho.

Karol Conká

Enquanto o novo trabalho rola na mesa de som, Karol e Rafa dançam no estúdio, felizes com o resultado. O encontro entre os dois rendeu um disco embebido no molho do pop baiano, com letras que refletem sobre o cancelamento sofrido e a atualização de antigas metas, como ela narra em "Mal Nenhum": "Eliminador de ontem, já nem me vejo no ontem / O que eu vivi eu sei".

Naquela tarde, com a lista de músicas já definida, ela se mostrou receosa com uma música em especial, com versos embebidos de autoestima: "Mais uma vez estou pisando aqui / Eu sou foda, pode admitir / Quem vaia é quem vai aplaudir / Não dá pra resistir".

"Acho que está muito Jaque", opina, referindo-se ao apelido pejorativo que ganhou após o BBB, Jaque Patombá, em referência a "Tombei". "Olha aí, a língua como chicote." Rafa argumenta: "Mas você é isso também". Os amigos concordam. Karol enxerga uma dualidade na forma como o público a entende: "Ao mesmo tempo que o povo sempre gostou disso, as pessoas querem que eu mate isso. Eu automaticamente perco a vontade de fazer minhas coisas. É como se estivessem me obrigando a ser algo que eu não sou."

Ela confidencia que até pouco tempo atrás se pegava monossilábica, algo difícil de se imaginar. "Linkaram esse jeito da minha personalidade com atitudes feias que eu tive na casa. Eu me pegava controlando minha fala para as pessoas não acharem que eu sou má."

No computador, Rafa abre o arquivo de uma música que muito possivelmente o público não vai ouvir. Foi gravada na brincadeira, com Karol improvisando em rimas a experiência da maneira mais literal — e debochada — possível: "Fiquei montada na soberba baw baw / Passei por cima de mim mesma baw baw / Toda cagada na casa e me achando / Do lado de fora povo cancelando."

O pré-refrão tem coro dos amigos, repetindo a ordem na época: "Vota pra tirar a Karol". Ela então engata o refrão, como um conselho: "Qualquer coisa me bota no paredão / Eu vou superar, pode ficar de boas". Uma piada que certamente seria um grande hit, mas que valeu mesmo por uma sessão de terapia. A partir dali, o trabalho fluiu.

Seis meses após sair do reality da Rede Globo, Karol está mais à vontade na fala e nas redes sociais, onde ressurge gradativamente, fazendo coreografias nos Stories ou falando sobre saúde mental num programa próprio no Instagram, o "Vem K".

Fabiana Bruno diz que a conversa com o mercado publicitário está sendo retomada — efeito direto da forma com que a artista tem abraçado o momento pós-tombo. "Toda grande árvore tem luz e sombra, toda potência dela vale também nos piores momentos", diz a responsável pelas parcerias.

Passado o dilúvio, a rapper que adorava fazer festinhas no estúdio tem ido cada vez mais para o mato. Conta que chegou a receber mensagens de artistas e famosos com desculpas por terem entrado na pilha e falado mal dela naqueles dias de fevereiro. Alguns culparam a pandemia. "No fim, não fui só eu que me perdi", comenta. Diz que evitou discutir, "senão é rajadão". "E agora rajadão só nos números, nos plays, só no amor", diz, após repetir coreografia por quase uma hora, mas ainda com a pele cintilante de um creme glow.

O novo disco, ainda sem data de lançamento, já tinha um título provisório, "Urucum" — planta usada por indígenas para tratar doenças, cujo pó da flor tinge os corpos de vermelho em rituais. Talvez tenha sido este também o anti-inflamatório de Karol contra as dores recentes.

"Foi como se essas pessoas realmente quisessem que eu sumisse, e eu não posso dar esse poder para elas definirem o rumo da minha vida", disse, antes de voltar ao estúdio para mais um take na escada cenográfica. "Eu tenho mais é que subir."

Topo