Geopolítica do kpop

A música que vira a cabeça (e os corpos) dos adolescentes faz parte de um projeto estatal

Faltando dez segundos para o meio-dia, uma legião de jovens fazia uma contagem regressiva em frente à bilheteria do estádio Allianz Parque. Uma fila de gente a perder de vista pelas ruas da zona oeste de São Paulo aguardava ansiosamente para comprar ingresso para um show do BTS, banda pop sul-coreana - cuja cena é chamada de kpop - que chega pela quarta vez ao Brasil. Entre lágrimas, suor e gritos, a fila estava lotada de fãs que cantavam e dançavam no ritmo de "Boy With Love" e "Fake Love", grandes hits da banda que se apresenta nos dias 25 e 26 de maio. Algumas das fãs tinham acampado na fila.

Formada por sete garotos, o BTS (sigla para Bangtan Boys, que significa "garotos à prova de bala") conquistou o público adolescente da nova geração como os Beatles fizeram nos anos 1960, os Menudos nos anos 1980 e os BackStreet Boys nos anos 1990. Com clipes coloridos, cabelos e roupas estilosas, o grupo tem tudo o que uma boyband precisa: dança, ritmo e rostinhos bonitos.

Mas, além da histeria adolescente, o que faz as pessoas gostarem tanto assim de pop? O que tem a Coreia do Sul de tão impressionante para tocar os jovens corações de tantas nacionalidades? A resposta está mais relacionada à geopolítica e a um processo de construção histórica do que em um movimento espontâneo do mundo conectado.

EXPORTAR A TELA E O ARTISTA

Depois de sair da Guerra da Coreia (1950-1953), o devastado país ao sul da península se reergueu nos anos 1970, quando vivia sob um regime militar, e se tornou um grande Tigre Asiático, apelido dado à época às potências econômicas em ascensão no sudeste do continente. O foco dos investimentos, no entanto, estava na indústria. Rapidamente a Coreia se tornou exportadora de tecnologia e produtos industriais. Foi somente nos anos 1990 que o conteúdo produzido pela indústria cultural sul-coreana passou a ser visto também como um produto que o mundo deveria conhecer.

Em 1992, surgiu uma banda diferente de tudo que já havia sido visto por lá, o Seo Taiji and Boys. A imprensa chamou-os de "New Kids on The Block da Coreia". Eles usavam roupas da moda norte-americana, cantavam sobre juventude e tinham um ar rebelde. O grupo se manteve na ativa até 1996, dando espaço para o H.O.T, grupo que conquistou o país com o hit "Candy" e seu figurino e coreografia (ainda mais) modernos.

Naquele início de década, enquanto os grupos dançavam na televisão e faziam a cabeça dos jovens coreanos, o governo criava uma divisão para o desenvolvimento da indústria cultural dentro do Ministério da Cultura e do Esporte. "O governo começou a reconhecer a importância do conteúdo cultural a partir desse ponto", afirmou ao TAB Kilhwa Jung, PhD em comunicação e produtor da emissora coreana MBC. A administração seguinte, do presidente Kim Dae Jung (entre 1998 e 2003) foi a que começou a se envolver de fato com o desenvolvimento do mercado cultural coreano.

BOYBANDS E A META ESTATAL

Em 1999, em meio à chamada crise asiática, que abalou várias economias do mundo - num dos primeiros sinais de um novo estágio da globalização -, o governo de Seul estabeleceu uma meta de cinco anos para desenvolver a indústria cultural. Para isso, aprovou uma lei que destinava 1% do orçamento da união à cultura. "Foi uma mudança radical, considerando que os governos anteriores destinavam apenas 0,3%, 0,4% do orçamento para a cultura", diz Jung.

O PhD e produtor frisa que essas mudanças foram pontuadas por uma postura não autoritária, que se mantém até hoje quando se trata de investimentos estatais. "Apesar de o governo estar atento ao fenômeno da onda coreana promovida pela indústria cultural e pela indústria do entretenimento, ele não está diretamente investindo no conteúdo em si nem envolvido no processo de produção cultural. O governo apenas apoia e encoraja a indústria", diz.

Além do dinheiro destinado a promover atividades culturais, o governo também aplicou uma política de isenção de impostos para empresas que desenvolvessem produtos culturais. Nessa leva, muita gente passou a produzir filmes, novelas e principalmente música, com destaque para três gravadoras: SM Entertainment, JYP e YG, que até hoje lançam bandas de kpop. "O mercado cultural cresceu tanto que o governo nem precisa mais apoiar, especialmente o kpop", afirma Kwon Young Sang, diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil. Dezenas de filmes e séries na Netflix e shows internacionais esgotados já demonstram o quanto a indústria cresceu de forma independente em 20 anos.

TSUNAMI MUSICAL

O movimento de desenvolvimento dos produtos culturais coreanos foi batizado de "hallyu", que significa "onda" em coreano. A chamada "febre kpop" garantiu um crescimento de 18% para a indústria musical do país em apenas oito anos. Um dos principais responsáveis por transformar a música coreana em uma commodity de exportação foi Psy, que inaugurou a segunda geração do kpop com o hit "Gangnam Style" - o clipe da música, lançada em 2012, bateu recorde no YouTube com um bilhão de visualizações. Hoje, esse número já passou de três bilhões.

"Todo o mundo conhece o Psy, agradeço a ele, porque ele dá início a conversas sobre cultura coreana no mundo todo", diz Lisa Um, diretora do Centro Cultural Hallyu, que fica no bairro paulistano do Bom Retiro, onde a comunidade coreana está concentrada no Brasil. "Onde você vai as pessoas sabem que é música coreana", completa.

Antes, o kpop era conhecido apenas na Ásia. "Quando eu cheguei aqui, há 35 anos, não tinha nada de cultura coreana. As pessoas achavam que todo oriental era japonês. Quem sabia um pouco perguntava se eu era coreana do norte ou do sul", conta Um. E, mesmo entre a comunidade coreana, o kpop era pouco conhecido antes da explosão de "Gangnam Style". "Na edição de 2012 do Anime Friends, eu ajudei a montar um espaço sobre cultura coreana. Foi quando ouvi uma música em coreano no palco. Tinha três brasileiros dançando uma música de kpop do grupo Super Junior. Naquele tempo, ninguém sabia o que era", lembra. "Quando perguntei aos dançarinos, eles disseram: É do YouTube, dona Lisa."

O FATOR INTERNET

Saber usar as redes sociais e o YouTube a seu favor foi um grande diferencial para que o kpop estourasse. Marcado por clipes superproduzidos e coloridos, figurinos e coreografias impecáveis e músicas grudentas que misturam vários ritmos por segundo, o kpop conseguiu se consolidar nas plataformas digitais como nenhum outro movimento musical, incluindo aí o jpop (o pop japonês). "A gente só descobriu o kpop por causa da internet. As empresas souberam usar esse timing das tecnologias e das redes sociais", afirma Douglas Passos, moderador da página Meet Kpop no Facebook.

Foi também por causa da internet que as músicas pegaram no mundo todo. Várias delas têm trechos e títulos em inglês. As próprias bandas têm nomes em inglês ou siglas fáceis de decorar (como BTS, Black Pink, Girls Generation, Super Junior) para apresentar uma pegada mais internacional. Mas o grosso das letras é em coreano, uma língua completamente distante do inglês... e do português. "É na internet que a gente vê a tradução de qualquer música. Eu sei o que a música fala, apesar de não saber falar a língua, porque eu vi a tradução", diz Passos.

A produção de conteúdo sobre kpop feita por fãs na internet também é notável. "Existem muitos influencers falando sobre a Coreia e indo para a Coreia produzir conteúdo sobre culinária, novelas, clipes e filmes coreanos. O desenvolvimento da internet estimulou o interesse do público e fez o mercado crescer", afirma Sang. A consequência direta do aumento de interesse pelo kpop na internet é também o consumo de outros produtos da "hallyu". É quase como uma rede de consumo.

Além da divulgação do som e dos clipes, as redes sociais também mudaram as relações de fãs com seus ídolos e entre eles mesmos. Em sua pesquisa de mestrado na USP (Universidade de São Paulo), o antropólogo Thiago Haruo Santos estudou grupos que se reúnem para dançar as coreografias de kpop em São Paulo e observou as transformações proporcionadas pelas redes nas relações entre fãs. "O fã se vê engajado na trajetória do artista", diz. Por meio do Instagram, Twitter e YouTube é possível acompanhar bastidores e cotidiano dos artistas, fato que inaugurou uma nova era dentro da onda kpop, marcada pelo grupo BTS.

Mariana Pekin Mariana Pekin

QUANDO AS FÃS VIRAM ARMYS

Para alguns dos especialistas, é possível dividir o kpop entre uma era pré-BTS e pós-BTS. "O que o mercado de kpop tem que enxergar com o fenômeno BTS é que existe um relacionamento e uma comunicação voltada aos fãs que é estratégica, bem pensada", diz Sang. "Antes não tinha esse relacionamento, mas hoje os grupos olham para os fãs", completa.

A aproximação com as "armys" ("exército" em inglês e palavra pela qual são conhecidos os fãs do BTS) foi uma das chaves para o sucesso do grupo. Um segundo fator para o reconhecimento é simples: projeção internacional. "Nenhum outro artista teve esse boom de popularidade internacional como o BTS. Isso é uma vontade tanto do grupo quanto da empresa deles. Você tem grupos muito grandes na Coreia, mas as empresas não têm interesse em exportá-los para o mundo, porque eles já são muito famosos na Ásia", afirma Babi Dewet, uma das autoras do livro "Kpop - Manual de Sobrevivência" e apresentadora do podcast K-Papo.

Segundo Yoo Na Kim, fundadora do Centro Cultural Hallyu, o septeto nem é a banda mais famosa de kpop na Coreia do Sul, mas com certeza é a mais famosa da cena no mundo. "Eles criaram um público fora da Coreia, foram para os Estados Unidos, Europa, América Latina e começaram a ficar famosos. Lá eles não estavam em evidência", afirma Kim. O modelo BTS, que é gerenciado pela Big Hit, tem sido copiado por outras empresas para lançar grupos pelo mundo. "Hoje, quem é pequeno quer vir para o Brasil, porque é importante para o currículo. As empresas estão vendo que este pode ser um caminho", diz Kim.

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LINHA DE MONTAGEM DE ÍDOLOS

O grupo BTS não foge à fórmula do kpop e é mais um produto da "fábrica de idols" coreana. Idols (ídolos em inglês, assim mesmo sem tradução) são como os artistas de kpop são conhecidos. Eles são considerados diferentes de outros artistas. "É um fenômeno multitalento. As boybands que a gente conhece, como os Backstreet Boys, sabiam dançar muito bem, mas a gente não via coreografias muito elaboradas, clipes muito produzidos. No kpop, um artista simples canta, dança, produz, toca um instrumento e atua", explica Dewet.

"O kpop não é uma profissão que eles conseguem levar até os 40, 50, 60 anos. Tem um limite. Depois disso, eles vão seguir outras carreiras, seja fazendo filmes, novelas, sendo apresentadores", explica Kim. Como os idols têm muitos talentos, as bandas são formadas pelos melhores em cada área.

Ser um idol, apesar de um sonho para muitos jovens coreanos, no entanto, não é fácil. "Eles são presos a uma série de regras de sociedade, de comportamento e de estética", diz Dewet. Os idols cantam sobre amor, mas não namoram; cantam sobre a rebeldia juvenil, mas não podem se envolver em polêmicas. O trabalho é tão árduo e a pressão tão grande que há casos de depressão e suicídio entre os trainees.

A cultura do trabalho, no entanto, é parte da própria Coreia do Sul. Recentemente, o país aprovou leis trabalhistas que limitam as jornadas de trabalho para 52 horas semanais (no Brasil, o limite imposto pela lei é de 44 horas). Dentro do universo kpop, no entanto, a jornada para conquistar o sucesso é admirado pelas fãs.

Já a questão de saúde mental é um dos fatores que aproxima os fãs do som do BTS, por exemplo. "Passei por muitos momentos difíceis na minha vida, e eles trazem muitas mensagens relacionadas à vida dos adolescentes, aos problemas e falam para você amar a si própria. As letras deles tocam e me fortalecem muito", relata Amanda Sousa, 21, que acampou na fila para show em São Paulo. "Mudou minha vida, até meus pais falam que eu mudei e comecei a ver a vida com outros olhos, ter mais esperança e otimismo", completa.

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