VENEZUELA OSTENTAÇÃO

Las Mercedes, bairro nos arredores de Caracas, não sabe o que é crise

Elianah Jorge (texto) e Andrea Hernández (fotos) Colaboração para o TAB, de Caracas

Quem passa pela principal via expressa de Caracas na hora do rush tem a vista ofuscada pelo brilho do telão instalado no alto da Avanti. A loja de departamentos é escandalosa não só por fora: dentro dela há artigos de luxo a preços nada solidários. Às margens do poluído rio Guaire, que corta Caracas de leste a oeste, o prédio recém-inaugurado fica em Las Mercedes, bairro que passou a ser conhecido como um enclave de riqueza e opulência num dos países mais pobres das Américas.

Ainda ressoa na memória dos venezuelanos a frase do ex-presidente Hugo Chávez (1999-2013): "ser rico es malo" ("ser rico é ruim"). Mas basta uma visita a Las Mercedes para esquecê-la. O país, hoje comandado por Nicolás Maduro, passa por uma grave emergência humanitária, segundo órgãos internacionais. Mas tudo que não é visto em outras partes de Caracas se concentra ali, em pouco menos de 1 km²: arranha-céus em construção, carrões novos e importados, pedestres bem vestidos, e restaurantes e espaços exclusivos a quem está disposto a pagar caro.

No dia da abertura da Avanti, 25 de novembro de 2022, foram vendidas todas as TVs gigantes, cada uma por US$ 110 mil. Na mesma loja, um tênis Alexander McQueen custa US$ 900. Os preços são fora do esquadro, sobretudo onde o salário mínimo atualmente equivale a US$ 5,50 (cerca de R$ 28).

Durante o dia o bairro é um canteiro de obras. À noite, as ruas recebem Ferraris, Maseratis, Porsches. "Na Venezuela, milionário que se respeita anda de caminhonete blindada e tem escolta", explica a socióloga Angela Oraa, 58.

As classes C e D que circulam pelo local são formadas por funcionários que servem os abastados. Já os da classe E perambulam em busca de esmolas ou sobras de comida.

"Sempre venho pedir doações. Uma vez recebi US$ 20", conta um pedinte que circula por Las Mercedes a partir da tarde, "quando chega o povo com dinheiro".

Perto dali fica a concessionária da Ferrari. A movimentação na loja é discreta. Fontes informam que em 2022 foram vendidos cerca de 20 veículos da marca. O mais barato custa US$ 255 mil; o mais caro, US$ 1,5 milhão.

Muito antes do boom imobiliário em Las Mercedes, que dispara em 2017, o economista Henkel García, 49, instalou no bairro seu escritório de consultoria. Ele evita usar o termo "bolha" para explicar o que acontece na região. "Prefiro classificar o que vemos como um crescimento com foco na área comercial e voltado a um grupo com muito poder de compra."

A partir de 2019, a dolarização no país levou a um cenário econômico um pouco mais estável. "O que vemos agora é um governo não tão hostil com o empresariado, embora ainda não existam garantias aos investidores", explica Henkel.

O bairro tem duas vias principais. Uma delas é o endereço da Avanti: a avenida Río de Janeiro, que margeia o rio Guaire — testemunha silente do que acontece na capital. A outra é a Avenida Principal de Las Mercedes, que conduz às entranhas do bairro das "calles" (ruas) París, Nueva York, Londres.

No final dessa via surge o Hotel Tamanaco, cinco estrelas inaugurado em 1953. É lá que acontecem festas exclusivas. Foi assim na noite de 4 de dezembro, quando o DJ sul-africano Black Coffee tocou para um grupo que se dispôs a pagar US$ 20 mil por mesa. A apresentação varou a madrugada. Quem ainda mora em Las Mercedes se queixou do barulho, mas as autoridades nada fizeram.

Marina Taylhardat, 45, dona de uma marca de roupas, é responsável pela On The List, festa também realizada no Tamanaco que tem por slogan "you are one of the chosen ones" ("você é um dos escolhidos", em tradução livre). Até 300 pessoas podem participar do agito, desde que paguem entre US$ 50 (entrada para mulheres) e US$ 2.900 (mesa para até 15 pessoas).

Mesmo acostumada à ostentação, ela se assusta com o que vê na Venezuela nos últimos anos. "Pagar US$ 20 mil para ir a uma festa 'is crazy' [é loucura, em tradução livre]", diz, em relação ao show do DJ sul-africano. "Há muito dinheiro novo circulando com origens pouco controláveis." Marina se refere à exploração do Arco Mineiro, no sul do estado de Bolívar, na fronteira com o Brasil. Naquela região, lugar de dezenas de execuções e desaparecimentos, grupos buscam metais preciosos e depredam o meio ambiente.

Emergentes e ricos tradicionais têm endereços certos para reabastecer os guarda-roupas. Um deles é a loja da grife Carolina Herrera, que ocupa o primeiro andar de um edifício em Las Mercedes.

Numa noite de dezembro, vendedores e garçons esperavam cerca de 150 convidados para a apresentação da coleção outono-inverno. Na lista organizada pela relações-públicas Aura Marina Hernández, 74, mais conhecida como Blu, estavam nomes da alta sociedade.

"Desde julho de 2022 não vinha à Venezuela. Ao chegar demos uma volta por Las Mercedes para ver a Avanti, e é impressionante a quantidade de luzes, de lojas, de restaurantes novos! De quando saí do país, há cerca de dois anos e meio, para agora, a diferença é enorme. Antes, entre a crise e a pandemia, a cidade estava apagada. Agora o dinheiro, por algum motivo, está ficando e começando a circular", observa a estilista venezuelana Clarissa Egaña, que veio para o lançamento direto da Espanha, onde vive e comanda a marca Port De Bras. Feitas com malha comprada no Brasil, as peças de sportswear podem custar mais de US$ 300.

Maria José Samaniego, 45, é chilena e chegou ao país "ainda pequena". Ela e o marido são proprietários da franquia da Carolina Herrera. "Há mais de 20 anos temos negócios no bairro e tudo tem sido maravilhoso. Essa região tem uma magia: é um ambiente familiar, mas também está cercado por escritórios", explica.

Um dos vendedores, que preferiu não se identificar, tem mais de 1.200 nomes em sua carteira de clientes, entre eles "pessoas de grande influência no país". Morador de um bairro popular na zona oeste da capital, ele pega pelo menos duas conduções para chegar ao trabalho. "A venda mais alta que já fiz a um só comprador foi de US$ 18 mil. Mas a loja chega a vender cerca de US$ 100 mil em um bom mês."

A economia venezuelana começou a ruir em 2013, já sob Maduro, arrastada pela queda no preço internacional do petróleo. Na época, muitos bens começaram a escassear. Num país que por décadas viveu a bonança, a população teve de enfrentar a pobreza extrema.

Não havia investimentos, as lideranças políticas não chegavam a um consenso e, para piorar, em 2014, o país entrou numa espiral de violentos protestos. Os anos seguintes foram dramáticos.

Durante 27 trimestres consecutivos, a economia entrou em queda livre. Foram anos de hiperinflação — que chegou a mais de 1.000% ao ano. O cenário era tão caótico que sair do país parecia ser a única opção. Segundo a Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), cerca de 7,1 milhões de venezuelanos estão espalhados em todo o mundo na qualidade de refugiados ou imigrantes.

O quadro começou a mudar no final de 2021. De acordo com o Observatório Venezuelano de Finanças, criado por membros da Assembleia Nacional ligada a Juan Guaidó (líder oposicionista ao governo Maduro), o consumo aumentou 21% nos últimos meses. O crescimento é consequência da estabilização da produção petroleira, maior flexibilidade econômica (liberação da importação de produtos) e o fim da hiperinflação.

De acordo com o portal de notícias Armando.Info as empreiteiras Hermanos Perdomo, Grupo Binian e a Construtora 2PTO são as responsáveis por modernizar Las Mercedes. Uma publicidade anuncia que em 2026 será inaugurado o mais alto arranha-céu do bairro, com residências, hotel, escritórios e lojas.

A corretora de imóveis Érika Báez, 36, conta que há quatro anos começaram as buscas por imóveis em Las Mercedes. "Em um ano tive mais de 120 clientes querendo propriedades no bairro. Mas o interesse é para espaços comerciais, cujos preços variam entre US$ 2.300 e US$ 4.500 pelo metro quadrado."

A flexibilização urbanística de 2011 em Baruta, município da Grande Caracas onde fica Las Mercedes, permitiu aumentar a altura das novas construções. No afã, empreiteiros demoliram prédios de alto valor histórico para a cidade, como o Gastizar, uma estrutura de três andares construída em 1948. A modificação permitiu não só a construção dos gigantescos edifícios, mas incentivou o surgimento de coberturas comerciais, os "rooftops".

O urbanista Gonzalo Tovar, 55, aponta que as obras em Las Mercedes geram curiosidade graças ao contexto econômico. "Começam a aparecer edifícios gigantes sem destino claro. Não está nítido o tipo de demanda que haverá no curto prazo. Muitos estão vazios." Já para a corretora Érika Baez, "investir em Las Mercedes garante a recuperação do investimento no médio prazo".

O arquiteto Amir Saghir, 36, é um dos novos investidores de Las Mercedes. Há um ano e meio, ele abriu na ainda vazia Torre HTO a filial venezuelana do Minds CoWork, espaço de 800 m² que oferece área de trabalho para que empresas e profissionais utilizem as instalações do local por preços entre US$ 20 (por dia) e US$ 420 por mês.

"Antes estava em Miami, onde também tenho um coworking. Investi aqui cerca de US$ 400 mil que tinha guardado. Estou tendo mais retorno que lá, porque aqui não há tanta competição", detalha o empresário venezuelano de origem síria.

O bairro já sente as mudanças. Um morador que preferiu não se identificar conta que, com a excessiva iluminação noturna, os pássaros cantam dia e noite. "Quando inauguraram a Avanti e ligaram o telão, os morcegos ficaram perdidos. Foi um caos. Não reconheço mais o bairro onde moro desde pequeno."

Dezenas de árvores foram cortadas, dizem os moradores. Esse fator, atrelado ao uso de vidro em boa parte das novas construções, elevou a temperatura no bairro. Um mapa de calor de 2020, criado pela Universidade Central da Venezuela, revela que a temperatura em Las Mercedes é quatro graus mais alta do que em outras áreas da cidade.

"É um absurdo o que vejo pela janela de onde trabalho há 20 anos: os veículos param sobre as calçadas, que são desniveladas. Quando chove, a rua vira um rio. Misteriosamente, em Las Mercedes não falta energia elétrica como acontece em outras partes do país. Mas internet, telefonia e transporte público são terríveis", desabafou um homem de 60 anos que preferiu o anonimato.

"Esse é o momento que esperamos por décadas. Las Mercedes está se transformando na 'zona rosa' do país", declarou Argenis Carpio, 57, consultor e membro da Câmara Venezuela de Franquias.

Uma dessas franquias é o restaurante Salvaje. Incrustado no terraço de uma das novas torres, o acesso ao local é feito sob reserva. No lugar há apresentações e um cardápio onde os preços variam entre US$ 5 e US$ 115.

Para empresários e investidores consultados pela reportagem, estar em Las Mercedes é fundamental para alavancar os negócios. "É uma referência para todas as empresas ter uma sede aqui", confirma Maryna Cuevas, 49. Há pouco mais de um ano, ela abriu no bairro a quarta filial de sua clínica estética e está contente com os resultados.

María Evans, 37, decidiu voltar à Venezuela em 2016, depois de uma temporada na Europa. No ano seguinte, abriu a Azú Pastelería, onde vende doces inspirados nos frutos amazônicos. Ela diz ter começado o negócio com apenas US$ 50, e agora está em vias de abrir a quarta loja. "Cheguei quando esse boom ainda não havia acontecido e foi uma decisão muito acertada instalar meu negócio aqui."

Outro empresário que chegou ao bairro ainda durante a crise foi Pablo Giani, que em 2019 abriu o badalado Anónimo, "depois desse momento escuro vivido na Venezuela". No restaurante de dois andares há uma estante para os mais assíduos guardarem suas bebidas preferidas — a maioria uísque 18 anos.

Um segredo: o espaço VIP do térreo, com mesa para dez pessoas, dá acesso a banheiros e estacionamento privados. "O cliente chega direto sem ser visto", conta Pablo, que entrega: "Aqui vem gente dos dois grupos", diz, em referência aos políticos do governo e da oposição.

Perto dali, uma fila de carros interrompe o trânsito na entrada do Cassino Tamanaco, onde centenas de pessoas vão apostar em mesas de pôquer ou em máquinas caça-níqueis, na esperança de que, num átimo, o dinheiro jorre sem parar.

Las Mercedes é essa paisagem dourada num país ainda em escombros. "Quando a lógica acaba, começa a Venezuela", lembra Giani.

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