PEDRA SOBRE PEDRA

Peru discute se aumenta acesso de visitantes a Machu Picchu, cidadela inca que pouco a pouco está afundando

Leandro Aguiar (texto) e Miguel Gutiérrez Chero (fotos) Colaboração para o TAB, de Aguas Calientes (Peru)

As ladeiras sinuosas de Aguas Calientes, município incrustado entre a Cordilheira dos Andes e a Amazônia peruana, amanheceram estranhamente calmas naquele fim de agosto. À exceção do ir e vir dos persistentes mosquitos, o trabalho estava suspenso. Em vez do burburinho dos milhares de turistas, ouvia-se o marulhar do caudaloso rio Urubamba, que margeia a cidadezinha.

Na praça central o clima era outro. Uma multidão de hoteleiros, donos de restaurantes, guias turísticos e artesãos estava reunida para comunicar ao governo sua reivindicação: o aumento da capacidade de visitantes ao parque arqueológico de Machu Picchu, uma questão que vem abalando o Peru — definir qual é o número apropriado de acessos por dia à cidadela inca que, pouco a pouco, está afundando.

Era o quinto dia de greve do setor em menos de um mês. Dessa vez, as autoridades foram avisadas antes, o que permitiu o remanejamento dos trens e entradas para Machu Picchu, que são nominais e têm dia e hora marcados. Em 28 de julho, quando aconteceu o primeiro dos "paros" no município vizinho à cidadela inca, as coisas não transcorreram tão bem.

À época, os peruanos iniciavam suas "festas pátrias", homenagens à independência do país. O período coincide com as férias escolares e Aguas Calientes estava repleta de turistas ansiosos por conhecer a cidade perdida dos incas. Como muitos não compraram as entradas pela internet, uma imensa fila se formou em frente ao guichê do Ministério de Cultura.

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Segundo David Moreno, líder da Frente de Defesa dos Interesses dos Moradores do Distrito de Machu Picchu, cerca de 1.500 turistas aguardavam a vez, alguns havia três dias, mas os ingressos estavam esgotados. Foi quando estourou a greve.

A Frente de Defesa puxou o protesto, obtendo adesão de vários turistas. Em trajes folclóricos, integrantes do desfile patriótico também se uniram aos indignados, que fecharam o caminho para o trem que trazia visitantes vindos de Cusco. Para estrangeiros, as passagens de ida e volta mais baratas neste trem custam US$ 127, e o prejuízo para as operadoras do transporte foi grande.

A capacidade diária de visitantes já havia saltado de 3.044 para 4.044 turistas, estando "em seu limite máximo", acima do qual "danos irreparáveis" poderiam ocorrer, de acordo com um informe assinado por Alejandro Salas, então ministro da Cultura. Em 28 de julho, os grevistas obtiveram uma vitória: Salas anunciou a ampliação da capacidade para 5.044 visitantes. Uma semana depois, ele foi removido do cargo.

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Num dos pontos mais disputado para fotos, é visível a olho nu o rebaixamento do solo em Machu Picchu: um documento do Ministério da Cultura, baseado em escaneamentos em 3D, reconhece que, desde o início da medição, em 2016, certas áreas do parque vêm sofrendo um desgaste anual de 1 milímetro.

O lugarejo sagrado foi projetado pelos incas a partir de um sofisticado encadeamento de rochas que previa até a possibilidade de terremotos, mas não a visita diária de 5.000 pessoas, alerta Gori-Tumi Echevarría, 51, renomado arqueólogo peruano ouvido pelo TAB.

Das 9h às 16h, Machu Picchu assiste ao auge de sua ocupação. No Templo do Sol, estrutura circular por cujas fendas incidem os raios de sol, criando um majestoso efeito óptico que varia a cada minuto, um brasileiro se pendurou às paredes para tirar uma foto.

O guia turístico Alain Sanchez, 46, não conteve a rispidez: "O senhor está escalando uma estrutura de mais de 600 anos. Saia daí já!". Embora tenha atravessado um cordão onde se lia "área restrita", nosso conterrâneo alegou que "não sabia" da proibição.

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O incremento dos visitantes e a deposição do ministro — e também do chefe do parque de Machu Picchu, o arqueólogo José Bastante — não satisfizeram os moradores. O principal reclame é outro: querem 50% dos ingressos vendidos localmente.

Dois argumentos embasam a exigência. O primeiro é que a economia da região precisa reaver os prejuízos sofridos durante a pandemia de covid-19.

Verónica Desabal, 43, uma das tantas operadoras que trabalham em torno da montanha sagrada, viu-se obrigada a fechar sua agência assim que foi decretado o estado de emergência. Junto da filha adolescente, que teve de largar os estudos, foi morar de favor em um sítio no Vale Sagrado dos Incas. Aos pés da cordilheira, plantou hortaliças e tubérculos para pagar as contas.

"Estamos endividados. Grandes agências compram as entradas aos milhares, revendendo aos turistas. A nós, os pequenos, restam migalhas. Somos favoráveis à venda presencial para quebrar esse monopólio", explica Desabal.

É esse o segundo argumento, que empresta à questão um quê de intriga internacional. Na visão dos pequenos operadores, muitos deles informais, as restrições interessariam às grandes empresas, que, dadas a alta demanda e a baixa oferta, forçariam um aumento nos preços, impondo um turismo de luxo na região.

Nessa suposta empreitada para elitizar as visitas ao parque (uma entrada no circuito mais básico sai por US$ 40), as grandes agências contariam com o apoio indireto da Unesco — que pode incluir Machu Picchu na lista de patrimônios mundiais em perigo.

Auxiliado por camponeses, o historiador norte-americano Hiram Bingham realizou a primeira expedição científica ao local, em 1911, sendo a ela creditada a "redescoberta" de Machu Picchu. Em 1983, a Unesco conferiu ao conjunto arqueológico o título de Patrimônio da Humanidade. Nas últimas semanas, contudo, a nova ministra de Cultura, Betssy Chávez, expressou preocupação com possíveis sanções do órgão ao parque.

"Não nos opomos a um monitoramento [pela Unesco]. O que não podemos é ingressar na lista suja da instituição, o que seria gravíssimo, não só do ponto de vista cultural, mas pelo impacto econômico", afirmou, em nota, após uma visita ao parque em 17 de agosto.

David Moreno, que além de um dos organizadores das greves é dono de uma pousada, se opõe ao que considera "interferências" da Unesco. "Não podemos fechar o parque aos visitantes nem exigir que paguem somas exorbitantes. Se Machu Picchu é Patrimônio da Humanidade, toda a humanidade tem direito de conhecê-lo", diz.

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Alfredo Cornejo, 49, líder da Associação de Turismo de Aventura de Cusco, concorda em parte com os pequenos operadores. "Exigir a venda presencial de 50% dos ingressos é má ideia. Machu Picchu é um santuário. Quem deseja visitá-lo tem de fazer sua reserva com antecipação, para que possamos conduzir um turismo organizado", defende.

Na opinião de Marco Ochoa, presidente da Associação de Agências de Turismo de Cusco, que reúne as principais operadoras da região, os culpados pela situação são os trabalhadores informais, em consórcio com o governo. Em plena atividade aos 78 anos, o empresário rechaça as greves.

"Os danos são reais e preocupam a nós, empresários, que vemos mais adiante. Mas os informais, que atendem sobretudo ao turista nacional, querem o aumento de visitantes a qualquer custo. É um quadro lamentável, em que essa gente se vitimiza. Daí surgem greves, e o governo, que é populista e fomenta esse tipo de movimentos, cede", opina Ochoa.

Mergulhado em uma crise política, o governo peruano vem recebendo críticas de diversos lados. Parte dos oposicionistas, que exigem a renúncia do presidente Pedro Castillo, foram contra as restrições impostas ao parque arqueológico até meados de julho deste ano, quando vigorava o limite de 2.044 turistas.

O limite foi se expandindo, mas as críticas perseveraram, vindas do outro lado: os que são a favor das restrições. Numa das mais contundentes, Luis Castillo (sem parentesco com o presidente), que foi ministro de Cultura em 2019, escreveu no jornal La República que o aumento da capacidade diária para 5.044 pessoas é "uma sentença de morte para Machu Picchu".

Emparedado, o governo anunciou em 11 de agosto algo que agradou aos grevistas e descontentou empresários como Ochoa: o limite retornou a 4.044 ingressos, mas mil passaram a ser vendidos em Aguas Calientes.

"Essa decisão promove o turismo de baixo custo, que não paga bem seus trabalhadores, não garante suas aposentadorias ou oferece um bom serviço ao cliente. Por isso somos contra incentivar o turismo 'hippie'", diz Ochoa. "Quem investe mais, ganha mais. O que importa mais ao país: o turista nacional ou o estrangeiro? O mais importante são os que chegam com dólares nos bolsos."

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Poucos conhecem Machu Picchu como o arqueólogo Gori-Tumi Echevarría. É de sua lavra uma descoberta que confirmou a suspeita de estudiosos: povos pré-incaicos ocupavam a montanha muito antes da edificação da cidade (por volta de 1400 d.C).

Filho de indígenas que, em casa, se comunicavam em quíchua, Gori-Tumi fascinou-se pela história de seus ancestrais quando jovem. Aos 17 anos, pisou em Machu Picchu pela primeira vez. "Foi extraordinário. Tudo estava tão bem conservado. Era como entrar em uma cidade em funcionamento", lembra-se. Pouco depois, ingressou no curso de arqueologia da Universidade de San Marcos.

Seu primeiro trabalho em Machu Picchu foi em 2017. Especializado no estudo das "quilcas" — termo quíchua para arte rupestre —, foi convidado pelo então diretor do parque, José Bastante, para investigar vestígios em paredes rochosas. Gori-Tumi percorreu o caminho inca que leva à montanha e também os templos e outras instalações da cidadela. Encontrou dezenas de petróglifos e pictogramas — sinais talhados em rochas e desenhos traçados à tinta, respectivamente.

A descoberta, que rendeu artigos acadêmicos e uma publicação na revista National Geographic, precisou vencer a disposição de certos viajantes em deixar sua própria marca nos monumentos. "O pictograma estava em um painel claramente sagrado, dedicado à Pachamama [do quíchua, 'Mãe Terra']. De autoria pré-inca, datado entre 1.000 e 1.400 d.C, ele se via entre uma quantidade formidável de rabiscos recentes de turistas", lamenta.

Casos como esse demonstram, para ele, a "absoluta barbaridade" de se aumentar o número de visitantes. "É um erro grosseiro do Estado, que não conta com respaldo técnico", diz.

Em 2015, uma consultoria contratada pelo parque arqueológico sugeriu que a carga se estabelecesse num patamar de 2.244 turistas por dia. "Em um curto ou médio prazo, esse aumento gerará graves problemas estruturais, inclusive com o deslizamento de rochas. O parque nunca descansa, de segunda a domingo há milhares de pessoas transitando por ali. A cidadela não foi projetada para aguentar isso", afirma Gori-Tumi.

Outro problema é de ordem sanitária. "Alguns recintos no caminho inca, atrás de muros e pedregulhos, se converteram em latrinas", conta o arqueólogo.

Para Gori-Tumi, a preservação de Machu Picchu depende de decisões impopulares. "Se queremos que dure mais 200 anos, não podemos colocar essa quantidade de gente lá. Reduzir a carga incomoda muita gente, mas não há outro jeito."

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Há três maneiras de se chegar a Machu Picchu: a pé pelo caminho inca, que, desde a rodovia de Cusco, toma ao menos dois dias; nos trens da Inca e Peru Rail, que custam de US$ 127 a US$ 500; e parte de van e outra caminhando, pela rota alternativa que sai de uma hidrelétrica na região.

A última opção não é das mais seguras. As vans têm de percorrer íngremes penhascos, e, uma vez chegados à hidrelétrica, os turistas precisam andar sobre os trilhos do trem, saindo para as margens quando as locomotivas passam. Em 21 de agosto, uma dessas vans despencou de uma ladeira, deixando quatro mortos e 16 feridos.

Muitos dos que trabalham em Aguas Calientes moram em Cusco, de custo de vida mais baixo. Para eles há um trem específico, que sai de Ollantaytambo, a 60 km de Cusco, onde se pode chegar de ônibus. Esse trem é bem mais em conta (cerca de R$ 8), mas conseguir o passe não é fácil, o que deixa muitos moradores ilhados na estação.

Foi o que aconteceu com Eva Hurtada, 20, que em agosto começou a trabalhar em um hotel em Aguas Calientes. Certo dia, chegou às 7h da manhã em Ollantaytambo. Um funcionário novo na estação não a reconheceu, e, como ela começara a trabalhar havia pouco e, por questões burocráticas, não tinha ainda a carteira assinada, não pôde embarcar. Assistiu a vários trens com lugares vagos partirem antes que, às 22h, conseguisse enfim convencer um segurança a deixá-la entrar.

"O preço da comida na estação é para os gringos, e durante esse tempo só bebi água e comi bolachas", lembra-se, sem saudosismo algum.

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Depois que o governo garantiu aos moradores que a venda de mil ingressos presenciais seria permanente, a situação pacificou-se e, por ora, novas greves estão descartadas. Mas visitar Machu Picchu, sobretudo para quem não pode investir no pacote de uma agência de turismo, segue sendo uma aventura — nem sempre no melhor sentido.

O casal Gimena Seballos, 25, e Alan Printo, 24, saiu de Arequipa, no sul do Peru, para Cusco, numa viagem de dez horas de ônibus. Ela é assistente de contabilidade, ele opera máquinas pesadas; como Alan teve suas férias remanejadas de última hora, os dois não puderam comprar os ingressos com antecedência, deixando para adquiri-los lá.

Em Cusco, um guia garantiu que havia jeito de chegar ao parque, mesmo no meio da greve. O par iria no trem mais barato, reservado aos peruanos, e, em Aguas Calientes, tomaria a fila dos ingressos. Para os dois, a viagem custaria, a princípio, US$ 146.

Acabou saindo mais caro. Como os trens para locais têm poucos lugares, só conseguiram embarcar depois do almoço. Ao chegarem em Aguas Calientes, já não havia ingressos para aquele dia. Pernoitaram na cidade — no que gastaram mais US$ 40, com acomodação e comida — e voltaram à fila às 5 da manhã do dia seguinte.

Sete anos atrás, Alan visitara a região, que encontrava agora distinta. "Antes, era uma vila. Atualmente têm mais opções de restaurantes e hotéis, mas os preços subiram bastante", diz.

Quando o relógio indicou meio-dia, estavam com os ingressos nas mãos. Descobriram, porém, que era preciso investir uns dólares a mais. Como tinham entradas marcadas para as 14h, teriam de tomar o ônibus para Machu Picchu, pois se fizessem o caminho a pé, que leva duas horas, poderiam se atrasar. Mais US$ 48 debitados.

Foi a primeira vez de Gimena no parque, que viu lotado de visitantes de diversas nacionalidades e povoado de simpáticas lhamas. Apesar dos perrengues, valeu a pena. "Machu Picchu é a síntese da nossa identidade nacional. Todo peruano deveria visitá-la ao menos uma vez na vida."

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