O fator Lula

Liberdade de ex-presidente aglutina oposição, aumenta polarização e acirra guerra de narrativas

"Beija, beija, beija", faz coro o público na porta da carceragem da Polícia Federal em Curitiba. A socióloga Rosângela da Silva passa a língua nos lábios já prevendo o que ia acontecer, afinal, Lula saiu da prisão jogando para a plateia. O ex-presidente interrompe a fala para tascar um beijo na namorada.

No dia seguinte, já em São Bernardo do Campo (SP), Lula é carregado nos ombros em meio a uma multidão de seguidores, como se fosse popstar, reeditando a cena anterior a sua detenção. O refrão era "Meu coração é vermelho".

O jingle de campanha presidencial de Lula em 1989 era entoado por um carro de som em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos. "Lula lá, brilha uma estrela" cantavam em coro, como um hino, os apoiadores do ex-presidente que esperavam para ouvir seu discurso. O clima era de mormaço (muito suor) e de comoção (muitas lágrimas), entre carrinhos de churrasco e cerveja, banquinhas de camisetas e pelúcias.

Lula falou à multidão no lugar onde tornou-se sindicalista, há 40 anos, e projetou-se candidato presidencial, há 30. "Fiquei 580 dias sem ter com quem falar, agora quero falar", disse o ex-presidente. Disparou críticas a Jair Bolsonaro, a Sergio Moro, a Paulo Guedes e à Rede Globo. Lula comandou seu público que ria, se emocionava e gritava.

A trilha teve muito samba, Luiz Gonzaga e Belchior. O discurso terminou às 15h45, quando outro ato começaria naquela tarde de sábado na avenida Paulista, 24 km dali. O clima na capital era de rock: "Que País é Esse?", da Legião Urbana, "Brasil", de Cazuza, e até "Aluga-se", de Raul Seixas, uma crítica aos investimentos estrangeiros.

De camisetas amarelas, os insatisfeitos gritavam contra STF e Lula. Em frente à Fiesp, principal palco das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o caminhão de som do movimento Vem Pra Rua levanta bandeira única: prisão para os condenados em segunda instância. Nos discursos, um tom de "nem esquerda nem direita, mas anticorrupção", com poucas menções a Bolsonaro.

Mais adiante, em frente ao Masp, Tomé Abduch, líder do grupo Nas Ruas, afirmava que, por mais que Bolsonaro "não diga as coisas do melhor jeito", seu governo tem "conteúdo" e "está dando certo". Por ali também discursava Luciano Hang, dono das lojas Havan e notório apoiador do presidente, fazendo críticas diretas a Lula. "Ele está solto, mas não livre! Livres somos nós!", discursava o empresário.

Entre um carro e outro estava o MBL, no chão pela primeira vez. Pareciam mais uma bateria de faculdade cantando "Olê Olê / Estamos na rua para derrubar o PT" e "Se a PEC não passar / O bicho vai pegar". A PEC em questão é a PEC 410/2018, que pede prisão para condenados em segunda instância.

A noite caía e o movimento minguava. Assim como em São Bernardo, o momento de maior revolta e indignação foi quando apareceu o helicóptero da Rede Globo. Manifestantes xingaram em uníssono a imprensa e logo voltaram a dançar ao som de temas do rock nacional.

Saída no momento certo

No palanque, Lula diz que Jair Bolsonaro governa para os milicianos do Rio de Janeiro. O atual presidente, em quatro tuítes sintéticos (entre 47 postagens, desde que Lula foi libertado), o xinga de "canalha". Lula endereçou o mesmo adjetivo para Moro, que o condenou por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá (SP). O ministro da Justiça havia chamado Lula de criminoso e, no domingo (10), se contrapôs à decisão do STF e pediu ação no congresso para a votação das PECs [propostas de emendas à Constituição] para permitir a execução da pena em segunda instância.

"A prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro polarizaram o Brasil de uma maneira que nunca tinha acontecido no passado", diz Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, em Washington (EUA), e especialista em política externa da América Latina. "O apoio popular que Bolsonaro teve nas eleições está declinando, e Lula sai da prisão no momento em que o governo passa por muitas dificuldades e alguns sucessos. A questão que fica é se há energia suficiente na esquerda para oferecer uma alternativa. Lula irá se inclinar à esquerda ou vai voltar para a centro-esquerda? Temos de ver se as pessoas estão dispostas a ouvi-lo. Mas ele irá recarregar a política brasileira por algum tempo."

O cientista político e sociólogo Alberto Carlos de Almeida, autor de "A cabeça do brasileiro" e "O voto do brasileiro", acredita que, para Lula, essa é a hora de atacar o governo. "Ele é o maior comunicador político que o Brasil teve em sua história recente, e isso anima a oposição, da qual é o principal líder. Vai ser uma guerra de trincheiras."

Para o cientista político Pedro Fassoni Arruda, professor da PUC-SP, a polarização acontece em torno do discurso e não da prática. "A figura do Lula pode ser um denominador comum para a direita, pode unificar a esquerda também", diz.

Mas Almeida entende que há diferenças no tipo de enfrentamento proposto por Lula e por Bolsonaro. "O polarizador maior é o Presidente da República, e ele não tem problema nenhum em polarizar. É ele quem dá o tom. Lula, na prática, tem alma de conciliador. Ele pode até não exercer esse traço de caráter agora, pela necessidade de falar para seu grupo. Mas não vou ficar surpreso se o Lula chamar agora um monte de gente para conversar, como Rodrigo Maia."

Para a cientista política Deysi Cioccari, Lula voltou agressivo. "Ele já fez isso no passado e não deu certo. O problema não é o embate entre esquerda e direita, é o fator raivoso no meio. Isso tira a coerência", afirma. Ela menciona os ataques indistintos à Globo. "Não é novidade. Em levantamento vi que, literalmente, todos os presidentes desde 1985 atacaram a Folha de S.Paulo ou a Globo em algum momento. Mas hoje esses ataques são muito fortes", diz.

Apesar disso, Cioccari acredita que a saída de Lula dá a possibilidade de tanto direita quanto esquerda se reorganizar. "Bolsonaro tomou a decisão errada de se livrar de muita gente que o apoiou. É um personagem político que não se sustenta mais", diz. Ela acredita, contudo, que o antipetismo continua forte. "Os casos de corrupção ainda estão frescos na memória."

A cientista política Esther Solano, professora da Unifesp, acredita que Lula foi libertado no contexto ideal. "É um dos momentos em que Bolsonaro está mais desmoralizado." Ela aposta na figura de Lula como mediador. "Mesmo que não saia candidato, ele consegue formar alianças e reorganizar o partido. Vai rodar o país e tem potência como cabo eleitoral", diz.

Solano não vê Bolsonaro com o mesmo traquejo. "O presidente perdeu a capacidade de mobilização que tinha nas eleições, especialmente nas cadeias mais populares. Mesmo Moro não é mais tão poderoso quanto antes", afirma.

É a economia, estúpido!

Segundo Carlos Pereira, professor de ciência política na Ebape (Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV-SP), o desempenho econômico do governo Bolsonaro vai definir a oposição que Lula e a esquerda farão agora, além de indicar o caminho para a ascensão de um novo ator de centro — que pode ser o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) ou o apresentador de TV Luciano Huck. "Bolsonaro, ele mesmo, ficará um pouco paralisado. O momento é de Paulo Guedes."

Na semana em que Lula saiu da prisão, o IBGE apontou que 13,5 milhões de brasileiros ainda vivem em pobreza extrema, com menos de R$ 8 por dia.

Para Solano, Lula deve capitalizar o momento para se opor às reformas e à política econômica de Guedes. "Os planos de Bolsonaro, ainda que bem vistos pelo mercado, são rejeitados pelos mais pobres. Lula ganha potência nesse quadro", diz.

O discurso de Lula em São Bernardo confirma a hipótese de Solano. Em menos de uma hora, o ex-presidente chamou Guedes de "demolidor de sonhos", "destruidor de empregos e de empresas públicas brasileiras" e usou o Chile como exemplo de vítima de políticas econômicas semelhantes às de Guedes.

Para Cioccari, Lula entra na pauta ainda no plano do simbólico, antecipando a corrida eleitoral, mas sem comandar a ação. "Os movimentos econômicos e as relações internacionais continuam sendo ditados por quem está na cadeira de presidente", aponta.

Supremo Tribunal do Fiasco?

No momento imediato à votação no STF (Supremo Tribunal Federal), a esquerda passou a ver o órgão como instrumento moralizador da política. Entre os principais atores da direita, contudo, a fama do STF não poderia estar pior. Nas ruas, manifestantes jogavam pedra em um cartaz que reproduzia os rostos dos ministros do Supremo.

Com Lula solto, as redes voltaram a se inflamar. No Facebook, embora petistas e militantes de esquerda tenham comemorado a medida, "foi a indignação da direita que gerou maior número de compartilhamentos - o que confirma a tese de pesquisadores de que a força motora da difusão de conteúdo em mídias sociais é a indignação", afirmou Pablo Ortellado, do Monitor do Debate Político no Meio Digital.

Apenas dois posts de esquerda estiveram entre os dez mais compartilhados no Facebook: um vídeo-meme de "dona Creuza" comemorando a decisão do STF e a transmissão da soltura pela página oficial do ex-presidente. "Na direita, os posts tiveram teor muito semelhante entre si, com o discurso de que Supremo tinha envergonhado o país ao endossar a impunidade e libertar 'o maior bandido'", afirmou o analista.

"O STF vem sendo desmoralizado pela base lavajatista muito fortemente. A própria Lava Jato joga muito com essa desmoralização, com o argumento que é importante ouvir a voz das ruas", diz Esther Solano.

Moro, por sua vez, é a incógnita. Para Solano, "ele ainda é mais forte que Bolsonaro, mas também não tem essa capacidade de mobilização que tinha antes. As coisas mudaram depois da 'Vaza Jato' [reportagens da publicação digital The Intercept sobre trocas de mensagem entre o ex-juiz federal e procuradores da Lava Jato]. Moro já não é aquele líder que era na época das eleições". O caminho de Moro parece ser uma cadeira no próprio Supremo e não no prédio logo à frente dele, o Palácio do Planalto.

Na visão de Peter Hakim, a decisão do STF "desprestigia" o trabalho de Sergio Moro. "Ele interveio na investigação de fato, onde deveria ter cumprido um papel mais neutro. E a velocidade com que as acusações foram abertas e que o julgamento foi concluído mostrou que eles queriam acabar logo para garantir que Lula não pudesse concorrer às eleições de 2018", diz. "São essas duas questões que se colocam: a celeridade do julgamento e o fato de o Moro ter trabalhado mais ao lado da procuradoria, em vez de manter sua integridade como juiz".

Lulita paz y amor

Em seu discurso no sábado, Lula acenou ao boliviano Evo Morales -- que renunciou no domingo (10) após protestos, pressão das Forças Armadas e suspeita de fraude no pleito de 20 de outubro --; saudou Alberto Fernández, presidente recém-eleito da Argentina, e aproximou os desafios da esquerda brasileira às mobilizações contra Sebastián Piñera, no Chile, modelo econômico de Guedes.

Para especialistas, a turbulência nos países vizinhos cria um novo momento para a esquerda latino-americana. Agora, com Lula solto, a esquerda ganha novo gás. Resta saber até quando.

"Acho que muitos eleitores viram a direita como um grupo político que poderia ao menos restaurar a estabilidade e o crescimento da economia. [Mauricio] Macri ganhou na Argentina por causa dos problemas na economia; Piñera ganhou no Chile pela promessa de estabilizar a economia; e a esquerda perdeu prestígio no Brasil por causa da decadência econômica. Mas o fato é que a direita também não vai bem na economia", analisa Peter Hakim.

Para o analista, as pessoas enxergam os governos recentes como fracassados, incompetentes e corruptos. "Não é surpresa. Você vê que a América Latina sofre com lideranças fracas, economias fracas e instituições fracas. Eu desafio que se nomeie um presidente que foi eficaz em oferecer a um país uma liderança democrática forte. Não consigo pensar em um único presidente, nesse momento, que possa ser chamado, realmente, de um 'líder forte'."

Free Mandela, Lula Livre

Prestes a se mudar para Paris, o casal Laurent, 64, e Maria Gorete Vernot, 64, foi se despedir de Lula em São Bernardo. "Voto no PT desde 1989 e vou votar na França", diz Gorete. "Ele é a liderança mais importante da esquerda no mundo depois do Nelson Mandela", opina o marido, comparando as duas prisões bem distintas.

A aproximação com o líder sul-africano foi repetida pelo governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), e Alexandre Padilha, vice-presidente do PT.

Para Pedro Fassoni, "Lula tem a simbologia" de um líder que transcende críticas. "É um retirante nordestino de origem humilde, e retém um forte carisma. Muitos acabam fazendo esse culto à sua personalidade. Ele tem um discurso que empolga as pessoas, encaram ele com intérprete da nação, líder carismático."

Nas ruas, é fácil quem vem do Nordeste se identificar com a trajetória do ex-presidente. Entre lágrimas, Pedro Padilha, 21, viajou de Capoeiras (PE), uma cidade a 5 km de Caetés, terra natal do ex-presidente, até São Bernardo para ter a chance de tirar uma foto com o ídolo. "Ele representa a periferia, os pobres, LGBTs. Tudo o que é de bom nesse país é Lula", disse. No celular, tem foto da visita que fez à casa onde o ex-presidente nasceu. "Vocês que vivem na capital não sabem o que é a seca, a fome, o que é ver um homem sair daquela casa e virar presidente desse país enorme. No Nordeste, se você não morre de fome, você nasceu pra vencer", diz.

Outro personagem a quem o comparam é Getúlio Vargas. "Lula retoma a gramática varguista. Não é uma opinião pessoal, é uma constatação de uma realidade factual", diz Fassoni. Na prisão, Lula teve como leitura mais marcante uma biografia do presidente gaúcho que voltou ao poder democraticamente após ser deposto quando era líder autoritário. No entanto, ao contrário de Vargas, corre o risco de não poder concorrer às eleições. "Não adianta ter apelo eleitoral se ele não puder se eleger e isso vai depender de outras instâncias", diz Fassoni.

Preso ou solto, Lula está inelegível de acordo com a Lei da Ficha Limpa, sancionada pelo próprio ex-presidente em 2010, pela condenação em segunda instância de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex.

O jogo só vira se o Supremo reconhecer como válidos os argumentos da defesa - de que Moro teria sido parcial durante o processo, sem apresentar provas robustas suficientes. Assim, a sentença proferida na primeira instância, e ratificada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) e pelo STJ, poderia ser anulada.

Críticas pra todo lado

Apesar do furor dos apoiadores de Lula, muitos ali na multidão de São Bernardo esperavam um novo Lula — que não veio. Logo após o discurso acalorado do ex-presidente, a professora Ayni Estevão, 31, apontou que ainda há um desafio pela frente: políticas para a população negra. "A pobreza tem cor e a cara da classe trabalhadora mudou desde que Lula foi presidente. A fala é restauradora, emocionante, mas há esse desafio", diz.

Na avenida Paulista, duas figuras se destacaram na bateria anti-Lula: Renan Santos, co-fundador do MBL, e Kim Kataguiri, hoje deputado federal pelo DEM. Apesar de parar o tempo todo para tirar selfies, Kataguiri também foi alvo de críticas. "MBL, tchutchuca do Centrão!", gritou uma manifestante solitária ao ver o grupo passar.

Em entrevista ao TAB, Kataguiri afirmou que está nas ruas para pedir a PEC da prisão em segunda instância, a reforma do Código Penal e a CPI da Lava Toga. Para ele, o silêncio de Bolsonaro sobre a decisão do STF era um "constrangedor e um tanto eloquente". "Demonstra que, de fato, o governo está abrindo mão de pautas do país para utilizar a máquina pública para o presidente proteger seus filhos." Para o parlamentar, "Lula solto fortalece o bolsonarismo e o lulismo, mas isso satura. A polarização não dura, cansa as pessoas".

"As mobilizações anti-PT, especialmente em São Paulo e no Rio, sinalizaram que há uma parcela da população disposta a pressionar o Congresso a rever a Constituição e o Código Penal", analisa o professor Carlos Pereira. Aspecto interessante sobre a soltura do Lula é que ela faz cair por terra o discurso anterior do PT de que ele só sairia da prisão inocentado. "A narrativa de autovitimização sai desmoralizada. Lula e PT aceitaram as decisões da corte quando elas os beneficiam."

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