Vida ao vivo

Sem edição, livestreamers transmitem dores e delícias para uma plateia cada vez maior

Guilherme Zamarioli/UOL

A internet virou TV, e a transmissão não editada, feita ao vivo, encanta as massas desde a era do rádio. Antes de as gigantes de entretenimento e tecnologia entrarem de sola nesse mercado, o amadorismo e a zoeira (sempre ela) predominavam. Num tempo pré-banda larga, bandas de rock e gamers transmitiam suas performances pela internet, mas havia certos pudores, demarcações temporais — o tempo de uma canção, uma partida. Gilberto Gil, em 1996, tocou "Pela internet" no escritório da Embratel, no Rio, no que foi a primeira transmissão de áudio e vídeo ao vivo do país usando algo que não fosse o sinal de televisão. Hoje, transmitir a vida em tempo real (livestream) e em contínuo é o ganha-pão de muita gente.

A maior subversão de quem transmite a vida sem parar é borrar os limites entre trabalho e lazer. Para eles, tá tudo bem. "Posso dizer que faço o que amo", afirma Alexandre Borba, 36, conhecido na internet como Gaules, de São Paulo. Ele é dono de um dos maiores canais de livestream de jogos da plataforma Twitch e tem a atividade como profissão em tempo quase integral. "Você cria uma relação diferente com o trabalho, ele só depende de você. Quem ama 'streamar', não precisa de férias", diz.

No ramo desde o início de 2018, Gaules transmite de 10 a 14 horas do seu dia, em tempo real, pelo Twitch. Na maior parte do tempo ele joga Counter Strike ou outros jogos de tiro. Sua audiência: 88 milhões de espectadores, até o fechamento deste TAB (e contando). No chat à direita da página, as mensagens de internautas sobem rapidamente. Vez ou outra, um bom e velho anúncio publicitário aparece entre as risadas — essa é a forma clássica de ganhar dinheiro com conteúdo na internet.

Entre as plataformas de livestreaming, é possível lucrar dando espaço para anunciantes, fazendo parceria com o site e se tornando um produtor de conteúdo exclusivo dele ou por meio de pagantes fiéis. Na Twitch, há três tipos de assinatura, que vão de US$ 5 a US$ 25 (R$ 21 a mais de R$ 100, em valor corrente).

Livestreamers como Gaules fazem parte de um novo nicho de profissionais da internet. Assim como YouTubers têm movimentado o mercado publicitário e do entretenimento nos últimos anos, há cada vez mais interesse por esses incansáveis produtores de conteúdo. Como diz o apresentador dominical: quem sabe faz ao vivo. Uma das evidências é a quantidade e o tamanho das plataformas atuantes hoje na modalidade de livestream: YouTube, Facebook, Vimeo Livestream, Twitter, Twitch, Instagram e, de forma mais restrita, TikTok. Vale transmitir basicamente qualquer coisa: uma partida de videogame, uma viagem, um tutorial de maquiagem, sexo ou qualquer outra parte da rotina.

Tudo é um grande jogo

Com origem nas lan houses, a cultura do videogame na internet não é nova, mas o nicho é extremamente popular dentro do universo livestreamer. "Os jogos estão na base das sociedades tribais e nossas relações perpassam jogabilidades", afirma Raíra Bohrer dos Santos, especialista em antropologia digital.

Esse comportamento explica dois fatores dentro do mundo das livestreams: a popularidade do conteúdo relacionado a jogos e a relação gamificada que os produtores de conteúdo desenvolvem com os fãs e com os negócios nas plataformas.

Na Twitch, por exemplo, os livestreamers ganham mais espaço e mais vantagens para continuar produzindo conteúdo para a plataforma, até se tornarem parceiros. Entre os mais populares estão os que transmitem jogos, como Gaules. No YouTube, tirando as transmissões de grandes eventos, as de jogos são também as mais populares.

"É uma questão cultural. Desde a década de 1980 a gente é apaixonado por videogame", observa Alessandro Sassaroli, gerente de parcerias de gaming do YouTube da América Latina. "O que a gente vê hoje é a consolidação desse comportamento, à medida que o acesso à internet democratizou", afirma.

A gigante Facebook tem sua ferramenta de streaming voltada apenas para jogos, a Facebook Gaming. O Brasil está hoje entre os cinco países do mundo que mais assistem a transmissões ao vivo nessa plataforma, segundo Mauro Bedaque, líder de parcerias de entretenimento do Facebook para a América Latina.

No ar para todo o sempre

Um livestreamer de respeito é o que consegue tirar da performance em frente às câmeras espontaneidade e jogo de cintura suficientes para lidar com os imprevistos de uma transmissão ao vivo. São, na maioria, jovens muito conectados e antenados com as tendências de internet, segundo especialistas do ramo.

Outro diferencial: conhecimento de marketing e conteúdo. "Muita gente tem habilidade e dom de se comunicar e até de jogar, mas, dentro desse mercado, quem se formou em cinema e marketing tem uma vantagem absurda", diz Gaules. "Você consegue ser criativo, sabe interagir com o público, com as marcas. A experiência que tive nesse mercado fez o meu currículo", confessa.

Para ganhar dinheiro no meio, além de parcerias com marcas que tenham o perfil do público do streamer, as plataformas oferecem um empurrãozinho. Tanto o YouTube quanto a Twitch, uma das plataformas pioneiras em livestream no mundo, fazem parcerias com produtores de conteúdo, que exigem exclusividade, e possibilitam a monetização dos canais, além de permitirem que os seguidores mais fiéis paguem assinatura pelo conteúdo.

Lives exclusivas, sorteios de prêmios, vídeos inéditos, ter o nome citado pelo ídolo durante a transmissão e sua mensagem lida no ar estão entre as vantagens oferecidas para os assinantes. No canal de Gaules, a comunidade fidelizada de mais de 900 mil espectadores é chamada de "tribo dos gauleses". Como toda tribo, há regras a serem seguidas e valores a serem respeitados. Na página, a conversa rola solta no chat ao vivo à direita da página. Entre risadas e anúncios, os "gauleses" conversam e interagem com o ídolo enquanto ele joga. Com um olho no jogo e outro no chat, Gaules às vezes responde às perguntas de quem assiste. De pouco em pouco, a tribo fica sabendo cada vez mais sobre seu cacique.

Senso de comunidade

"Os [livestreamers] mais bem recebidos são os que criam essas tribos", explica a antropóloga Raíra Boher dos Santos. "É uma forma de criar um laço. A sua tribo te conhece, sabe tudo sobre você, mas você não a conhece", diz.

Na Twitch, plataforma onde se reúne a "tribo dos gauleses", o business é o da comunidade, segundo Wladimir Winter, diretor de conteúdos e parcerias da Twitch. "É uma inovação na maneira de se consumir conteúdo, é muito geracional. O público [de espectadores] é jovem, tem de 16 a 25 anos, e se interessa pelo ao vivo porque consegue interagir com o conteúdo, participar ativamente pelo chat, entre si e com o criador. Esse é o diferencial: você faz parte daquele conteúdo ao vivo, é por isso que as pessoas gostam tanto", opina.

Apesar de os games serem a principal categoria dentro da Twitch (cerca de 80% das transmissões), outros assuntos têm crescido na plataforma, como lives de ASMR e conteúdos chamados IRL (in real life, na vida real), que podem ser literalmente qualquer coisa: gente dançando, gente ensinando a tocar violão, gente fazendo churrasco, comendo, estudando, trabalhando, dormindo.

Na Coreia do Sul, lives de gente fazendo refeições ganharam até um nome: mukbang. São pessoas comendo juntas, só que separadas, divididas por uma tela. Os números de audiência impressionam e batem os milhões. "As pessoas entram em um lugar em que sabem que têm um monte de amigos, onde podem ser elas mesmas", diz Winter.

Me tirar da solidão

A história de Gaules é testemunho do que "ver e ser visto" pode fazer. O produtor de conteúdo teve depressão severa em meados de 2013 e passava o dia todo conversando com a telinha em canais de livestreaming. "Falei com o psiquiatra sobre a ideia de interagir com as pessoas na internet. Começou com isso", conta. "Tem gente que está estudando e passa a madrugada me ouvindo, tem muita gente sozinha ou que enfrenta algum problema e utiliza o canal como uma forma de socializar."

A sensação de pertencimento gerada pelo contato na rede faz parte de um processo de acolhimento. "Os streamings dão certo a partir do momento em que eles têm plateia", diz Andrea Jotta, psicóloga e pesquisadora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Ver e ser visto dão dimensão de existência ao ser humano. "A gente parte do pressuposto psicológico de que a gente existe a partir do momento em que a gente é visto. A pessoa que não é percebida não faz diferença no mundo."

Na internet, diz a psicóloga, todo mundo pode ser estrela da Globo. A forma como as redes sociais funcionam faz com que cada um crie um personagem para si. A criação de personas tem sido observada pela psicologia e pela sociologia bem antes da era digital, mas ganhou intensidade com as redes sociais. "Todo mundo cria uma personagem na sociedade. A internet expõe esse personagem", diz Jotta.

Nos canais de livestream, a vida se torna uma novela e as pessoas ficam esperando pelos próximos capítulos. "É quase como escolher um canal de televisão em que você pode conversar com o artista, ser amigo do artista e participar da vida dele. O telespectador é a pessoa que não gosta de estar no protagonismo, mas gostaria de ser daquele jeito, só não daria conta da exposição e das críticas", afirma.

A psiquê do sucesso

Saber lidar com as críticas é outro aspecto da vida de livestreamer e de qualquer profissional que seja exposto nas redes sociais. "A internet gera o desejo de ser visto, de compartilhar momentos. O que temos visto com o livestreaming, com as redes, no geral, é o perigo de tentar mostrar mais do que viver", diz Jotta. "Quando você vira apenas um personagem e não consegue separar as coisas, aí você está fazendo essa passagem para um comportamento que não é saudável", alerta.

Do ponto de vista emocional, a psicóloga aponta que viver a vida em tempo real na internet passa a ser um problema a partir do momento em que a pessoa baseia sua autoestima naquele retorno, na moeda social dos comentários e elogios na tela, e não nas atitudes diárias. "O problema começa quando você começa a fazer coisas violentas com você mesmo mais para ser visto do que para ser acolhido ou ser algo natural", diz.

Os extremos do comportamento de "vale tudo por um view" vão desde se arriscar em selfies perigosas até o ponto de transmitir a morte, tanto a própria quanto a de outros. Há casos no Facebook de assassinatos transmitidos na plataforma e de suicídios. A empresa, também dona do Instagram, vem instaurando medidas para prevenir casos assim. Em fevereiro de 2019, um brasileiro tirou a própria vida durante uma live no TikTok. Em nota, a rede social afirmou que vem atualizando suas políticas de transmissão ao vivo e trabalhando para melhorar medidas de segurança e moderação.

Apesar dos casos trágicos, mostrar tudo o tempo todo nas telas no momento em que está acontecendo, para Jotta, será um comportamento comum com o crescimento das coberturas de rede, do 5G e do avanço das tecnologias. "Vamos ter que nos acostumar, porque quanto mais banda larga a gente tiver, mais possibilidades de postar vídeo na internet, o que vai tomar um espaço que antes era da televisão."

Sexo como gatilho

Na antropologia, Raíra Bohrer dos Santos observa que não há como dar conta de uma coesão identitária na internet. "Tem muitas nuances. Por mais que os usos das redes reproduzam a vida em sociedade, eles também geram grandes transformações nessa mesma sociedade", diz.

Ela exemplifica falando de sadomasoquismo no mundo virtual, tema de sua pesquisa acadêmica. Nesse universo, as pessoas usam avatares e não costumam revelar suas verdadeiras identidades. "Criam-se narrativas sobre essas identidades e cada pessoa pode ter mais de uma persona", explica. "Existem diferentes temas que unem as pessoas. Essas vivências no online são como aquelas offline, cara a cara. Elas criam e desenvolvem transformações subjetivas no nosso imaginário, na nossa forma de nos relacionarmos, nas expectativas, nas expressões, no interesse sexual", aponta.

São fronteiras que se cruzam e se confundem. O fenômeno da vida ao vivo tem sua origem na pornografia, como muita coisa na internet. "Muitas novidades tecnológicas estão relacionadas à pornografia porque ela precisa ser reinventada para se manter relevante, seguindo as mudanças sociais", afirma Mayumi Sato, blogueira do UOL, pesquisadora e diretora de marketing do Sexlog, uma rede social que oferece transmissão ao vivo. "No caso do livestream, isso vem do interesse pela pornografia amadora", diz. Os primeiros streamers, diz Bohrer, foram de pornografia amadora, que têm uma produção tão grande quanto a de vídeos relacionados a games.

O aumento da busca pelo autêntico dentro da pornografia e por corpos mais próximos aos da vida real tem balançado a indústria pornográfica. Com o fim das locadoras de vídeo e o aumento da pirataria, o mercado tradicional precisou reinventar sua forma de propagar conteúdo e "inventou o modelo do que é a Netflix hoje", segundo Sato. "A gente começou a pagar por pornografia muito antes de pagar por conteúdo de internet", afirma. "Quando os vídeos passam a ser abertos e todo mundo a compartilhar, a indústria cria os canais, como Pornhub e Youporn, que não cobram mensalidade, mas fazem com que quem assista seja atingido por anúncios."

Jogo de poder

Assim como nas lives fora do universo pornô, dentro da pornografia há também o interesse pelo cotidiano. No Sexlog, há quem ligue a câmera apenas pelo prazer de acompanhar o cotidiano de alguém. "Essa coisa de ser observado é um fetiche e um interesse bastante popular", diz Sato. No Sexlog, nem todo mundo fica nu. O fetiche envolve observar pessoas fazendo faxina, trabalhando e completamente vestidas. Nas "lives com roupa", as pessoas conversam, interagem, se sentem admiradas e agentes do prazer do outro. "O valor social que esse tipo de conteúdo gera, os comentários, o xaveco, são moedas valiosas. O retorno social é importante, faz parte da construção da autoestima", afirma Sato.

No mundo do fetiche, o vídeo é uma ferramenta poderosa. "A pessoa garante que o que ela está mostrando é real, que hoje é difícil com fotos. Receber elogios e comentários por algo que você sabe que é real, sem edição, traz um benefício ainda maior. Por outro lado, para quem assiste, traz a essência da verdade, de que a pessoa está ali agora fazendo aquilo, você pode ver nos olhos dela que ela faz por prazer."

Também nas lives sem roupa, há a criação de um laço entre quem está a apenas um clique de distância. "As pessoas que assistem se sentem transando com quem está ali do outro lado da tela. Ela responde a estímulos, tira a blusa quando pedem, quando atinge certo número de visualizações, vai acontecendo uma construção e elas acabam criando laços e uma relação naquele momento", diz Bohrer. "Existem inúmeras formas de se relacionar e as pessoas estão se relacionando, sexualmente ou não, por meio de diferentes plataformas, comunidades e interesses."

A internet funciona basicamente com o desejo, diz a psicóloga Andrea Jotta. "Não é uma coisa inócua: tudo gera dinheiro, prestígio ou alguma satisfação do desejo. Se antes a gente tinha a mídia tradicional manipulando esses desejos, hoje a gente tem um protagonismo maior sobre o que assistir, mas a base continua sendo a busca pelo prazer imediato, a satisfação e a fuga da vivência de um dia difícil", afirma. "Seja via compras, via jogos, redes sociais ou sexo."

Leia também:

Arte/UOL

Os players nacionais

Brasil cansou de ser representado por estrangeiros e multiplica seus personagens nos games

Ler mais
Marcelo Justo/UOL

Não acredite nem vendo

Como o deepfake pode mudar a nossa relação com as notícias falsas

Ler mais
UOL

Te dou uns dados

Você troca sua privacidade por desconto e conveniência, e quem lucra mesmo é a nova economia de vigilância

Ler mais
Topo