OURO BRANCO

15 anos após anunciar nacionalização, Bolívia ainda não explora lítio em escala industrial no deserto de Uyuni

Leandro Aguiar (texto) | Sara Aliaga Ticona (fotos) Colaboração para o TAB, de Uyuni (Bolívia)

Abrigada às sombras da cordilheira que contorna o salar de Uyuni fica a entrada da YLB (Yacimientos de Lítio Boliviano), estatal inaugurada em 2013 pelo então presidente Evo Morales. Trata-se de um projeto de industrialização do lítio, que "mudará para sempre a história da Bolívia", diz, orgulhoso, o técnico José Lopez, 31, mascando folhas de coca para suportar a altitude de 3.600 metros.

O otimismo de José tem pé na realidade: 23% das reservas de lítio do mundo se encontram nos salares bolivianos. O mineral, chamado de "ouro branco" por operadores da Bolsa de Valores, valia cerca de US$ 85 mil a tonelada no fim de 2022. O material é usado na fabricação de baterias de celulares, computadores, veículos elétricos, painéis solares, torres eólicas e outros — é a principal alternativa energética do século 21.

No fim de junho, a estatal de energia nuclear russa Rosatom e a companhia chinesa Citic Cuoan Gruop fecharam acordo para investir US$ 1,4 bilhão (R$ 6,8 bilhões) para a produção de 100 mil toneladas anuais de lítio a partir de 2025. Depois de 15 anos operando em escala experimental, o governo está prestes a concluir a construção de uma planta industrial no salar de Uyuni. Por isso, informou a assessoria da YLB, a visita de jornalistas estava vetada.

A conversa com José, no fim de tarde de uma quinta-feira de abril, foi interrompida por um dos militares na entrada da estatal, "por determinação da chefia". Dezenas de funcionários da YBL se dirigiram a um ônibus fretado pela empresa para levá-los, finalmente, para casa: eles passam 14 dias acampados no deserto e têm uma semana de folga nas suas cidades de origem.

A aura de mistério na busca pelo lítio tem provocado protestos da oposição e até de sindicatos alinhados ao MAS (Movimento ao Socialismo), partido do atual presidente Luis Arce e do ex, Evo. Em março, um deles ocupou a planta da YLB, reivindicando mais transparência e melhorias palpáveis na região de Uyuni, a mais pobre da Bolívia.

Uyuni começou a chamar a atenção das mineradoras em 1976. Vigorava a ditadura do coronel Hugo Banzer, que autorizou estudos de empresas francesas para confirmar o que se suspeitava: debaixo do deserto tinha lítio para dar e vender.

Em 1986, saiu a confirmação e o salar foi declarado reserva fiscal — e o presidente da vez, Victor Paz Estenssoro, pretendia cedê-la por 80 anos à estadunidense Lithico Corporation. Sem querer, ele foi o gatilho para a longa batalha pelo lítio "100% boliviano".

Protestos se espalharam pelo país, especialmente em Potosí, onde está Cerro Rico, montanha de prata explorada na colonização espanhola, emblema dos minerais bolivianos usurpados por estrangeiros. Diante da pressão, os norte-americanos desistiram do empreendimento, em 1993, e investiram no Salar del Hombre Muerto, na Argentina, hoje uma das maiores concorrentes da Bolívia.

Outras multinacionais tentaram acordos, mas fracassaram ante a pressão popular. Em 2006, quando Evo ascendeu ao poder, a campanha pelo lítio "100% boliviano" atingiu o apogeu. Em 2008, num decreto recebido com festa pela população, o presidente nacionalizou as reservas.

"Encaramos uma epopeia que nos confrontou com o sistema imperial", comemorou a revista Bocamina, do Ministério de Minas da Bolívia. Para partidários do MAS, Uyuni viraria uma Dubai latino-americana, uma pujante indústria de alta tecnologia. Evo projetava que, em 2015, o país exportaria carros elétricos, e os jovens passariam de mineiros a engenheiros da YLB. Em 2023, a produção segue em escala experimental, e as comunidades do deserto de sal continuam as mais pobres do país.

Erguido a pau a pique sobre o solo branco do salar, o povoado de Colchani era um lugar esquecido pelo mundo na década de 1950. Foi lá que Teodoro Colque, 73, foi ensinado na infância pelo pai a retirar sal da terra, tornando-se salero, função que seus conterrâneos costumavam exercer até os 50 anos — ao atingir tal idade, era comum que estivessem com a vista arruinada pelos fortes reflexos do salar.

Àquela altura, era impensável que uma riqueza incalculável dormisse aos pés de Colchani. Teodoro é considerado um precursor de sua exploração — não do lítio, mas do turismo.

Até o fim dos anos 1990, quase ninguém visitava Uyuni, que não tinha aeroporto, boas estradas ou hotéis. Mas Teodoro estava convencido de que as paisagens do deserto de sal eram únicas e teve uma ideia dita excêntrica, "mas que depois todos copiaram", diz, sempre sorridente: construir um hotel inteiramente feito de sal.

Depois de muitos testes, ele chegou a uma fórmula resistente às intempéries, convocou os "saleros" para ajudá-lo e o resto é história. Incrustado no salar desde 2000, o hotel de Teodoro recebeu visitas de presidentes da Bolívia, serviu de ponto para o Rally Dakar e ajudou a jogar Uyuni no mapa dos mochileiros. Funcionou: hoje, a maioria dos moradores de Colchani vive do turismo.

Três cientistas (dois alemães e um boliviano) ficaram no hotel de Teodoro em 2012. Passaram meses no deserto, de onde extraíram 1 kg de lítio. Ele e outros hoteleiros tentaram visitar a YLB para entender o que aconteceu, sem sucesso. "As áreas estão sempre fechadas, ninguém entra lá facilmente, ninguém sabe o que se passa de fato."

Tanto mistério preocupa os operadores de turismo, que temem que o salar seja contaminado, ou que no futuro não seja assim tão branquinho e instagramável. "Seria justo que fossemos ouvidos sobre o tema", dizem. No fim de abril, o presidente da YLB, Carlos Ramos, falou à comunidade: "Estamos abertos a responder a todas as inquietudes".

Camponeses que há gerações retiram seu sustento da região afirmam que tampouco foram consultados sobre o empreendimento, como manda a Constituição promulgada por Evo. Com uma média de chuvas de 200 mm por ano, as atividades agropecuárias ao redor do salar se desenvolvem num delicado equilíbrio, onde duas espécies se adaptam bem: a quinoa e as lhamas.

Crispín Quispe, 78, e Gregoria Lina, 73, criam lhamas em Leucasi, nas imediações. "A família inteira vivia aqui, mas todos morreram. Agora somos só nós dois", conta Crispín, em uma casa sem luz elétrica, gás e água encanada, à luz do fogão a lenha, que passa a noite aceso para ajudar o casal a vencer o frio do deserto.

Nos anos 1960, ele deixou Leucasi para estudar, trabalhou em minas de prata, tornou-se militar e foi descoberto por um olheiro de atletas. Bateu recordes como maratonista e disputou a Olimpíada de Munique de 1972. Uma pneumonia o prendeu por um ano numa cama de hospital, pondo fim à sua carreira e, após um período, retornou à região para criar lhamas.

"Quinze anos atrás havia muito pasto para as lhamas. Hoje, as coitadas estão comendo poeira", lamenta Crispín, apreensivo com a desertificação, que desconfia decorrer das atividades da YLB — a suspeita é compartilhada por vários outros produtores.

Quase toda a água consumida no entorno do salar vem de lençóis freáticos, dos quais a YLB se vale para abastecer a planta-piloto — a estatal não revela quanto gasta, mas, para se ter ideia, na Argentina estima-se que cada tonelada de lítio consuma dois milhões de litros. Durante as pesquisas de mestrado, a engenheira boliviana Ebeliz Fuentes, 31, quis comparar o uso da água na Argentina, no Chile e no deserto de Uyuni, mas não conseguiu acesso à YLB.

"Antes, bombeávamos água dos bolsões a sete metros de profundidade. Bolsões não se realimentam rapidamente e, agora, não encontramos uma gota antes dos 30 metros", relata Max Copani, 52, que se divide entre as atividades de motorista, professor de xadrez e agricultor em uma fazenda familiar em Rio Grande, povoado mais próximo à planta da YLB.

Nos últimos anos, o humor dos bolivianos variou do entusiasmo ao ceticismo. Após tentativas frustradas, o governo entendeu que era impossível realizar a exploração sem dinheiro e tecnologia estrangeiros. Em 2018, o país iniciou conversas com a Alemanha, que entraria "como sócia, não como patrões", como repetia Evo.

Nem todo mundo ficou feliz. Camponeses da Frutcas (Federação Regional Única de Trabalhadores e Camponeses do Altiplano Sul) apoiaram a diretriz como "adesistas", critica a líder de outro sindicato, o Comcipo (Comitê Cívico de Potosí), Roxana Graz, 49: "Muitos têm vantagens no governo. Seus interesses são iguais aos do MAS".

Já os camponeses da Comcipo são vistos como "pelegos" pela Frutcas, por participarem dos protestos de 2019 que fizeram Evo romper o contrato com os alemães, mas já era tarde — ele renunciou ao cargo, entre outros motivos, afirmando ser vítima de um complô devido ao interesse estrangeiro.

Frutcas e Comcipo convergem num ponto: defendem uma "lei do lítio" para garantir maior participação popular na tomada de decisões e na divisão dos royalties.

Indígenas aymaras, historicamente reconhecidas como "donos" do deserto, reivindicam mais benefícios, como a construção de uma "universidade do lítio". "O governo não nos consulta", critica Julio Mendoza, 48, autoridade aymara de Tahua. Segundo ele, não há melhorias em Tahua, ao norte do salar, só em Rio Grande e Uyuni, ao sul. "Nossos vizinhos estão se beneficiando com empregos, infraestrutura e turismo. Também queremos ser levados em conta."

Donny Ali, 35, abandonou a carreira de advogado em Sucre quando soube que a YLB construiria uma planta perto da casa de seus pais, em Rio Grande. Abriu então o hotel Lithium, esperando receber levas de engenheiros e técnicos. Dez anos depois, os hóspedes não são tantos. "O povoado sofre com picos diários de energia e quase não tem cobertura de internet. Isso afasta clientes", lamenta. Os moradores pediram uma expansão da rede elétrica, mas a estatal negou.

"Por que o salar é branco?", a estudante Rachel Escobar, 16, perguntou aos pais, quando era criança. "Eles contaram que é pelo lítio, um dos elementos mais importantes que existem na Terra", lembra.

Quem continua esperançoso com o futuro da empreitada boliviana são secundaristas como ela.

"Ouvi falar do lítio quando meu tio começou a trabalhar na YLB, como operário", conta o aluno Yan Cristian, 18, do Colégio Técnico Daniel Campos, em Uyuni. Quer cursar engenharia química e trabalhar na YLB. "Em alguns anos, a Bolívia pode estar entre as economias mais importantes do mundo", aposta.

Dez anos atrás, Paola Lopez, 25, também se animou com as perspectivas do lítio. Hoje professora de química, ela tem conversado com a YLB para tentar levar os estudantes para conhecer a indústria, mas ainda não conseguiu uma data. Do colégio à beira do deserto de sal, vê o futuro com um realismo amargo.

"É verdade que Uyuni cresceu nos últimos anos, mas, lamentavelmente, não melhorou. Seguimos sem ruas asfaltadas, semáforos, sem bons hospitais ou universidades. O progresso aqui foi mínimo."

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